A Aventura das Próteses
Eu já comentei em algumas ocasiões sobre os motivos que levaram Isabella Angier a abandonar o seu posto tanto no IML, como no Hospital das Clínicas e em outros hospitais menores, e o fato de serem todos relativamente obscuros. Há, entretanto, alguns motivos que eu conheço de fato, e um deles eu vou lhes contar hoje.
Já fazia quase quatro anos que estávamos trabalhando juntos, e Isabella estava casada havia três anos. Naquele momento, além dos seus vínculos empregatícios, estava concluindo sua tese de doutorado, de modo que tinha muito pouco tempo para ficar participando em campo das minhas investigações. Ela tinha, contudo, sempre algum tempo livre para poder me orientar a respeito de um ou outro caso, e não havia uma vez em que não me desse uma opinião que não se mostrasse essencial na descoberta de pistas, mesmo sem saber tudo por completo, ou ter visto o ocorrido ou a cena do crime com os próprios olhos.
Era algum dia em meados de janeiro, e eu estava no salão de autópsias de um dos hospitais em que ela trabalhava, cujo nome aqui não convém citar, uma vez que todos que estiveram a par dos acontecimentos contidos neste conto certamente vão saber a que instituição me refiro. Ela estava me explicando sobre sepse, ou, no nome mais correto, septicemia, que era o caso no qual ela estava trabalhando.
– A septicemia sempre se origina de uma fonte em algum lugar do corpo. Em pacientes internados, pode ser uma coisa simples como um cateter, ou uma infecção respiratória por intubação, por agentes da comunidade, ou por agentes hospitalares. Na verdade, quase qualquer lugar do corpo pode infectar e se disseminar para o resto do organismo. Neste caso aqui…
Naquele momento, o meu celular tocou, e eu, sentado em um banco diante da mesa na qual ela trabalhava, não tive escolha senão atender; era Marta, a minha esposa.
– Oi, amor – falei. – Não, estou trabalhando, mas pode falar. O quê? Não, estou no salão de autópsias. É, vendo coisas de um caso… Para a polícia. Não, lógico que não! Ah, amor, pare com isso, vai. Depois a gente conversa sobre isso. Bei…
Ela desligou na minha cara antes que eu terminasse a minha frase. Todo aquele tempo que eu passava junto de Isabella, e a adoração que eu tinha por ela e que eu inevitavelmente deixava escapar ao comentar com minha esposa sobre ela simplesmente a irritavam. Eu sabia que dizer que eu estava no salão de autópsias com ela a incomodava, mas também sabia que não dizer seria ainda pior, porque tornaria tudo ainda mais complicado quando ela descobrisse.
O grande problema ali era que minha esposa não entendia que eu não nutria nenhum sentimento de amor por ela; era só uma espécie de adoração, pela sua incrível capacidade dedutiva e sagacidade. Não havia nada que ela não soubesse ou não descobrisse, e isso me impressionava. Ah, sim, lógico, eu também adorava a sua beleza, mas quem não adoraria? Apesar disso, eu era um homem casado, ela também, e nós dois sempre fomos fiéis aos nossos cônjuges. Não vou negar que uma vez ou outra algum pensamento promíscuo passou pela minha cabeça, mas eu sempre me mantive no meu lugar, e ela, no dela. Mais do que minha adoração por ela, tinha respeito (e uma certa inveja) pelo seu marido. Não seria eu quem iria estragar o seu casamento; já estava feliz em apenas ficar ao seu lado enquanto trabalhávamos, uma ou duas vezes por semana.
– Olhe isso – ela falou; ela era tão discreta, que se eu não lhe falasse nada, ela nunca perguntaria sobre o que eu havia falado com Marta. – Aqui está a causa da morte desta paciente.
A paciente, como ela gostava de chamar seus cadáveres, estava deitada de lado, com a coxa esquerda para cima, na qual ela trabalhava. Conforme ela abria a sua musculatura e expunha a articulação, substituída por uma prótese de metal, eu pude ver o pus formado ao redor, e sentir o cheiro desagradável que produzia.
– E foi uma senhora infecção.
Ela deixou a mulher do jeito que estava, foi até a bancada, tomou uma seringa e aspirou o pus, para depois mandar para análise.
– Vamos ver o que cresce aqui, mas não tenho dúvidas de que é Pseudomonas multirresistente.
Eu a encarei com uma expressão de curiosidade.
– É um tipo de bactéria. Quanto mais complexo e mais pacientes atende o hospital, maiores as chances de ter uma contaminação por uma bactéria multirresistente. E cirurgias ortopédicas são especialmente complicadas por causa disso. Entre outras coisas, se o instrumental não for esterilizado adequadamente, você contamina a prótese do paciente, e isso pode levar até um ano para se manifestar, ou, às vezes, mais.
Eu assenti e anotei o nome da bactéria no meu bloquinho, para estudar depois.
– Mas esta senhorinha fez a cirurgia há duas semanas, foi internada na semana passada e morreu nesta madrugada. Coitada. Agora, vou ver como está a outra prótese.
Dito isto, ela virou o cadáver e expos a outra perna, na qual fez a incisão com a costumeira facilidade. Em pouco tempo estava me mostrando uma segunda prótese, que não estava contaminada, mas parecia demasiadamente solta dentro do osso. A prótese era formada por duas partes: uma era uma espécie de soquete, que ficava no osso da bacia, e servia para reconstruir o que se chama acetábulo. A outra era uma vara longa de metal, com uma angulação na sua ponta e uma bola, que se encaixava no soquete. Tanto a vara quanto o soquete estavam folgados nos ossos, e, com facilidade, Isabella conseguiu soltá-los do osso do cadáver.
Mas, para sua surpresa, a peça não veio inteira; a vara havia se rompido no meio, e uma parte ficara inserida no fêmur.
– Inacreditável – ela murmurou, enquanto olhava fixamente para a peça.
– Isa?
Ela estava olhando fixamente para o nada, e eu sabia que eram nestes momentos em que sua mente trabalhava como nunca. O que estaria pensando? Do que sua mente formidável havia se lembrado?
– Tive uma sensação de dejà vu – ela comentou, poucos segundos depois. – Mas não consigo me lembrar de outro caso em que isto tenha acontecido. Enfim… Vou recolocar a prótese e fechar a paciente, fazer o quê? E acho melhor pedir para fazerem uma terminal nesta sala, antes que contamine o resto do hospital. Bom, não que já não esteja contaminado…
Por terminal, ela queria se referir a um tipo de limpeza. Isabella sempre foi muito rígida com relação à limpeza, não só do seu salão, mas do hospital como um todo; e, com relação a si mesma, era impecável. Seu avental nunca estava sujo; ela nunca trabalhava sem touca, máscara e luvas (e, às vezes, dois aventais e dois pares de luvas); todos os dias ela chegava com uma roupa, trocava pelo uniforme, trabalhava e, quando ia sair, descartava seu uniforme, tomava um banho e só assim vestia a sua roupa normal. Nem mesmo os sapatos que ela usava dentro e fora do salão de autópsia eram os mesmos, e não importava quanta intimidade tivéssemos, ela nunca me deixava entrar lá sem colocar galochas ou cobrir os meus sapatos, para evitar a contaminação do resto do hospital, do carro e de qualquer outro lugar que eu entrasse em contato.
Para mim parecia um pouco de exagero no começo, e, com o tempo, foi se tornando um pouco menos exagerado, mas até hoje eu ainda acho excesso de zelo. Ocasionalmente eu me preocupo se esta mania de limpeza não se expande para outras manias dela.
Como aquela autópsia havia acabado e não havia mais nenhuma nos seus planos, achei melhor voltar para casa e tentar me reconciliar com a minha esposa, o que não foi nem um pouco fácil.
Entretanto, menos de duas semanas depois, Isabella me ligou, empolgadíssima com alguma descoberta, pedindo-me para que fosse imediatamente àquele hospital. Quando cheguei ao salão de autópsias, encontrei mais um cadáver em cima da mesa, desta vez uma mulher bastante obesa, com a coxa aberta e a prótese à mostra.
– Estava dissecando esta paciente também, quando a prótese quebrou na minha mão, como daquela vez, duas semanas atrás, lembra?
Eu concordei; havia sido uma cena que não esqueceria tão fácil.
– Bom, eu fiquei inconformada, porque era muita coincidência; duas pacientes com próteses bilaterais nos quadris, as duas infectadas com Pseudomonas multirresistente, e as duas com próteses que quebram na minha mão? Resolvi, então, levantar os meus relatórios de autópsia, e voilà! Achei. Veja só, tivemos cinco casos nos últimos meses.
– Sim. E daí?
– Bom, os cinco casos foram da mesma equipe cirúrgica.
– Deve ser um cirurgião negligente, então.
– Não, a coisa vai bem mais fundo do que isso. Venha comigo! Precisamos ver isso melhor.
Em pouco tempo estávamos subindo para o centro cirúrgico; ela ia um pouco à frente, e eu logo atrás, com medo de que fosse descoberto como não médico. Entretanto, para minha surpresa, ninguém se opôs nem tentou me parar no meio do caminho. Pouco antes da entrada para os vestiários, um homem ficava diante de um computador, onde entregava as chaves dos armários, e a única pergunta que ele fez foi com relação ao tamanho do meu uniforme, se M ou G. Despedi-me de Isabella um pouco antes da porta, e cada um tomou seu rumo, eu um tanto inseguro. Quando segui pela fila de armários à procura do meu, alguns médicos estavam se trocando, e eu apenas os cumprimentei com a cabeça, sem falar nada.
Abri o armário e ia começar a tirar a camisa, quando me lembrei da arma que carregava sempre comigo. Contive-me e procurei o sanitário mais próximo, onde me troquei. Enrolei as peças de roupa em volta da arma e depois a depositei, junto de minha carteira e meus celulares, dentro do armário. Neste meio tempo, alguns médicos já haviam se retirado, e outros, chegado. Queria esperar mais um pouco, para ter certeza de que encontraria Isabella do lado de fora e não acabaria perdido, sem conhecer ninguém, mas a minha enrolação logo começaria a ficar estranha, e decidi sair.
Devo dizer que fiquei impressionado com a sala onde entrei, o conforto médico, e tive de me esforçar para fingir que era tudo completamente normal para mim. O lugar era bastante chique, com sofás, mesas, cadeiras, um bar a um lado, televisões e computadores a outro, bancadas com comida self-service, máquinas de café, refrigerante e geladeiras com sanduíches e doces. Havia diversos médicos lá, todos com seus uniformes, uns com gorros e máscaras, outros sem, uns comendo, outros mexendo em seus notebooks, alguns assistindo à televisão. Tentei buscar por minha colega, mas não a encontrava em lugar nenhum, e tentei sair pela porta que levava para o centro cirúrgico, quando ela me puxou pelo braço.
– Fique junto comigo – ela murmurou – e finja que entende alguma coisa, porque é isso que os médicos mais fazem.
– Fingir?
– Exatamente.
De alguma forma, aquilo não me pareceu tão surpreendente.
Seguimos pela porta, subimos um andar e paramos diante de uma pequena estante, de onde ela tirou os apetrechos higiênicos – gorro e máscara. Eu ainda gastei alguns segundos tentando vestir um propé, que só rasgava no meu sapato, de tão fino que era, até ela me dizer que aquilo não era mais necessário. Joguei-o no lixo e a segui para dentro do centro cirúrgico, onde ela parou diante de um quadro branco, enorme, numerado de cima abaixo e repleto de nomes.
– Fique aqui – ela ordenou, e eu fiquei parado, observando-a enquanto caminhava pelo centro cirúrgico.
Ela passou por uma sala, depois por outra, como quem estava apenas observando o que ocorria, e por fim parou diante de uma delas, em cujo vidro estavam presos dois filmes de tomografia, para que os cirurgiões pudessem enxergar enquanto operavam. Ela pareceu incomodada com isso e abriu a porta para entrar; eu pude ouvi-la murmurar uma coisa ou outra, e não levou mais do que cinco segundos para que uma enfermeira surgisse ao seu lado e pedisse que saísse.
– Doutora, por favor, o doutor Marco Antônio não gosta de ser perturbado enquanto opera.
– Sim, eu sei, mas eu preciso tirar uma dúvida…
– Tire depois que eu tiver acabado – ele respondeu, grosseiramente, de dentro da sala. – Saiam logo daqui. Vocês duas estão me atrapalhando.
Isabella se deixou levar pela enfermeira.
– E a senhora é a doutora…?
– Noele. Doutora Noele. Eu sou do Hospital das Clínicas, tinha combinado com o doutor Marco Antônio de me encontrar com ele…
– Tenho certeza de que, se a senhora combinou com o doutor, ele falou para ser só depois da cirurgia.
– Sim, ele falou, mas eu cheguei adiantada e achei que…
Ela balançou a cabeça em reprovação.
– O doutor Marco Antônio não gosta nem de ser interrompido, nem que ninguém veja a sua cirurgia. Ele só opera no mais absoluto silêncio. Nada pode atrapalhar a sua concentração.
– Tudo bem, tudo bem, me desculpe. Vou esperar lá no conforto.
Dito isto, ela veio em minha direção e me levou de volta para o salão.
– Espere aqui. Eu vou ver o que eu consigo descobrir.
– Mas eu vou ficar fazendo o quê, aqui?
– Sei lá. Cheque seus emails, veja um pouco de TV. Não sei. Eu volto logo.
E desapareceu pela porta novamente, enquanto eu fiquei no meio da sala, olhando para os lados, incerto. Já havia trabalhado infiltrado em algumas ocasiões, mas em todas elas eu tivera tempo para me preparar. Era muito difícil uma infiltração em que não se sabia exatamente que tipo de pessoas se iria encontrar, ou como se portar no meio delas. Era necessário aprender o linguajar, no mínimo, e, no caso de medicina, eu não sabia quase nada, apenas uma coisa ou outra que havia pegado durante as explicações de Isabella.
Desta forma, achei melhor me sentar de fato diante de um computador e checar meus emails. Levei mais de meia hora nesta tarefa, e ela ainda não havia voltado; sem mais o que fazer, e vendo que outras pessoas queriam usar o computador, levantei-me e decidi assistir ao jornal.
Não demorou mais do que um minuto para que um médico se sentasse ao meu lado e também se pusesse a assistir. Respirei aliviado quando, alguns minutos depois, ele se levantou e saiu.
– Doutor? Doutor?
Levei alguns segundos para associar o chamado a mim mesmo.
– Oi? – indaguei para uma moça, vestida de garçonete, que estava ao meu lado.
– O doutor gostaria de alguma coisa? Café, chá, refrigerante?
– Vou querer um café. Puro, por favor.
Isso traria mais naturalidade à minha presença.
Olhava no relógio constantemente, mas nada de Isabella retornar; mais um pouco, eu imaginava, e viriam me perguntar que raios de médico eu era, que estava gastando mais tempo assistindo à televisão do que dentro do centro cirúrgico. O que, como pude observar após algum tempo, não era tão incomum assim…
Já havia passado de um jornal para outro, quando um médico novamente se sentou ao meu lado; ficou alguns momentos em silêncio, sem nem ter me cumprimentado, e repentinamente se virou com a maior naturalidade, como se eu fosse um antigo conhecido:
– E o Palmeiras, ehm? Que vergonha está este ano, não?
Fiquei aliviado com aquele comentário; aquele tipo de assunto eu dominava.
– Bom, e o Santos, que começou tão bem, e veja onde está agora.
Entabulamos uma conversa sobre os mais diversos assuntos por um longo tempo; como percebi, embora a maioria dos médicos só falasse sobre medicina em quase todas as situações, para cirurgiões, os assuntos eram bastante diversos: esportes, viagens, aparelhos eletrônicos, carros… Estava justamente comentando sobre os novos lançamentos da Hyundai, quando Isabella retornou e me chamou; despedi-me do médico, e a encontrei do lado de fora do vestiário, já trocado.
– E aí, o que você descobriu?
– Acho melhor falarmos disso em outro lugar.
Nós deixamos o hospital e fomos almoçar em um restaurante um pouco distante, onde ela tinha certeza de que não haveria nenhum funcionário que pudesse nos escutar.
– Como eu falei, isso vai muito mais fundo do que um simples problema de infecção hospitalar.
– E o que é?
– É um esquema de reutilização de próteses e de colocação de próteses de baixa qualidade, para aumentar o índice de reoperações.
Eu fiquei surpreso diante daquilo; sabia que havia diversos esquemas para se lucrar nas mais diversas áreas da humanidade, mas não imaginava que os médicos pudessem ser tão cruéis assim. Estavam mexendo com vidas!
– E como você chegou a essa conclusão?
– Bom, minha primeira suspeita começou quando, como você viu, eu dissequei o quinto caso com os mesmos problemas. E todos de uma mesma equipe. Ora, se fosse um problema com o fornecedor de próteses, ou com contaminação do instrumental, pacientes de outras equipes cirúrgicas teriam tido os mesmos problemas. Mas, no caso, era de uma equipe só. Se fosse somente a infecção, talvez eu pudesse pensar em negligência do cirurgião, mas… Próteses frágeis? Sempre uma delas já meio solta, quando a outra foi substituída? Isso apontava para uma coisa só: era proposital. E eu quis ver com meus próprios olhos.
– E você conseguiu ver alguma coisa, antes da enfermeira te tirar de lá?
– Consegui. Um pouco, pelo menos. Eles têm todo um esquema montado para evitar que as pessoas vejam o que está acontecendo, e isso é lógico. A desculpa de radiografias na janela para enxergar e de não querer ser interrompido durante a cirurgia são bastante críveis. E a equipe de enfermagem quase inteira age como cúmplice. Você sabe como é; certos hospitais particulares favorecem principalmente os médicos, em detrimento do resto da equipe e até mesmo do paciente. Assim, fica tudo nas mãos deles. Eles mandam e desmandam.
Eu assenti; era algo horrível de se pensar.
– Quando abri a porta da sala, pude ver o cirurgião removendo uma das próteses e entregando para a representante da fábrica, enquanto o assistente já se preparava para implantar a prótese nova. O que não seria algo tão incomum, se eu não soubesse o que está por trás. Você viu que ele não ficou nem um pouco feliz, mas tenho certeza de que a reação teria sido muito pior, se ele estivesse falando algo realmente comprometedor no momento. Mas, ao que parece, eles fazem isto com naturalidade e sem falar absolutamente nada a respeito. Custou um pouco, mas eu consegui obter algumas informações de outros funcionários.
– Como você conseguiu?
– Devo dizer que eu tenho meus métodos. Mas bastou parecer uma ortopedista interessada em entrar no esquema para conseguir o número da representante. Liguei para ela depois que vi que a cirurgia acabou e marquei um encontro para mim e para a minha equipe, para conversarmos a respeito.
Ela se recostou na sua cadeira, sorrindo de satisfação.
– Realmente, você deveria considerar ser uma investigadora…
– Não, porque meu papel acaba aqui. Não tenho o menor interesse em prosseguir no resto desta investigação. Já preparei tudo para você, agora é só vocês se organizarem. Acho que conseguem todas as informações de que precisam.
– Mas, Isa! Precisamos de alguém que saiba de ortopedia para ir conversar com a representante!
– E tenho certeza de que vocês têm ou conseguem investigadores preparados para isso. Eu mesma não sou lá nenhuma profunda conhecedora de ortopedia para poder ir à reunião.
– Mas você descobriu tudo tão fácil!
– Porque era óbvio. Você não precisa saber muito de ortopedia para suspeitar do que estava acontecendo.
Suspirei. Eu sabia que, quando ela estava decidida, não havia nada que a demovesse.
Ela tomou seu último gole de suco e me olhou, sorridente.
– Acredita que o ortopedista veio conversar comigo, depois? Ele veio perguntar o que eu queria.
– E o que você disse?
– Bom, eu falei assim: “Doutor Marco Antônio?”. “Antônio Marcos”, ele respondeu. E eu disse: “Puxa, me confundi, então! Eu queria falar com Marco Antônio, o otorrinolaringologista. Bem que eu estranhei aquela radiografia na porta, mas enfermeira disse que era o senhor…”. E, dito isso, ele me cumprimentou e se foi.
Eu ri abertamente.
Isabella me passou todas as informações necessárias para prosseguir com a investigação naquele dia mesmo. Passamos a semana seguinte nos preparando, e em pouco tempo conseguimos montar uma equipe que pudesse participar da reunião. De fato, era como ela havia falado: a equipe estava envolvida. Eles colocavam próteses de qualidade mais baixa, o que fazia com que os pacientes tivessem de trocar mais cedo. Com isso, a empresa vendia mais, o médico ganhava mais, e todos os custos caíam sobre os convênios ou o SUS. Nos casos em que o paciente tinha, de fato, de trocar uma prótese de boa qualidade por qualquer motivo, eles reutilizavam a peça que tinham pegado de outro paciente. O sistema de esterilização, no entanto, ocasionalmente era falho, o que levava aos altos índices de infecção.
Nossa investigação, contudo, perdurou por longos meses; conseguimos obter informações de diversas equipes cirúrgicas, e não só neste hospital, como em alguns outros. Descobrimos que era uma espécie de máfia, que se estendia por toda a cidade.
A minha amiga ficou tão chateada com a situação que, poucos meses depois, quando estava dissecando o oitavo caso no qual acontecera exatamente a mesma coisa, pediu demissão. Não conseguia trabalhar em um local onde pacientes morriam desnecessariamente para o ganho de outros, como ela mesma disse. E, assim, gradativamente foi perdendo o gosto pela sua profissão, culminando no seu abandono da cidade, poucos meses depois.

O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais