A aventura de Anúbis
Repensando algumas aventuras pelas quais já passei com Isabella, consigo me lembrar de diversas ocasiões nas quais ela mostrou uma sagacidade inesperada e uma capacidade de juntar fatos que até então pareciam totalmente dispersos de uma forma simplesmente impressionante. Contudo, a aventura que talvez mais tenha me impressionado até hoje pela sua capacidade inacreditável de dedução a partir de dados simples foi uma que denominei de “A aventura de Anúbis”, que vou lhes contar agora.
Durante uma das revoluções que ocorreu no Egito no começo do Século XXI, o museu foi saqueado e centenas de peças desapareceram. O próprio povo lutou para evitar uma depredação maior e diversas peças foram retornadas ao seu lugar de origem, especialmente porque, para os ladrões, a tarefa de revendê-las era muito difícil, embora, na maioria das vezes, tivessem compradores relativamente certos. O impacto desta situação foi tão grande, que o responsável pelos tesouros arqueológicos do Egito foi demitido do seu cargo, e depois readmitido, pois seria o único que conseguiria recuperar todas as relíquias perdidas. O Estado, depois disso, minimizou o que havia sido perdido e maximizou o que havia sido recuperado, dizendo que, naquele momento, apenas poucas coisas estavam faltando, e logo todo o tesouro arqueológico do Egito seria recuperado.
Eu, contudo, nunca imaginaria o enorme impacto que isto poderia ter aqui no Brasil. Em um certo dia, alguns meses depois deste episódio, Isabella me chamou para ver a autópsia de um caso com ela, dizendo que tinha algo muito importante para me mostrar. Como não tínhamos nenhuma investigação que necessitasse de mim em andamento, após cumprir as minhas obrigações na central, dirige-me para o Hospital das Clínicas.
Encontrei-a sentada a um computador, com alguns papéis na mão, e ela apenas me cumprimentou à distância. Estava vestida com o jaleco, mas os seus cabelos presos em um coque firme atrás da cabeça mostravam que havia pouco realizara uma autópsia.
– Dê uma olhada no homem que está na mesa um – ela disse, ainda sem tirar os olhos do computador.
Eu caminhei para a mesa mais próxima, onde estava deitado e coberto até o peito um homem de altura mediana, pele escura e aparentemente não mais do que trinta anos. Utilizando-me de tudo que havia aprendido com ela com relação à observação de detalhes, eu tentei prestar atenção a tudo; seu nariz aquilino, seus cabelos escuros como a noite, o bigode, as marcas de queimadura do sol, mostrando que ele provavelmente trabalhava ao ar livre, e com algum trabalho manual, pois a sua musculatura dos ombros era relativamente avantajada em relação ao corpo. Removi o lençol para ver que ela sequer havia começado a sua autópsia e fiquei imaginando o que a havia intrigado tanto, antes mesmo de começar a trabalhar.
O homem já deveria ser magro, mas no momento encontrava-se bastante emagrecido, com a pele ressecada, como se tivesse perdido peso e desidratado de forma importante nos últimos dias. Olhando com mais detalhes, até mesmo seus cabelos pareciam mais esparsos do que deveriam. Decidi olhar mais alguns detalhes e pude observar uma marca de relógio em sua mão esquerda, e uma aliança – que estava raspada, mas apenas na parte que ficava virada para a palma, e ainda não havia sua marca nos dedos. Era um homem, portanto, recém-casado.
Pouco depois ela parou atrás de mim e me perguntou o que eu havia achado; passei todas as informações que a tanto custo havia angariado, e ela concordou, satisfeita.
– Você tem uma capacidade de dedução bastante louvável. Só falta um pouco mais de conhecimentos médicos para você praticamente fazer o meu serviço. A primeira coisa que fiz com este paciente, antes de sequer pensar em começar a autópsia, foi prestar atenção a todos os detalhes, como sempre faço. Bom, posso ver, como você disse, um homem de algo em torno de vinte e sete anos, trabalhador braçal, muito provavelmente pedreiro, casado há não muito tempo, que está sofrendo de uma doença consumptiva crônica, mas que, há pouco tempo, começou a piorar.
– Doença consumptiva?
– É uma doença que faz você emagrecer e enfraquecer com o passar do tempo.
– Ah, sim. Mas, de onde você supôs tudo isso?
– Bom, quanto ao fato de ser casado, você mesmo já explicou. De ser pedreiro, pelo tamanho de suas mãos e grossura de suas palmas. Ele está sofrendo de uma doença consumptiva pela distribuição de gordura no seu corpo, que me leva a crer que ele vem perdendo peso. Contudo, ele continuou trabalhando, e a musculatura que ele usa no seu dia a dia ficou bastante evidente. No entanto, como você pode ver, ele não vem trabalhando com tanto afinco, pois as suas pernas estão mais atrofiadas do que seus ombros. Ele deve ter se restringindo a trabalhos mais locais e, talvez, nos últimos dias, até mesmo não deve ter trabalhado. Isto, associado ao seu estado de desidratação, me diz que a sua doença piorou nos últimos dias. Veja como está escavada a sua bochecha.
Assenti, observando o corpo diante de mim; o que ela dizia inicialmente era impressionante, mas quando explicado, tornava-se bastante simples e claro.
– Seu nome é Ahmed Diab, e ele é egípcio naturalizado brasileiro. Chegou ao Brasil com cinco anos. Ele chegou ao hospital trazido pela sua esposa, queixando-se de muitas náuseas, dor de cabeça e cansaço. Estava com diarreia havia alguns dias e visivelmente desidratado. Coitada, ela ficou ao seu lado o tempo todo, até que ele morresse.
– E ele morreu de quê? – indaguei.
– Tenho algumas hipóteses, mas ainda não confirmei nenhuma delas. O que me deixou surpresa foi este exame.
Ela me entregou um papel com os resultados de um hemograma, e eu não entendi muito; apenas vi que as suas células do sangue estavam todas abaixo do normal.
– E era isso que eu estava procurando no computador. Nós precisamos do endereço dele para ir falar com a sua esposa. Se o que eu estou pensando está certo, ela tem algo em sua casa que pode ser perigoso para todos da região.
– O quê?
– Objetos amaldiçoados de Tutancâmon.
– Ahm? – indaguei eu, rindo. – Você deve estar brincando comigo.
– André, em todo este tempo em que nos conhecemos, quantas vezes eu brinquei em serviço?
Nenhuma.
– Está bem. O que você quer que eu faça?
– Precisamos ir para este endereço.
Ela me entregou um papel, no qual constava um endereço do Butantã, um bairro próximo; vendo a urgência em sua expressão e sabendo que, em geral, ela não gostava de dizer nada até ter certeza do diagnóstico final, fomos para o meu carro e, de lá, para o endereço que buscávamos.
Era uma pequena casa, no topo de uma ladeira estreita, embrenhada no meio de dezenas de casas de alvenaria construídas, muito provavelmente, de forma não oficial. Seu portão era de metal, porém já bastante velho e gasto, encobrindo uma área concretada, com arames de um lado ao outro do muro, nos quais roupas estavam penduradas. A entrada da casa ficava alguns metros a frente, e possuía um corredor lateral, também de concreto, que levaria para uma segunda entrada, na cozinha. Não havia, contudo, campainha, e tivemos de bater palmas para sermos atendidos.
Em resposta, um cão de aparência asquerosa veio latindo em nossa direção, tão fracamente que me deu um pouco de pena. Seus pelos estavam todos falhados, e ele parecia magro como se não comesse havia semanas.
– Dona Farida! – Isabella chamou.
– Já vou – respondeu uma voz de dentro, e nós ficamos esperando ansiosamente do lado de fora.
O bairro parecia tão perigoso, que a todo momento eu levava minha mão ao coldre, como se para estar preparado para reagir a qualquer imprevisto.
A mulher que apareceu diante de nós um dia deveria ter sido linda – possuía uma pele de cor bastante semelhante à do cadáver que havíamos visto, os olhos verdes como esmeraldas, os cabelos negros e cacheados, e um corpo que deveria ter sido voluptuoso, mas, no momento, estava bastante emagrecido e perdido entre as roupas largas e escuras de uma mulher em luto.
– Quem são vocês?
– Meu nome é Isabella Angier, sou patologista do Hospital das Clínicas. Este é André Dias, um colega. Viemos aqui por causa de seu marido, Ahmed Diab.
– Vocês descobriram o que aconteceu com o meu marido?
Sua expressão era um misto de tristeza e ansiedade.
– Ainda não. Estou esperando o resultado de alguns exames… Podemos entrar, Farida?
– Podem, lógico – ela respondeu, tomando uma chave em mãos. – Não se preocupem com o cachorro, ele está velho demais para fazer qualquer coisa…
A moça teve alguma dificuldade para escolher a chave certa e, tremendo um pouco, colocou-a na fechadura. Contudo, estava tão nervosa, acredito, que a deixou cair, com uma expressão de desgosto, e se abaixou para pegar o molho novamente. Quando se levantou, no entanto, olhou para mim e, assustada, recuou um pouco.
– Eu não fiz nada! Não foi culpa minha! – ela exclamou, derrubando as chaves novamente. Isabella lançou apenas um olhar para o meu coldre e, encarando-me com uma expressão de desaprovação, virou-se. – Eu não tenho nada a ver com aquilo!
– Farida, espere! Nós viemos por causa do seu marido!
Mas não adiantou; em poucos segundos ela havia voltado para sua casa.
– Você tem que andar mostrando essa porcaria para todo mundo?
– Eu sou policial!
– Mas você não é policial a paisana? Que raios de paisana é essa que deixa arma à mostra?
Eu não sabia o que responder; senti-me envergonhado, especialmente por ter recebido uma reprovação com tanto desgosto de uma pessoa que tanto admirava e cujo intelecto parecia estar tão adiante do meu. Ela suspirou.
– Não queria ter de fazer isso – disse e se agachou, pegando a chave.
Considerando o quão moralmente rígida Isabella era, cometer aquele ato de invasão só podia significar uma coisa: falar com aquela egípcia era extremamente importante. Ela abriu o portão e lançou um olhar de reprovação para mim novamente.
– Dê um sumiço nessa arma e fique só perto da porta! – exclamou, entrando.
Segui-a de perto; o cão, como a dona bem havia falado, estava tão velho que sequer tentou nos atacar. Apenas ladrou de leve, e logo se retirou para a sua cama. A minha companheira indicou para que eu ficasse diante da porta da sala e caminhou pelo corredor lateral até a porta da cozinha, que estava destrancada. Pouco depois, ouvi sons dentro da casa, a conversa entre as duas, e em pouco tempo a porta da frente se abriu.
– Ela deixou você entrar. Mas cuidado com o que você vai falar, ehm! – Isabella exclamou.
A sala em que entrei era bastante simples: possuía um sofá novo, um antigo, uma estante evidentemente antiga, trazida da casa de outra pessoa, uma televisão e só. Entretanto, era notável a quantidade de apetrechos egípcios que havia em todos os lugares: tapeçarias de parede, papiros, imagens de máscaras, esfinges e pirâmides, e até mesmo um narguilé no chão, com saída para quatro bocais.
As duas mulheres se sentaram no sofá mais novo, que era de três lugares, e eu fiquei no antigo, em silêncio.
– Farida, você é natural do Egito, também?
– A minha família e a de Ahmed vieram do Egito há mais de vinte anos – ela respondeu, fracamente.
– Você já o conhecia então há muito tempo?
– Nós crescemos juntos. Eu, Ahmed, Alfed e Samira, que se casou com Alfed poucos meses atrás.
Ela ficou alguns momentos em silêncio depois disso; pude ver que lágrimas escorriam de seus olhos.
– Eu conheci os dois.
– Verdade? Como?
Isabella inclinou um pouco a cabeça e a encarou com compaixão; preferiu não responder e mudou de assunto.
– Farida, você ganhou recentemente algum objeto do Egito?
A mulher a encarou amedrontada e, com os olhos arregalados, olhou para mim.
– Não se preocupe; o André não está de serviço, e o que eu estou lhe perguntando é apenas por fins médicos. Você ganhou recentemente um par de braceletes que brilham no escuro?
A sua expressão passou de medo para surpresa, conforme olhava para a médica diante de si.
– Como você sabe?
– Isto não importa no momento. Você ganhou ou não?
– Acho que não tenho muito por que esconder… – ela falou. – Ahmed trouxe aquelas peças amaldiçoadas da casa do seu irmão, Alfed, logo depois que ele morreu, coisa de três meses atrás. Eram dois braceletes e uma estatueta de Anúbis, com olhos que também brilham no escuro.
– E de onde ele conseguiu essas peças?
– Um tio deles, Mohamed, deu de presente de casamento. Disse que eram peças de ouro, mas eu nunca imaginei que as peças fossem realmente de verdade, até que… Ahmed morreu. Achei que tivesse sido só coincidência.
– A morte de Samira e Alfed?
– Sim… – ela respondeu e limpou as lágrimas com um lenço. – Eu achei que tivesse sido alguma virose que a Samira pegou, e o Alfed, depois, morreu de uma infecção, e eu achei que fosse de depressão, por causa da morte dela, sabe? Porque ele foi minguando depois que ela morreu…
– E o Ahmed pegou os presentes e lhe deu?
– Isso. Mas eu nunca tive coragem de usar os braceletes, por mais bonitos que fossem. Ele até brigou comigo por causa disso, disse que eu era fresca, e, nos últimos dias, nós brigamos, e… – ela soluçou.
– Onde ficava a estatueta?
– Aqui na estante, do lado do sofá.
– E os braceletes?
– Eu guardei numa caixa de joias, dentro do armário, no quarto.
– E onde estão agora?
– Eu joguei na rua hoje de manhã. Não quero mais saber daquelas peças amaldiçoadas! – ela exclamou.
Isabella se levantou de imediato.
– Onde você jogou?
– Na lixeira da esquina.
– Obrigada pela sua ajuda, Farida. Quando tivermos alguma resposta para a causa de morte do seu marido, vamos entrar em contato.
Ela se despediu rapidamente e, chamando-me, correu para fora.
– Precisamos achar essas peças de qualquer forma – ela exclamou.
– E destruir antes que mais alguém seja amaldiçoado? – zombei.
– Exatamente.
Surpreso com a sua resposta, parei. O que ela queria dizer com aquilo? Seria possível que ela, Isabella Angier, a mulher mais lógica que eu já conheci em toda a minha vida, estava acreditando em maldições de antigos faraós?
Mas ela não disse mais nada a respeito. Do lado de fora, olhou para as duas esquinas, calculando qual era a mais próxima, e correu para a de cima. Destampou um grande latão de plástico azul, no qual as pessoas jogavam seus lixos e, colocando um par de luvas que sempre carregava consigo, começou a tirar, saco por saco, e procurar.
– Num dianta, dona, ninguém vai ter sorte como aquele cara.
Nós olhamos para o lado; sentado em uma cadeira, no meio do portão entreaberto da sua casa, estava um homem de cabelos brancos e curtos apenas nas laterais da cabeça, uma barba de algumas semanas e uma barriga protuberante.
– Que cara?
– Umas par de hora atrás um catador de lixo passou aqui e mexeu na lixeira, coisa que ele faz todo dia. Mas, de repente, eu ouvi ele gritando que tava rico e saí correndo aqui fora pra ver. Ele tava com uns negócios de ouro nas mãos, e tava gritando que finalmente tinha tido a sorte grande. Ara! Se eu mesmo tivesse ido jogar o lixo mais cedo, eu teria achado essas coisa aí, e eu que taria milionário agora.
– Eram dois braceletes e uma estátua de ouro?
– Isso, dona! – o outro exclamou de volta, batendo na perna.
Isabella suspirou, apoiando as mãos na cintura.
– E você viu para onde ele foi?
– Largou todas as coisa aqui e saiu correndo lá pra baixo.
Ela não respondeu, mas apenas pegou o seu Ipad de dentro da bolsa e começou a mexer. Neste meio tempo, aproveitei para tirar informações a respeito do homem; tinha aproximadamente um metro e oitenta, era morador de rua já havia bastante tempo e passava todos os dias por lá, para procurar latinhas e papelão para vender. Ele não sabia seu nome, nem a sua idade, mas deveria ter algo em torno de quarenta anos. Tinha os cabelos pretos, bem sujos, com uma barba enorme, e era muito bom de pinga. Mais informações do que isso, o homem não poderia dar.
– Me empreste a chave do seu carro – Isabella falou.
– O quê? Por quê?
– Porque eu preciso dele!
– E como eu fico?
– Eu volto logo. Tente ver se você não encontra o homem pelas redondezas.
Ainda que incerto, eu lhe entreguei a chave e, enquanto a via desaparecer rua abaixo, peguei o meu rádio e liguei para a central, pedindo que repassassem a informação para todos os policiais de rua. Obviamente, riram de mim.
– André, qualquer um pode cair nessa sua descrição!
– Bom, então, parem todos os que forem assim e mandem revistar! Estamos procurando uma estatueta e dois braceletes de ouro – eu respondi, rispidamente.
Passei a próxima hora tirando informações de outras pessoas da rua, mas ninguém parecia ter muito mais detalhes sobre o homem. De tempos em tempos algum colega me ligava, dizendo que havia parado um ou outro morador de rua, mas que nenhum deles carregava as peças que eu havia falado.
Eram aproximadamente duas horas da tarde, quando Isabella retornou com o meu carro e me pediu que entrasse.
– Para onde vamos? – perguntei.
– Você já vai ver.
Cruzamos para o outro lado da avenida e nos dirigimos para pouco menos de dois quilômetros à frente, onde entramos em uma rua, depois de mais algumas quebradas, paramos diante de uma loja de penhores.
– As nossas peças devem estar aqui.
– Como você sabe? – perguntei.
Ela, contudo, não respondeu; apenas saiu do carro e se dirigiu para a loja.
O lugar era pequeno e apertado, mas uma clássica loja de penhores; por todos os lados havia estantes e mesas com portas de vidro, barradas por metais, para que não pudessem ser arrombadas. Atrás do balcão, um homem com aparência de turco e bigode nos cumprimentou com um sorriso.
– Posso ajudá-los com alguma coisa?
– Eu e o meu marido estamos procurando alguma coisa para a decoração da casa – Isabella disse, puxando-me para perto dela. Eu a encarei, em dúvida; por que mentir sobre o fato de sermos casados? – E nós gostamos muito de arte egípcia. Será que você tem alguma coisa aqui?
– Ah, mas a senhora tem uma sorte muito grande! Isto acaba de chegar! – o homem exclamou e, destrancando uma parte do balcão, retirou uma pequena estatueta de ouro, representando um homem de não mais de vinte centímetros, com cabeça de cão, os olhos brancos e brilhantes.
– É Anúbis! – ela exclamou, com os olhos brilhando. – Mas que maravilhoso! De onde é?
– Um velho conhecido meu trouxe do Egito. É uma peça feita de ouro puro.
– Mas é uma antiguidade de verdade?
– Sim, sim.
– E onde está o certificado de autenticidade?
O homem ficou um pouco desconcertado.
– Estou esperando receber pelo correio do Egito, mas garanto que envio para a senhora assim que receber. E, veja só, isto aqui chegou hoje também – ele disse, colocando sobre o balcão dois braceletes de ouro, finamente decorados e com veios serpenteando em branco pelo meio. – São de ouro puro, também.
– São lindos! Veja só, querido, que coisa maravilhosa! – ela exclamou. – Os braceletes e uma estatueta de Anúbis! Não é perfeito? Quanto eles custam?
– Bom, considerando que eles são obras originais e…
Mas o homem não terminou a frase.
– Parado aí! Todo mundo com as mãos pro alto!
Eu me virei para encarar um grupo de quatro moleques, vestidos com casacos e capuzes, armas apontadas para nós. Olhei para Isabella e para o vendedor e, lentamente, ergui minhas mãos. Eles fizeram o mesmo.
– Vai, véio, abre essas porta aí e bota tudo na sacola!
O garoto da frente jogou um saco para o homem, que, tremendo, tomou uma chave, abriu a o balcão novamente e começou a colocar todo o conteúdo no interior da sacola de pano. Dois garotos ficaram apontando as armas para nós.
– Anda logo, anda logo! – o primeiro ordenava.
– Tudo bem, não precisam ficar nervosos – eu falei, tentando acalmar a situação, antes que alguém disparasse. – Ele já está pondo tudo na sacola. Ninguém aqui vai reagir. Vocês podem agir com calma.
– Fica quieto aí!
– Eu só não quero que vocês façam nenhuma bobagem.
– Pronto! – disse o homem, colocando com algum esforço a sacola sobre o balcão.
O quarto garoto correu e pegou a sacola com as duas mãos.
– Bota a estátua e as argolas também! – o líder mandou, e o vendedor obedeceu.
Eu fechei os olhos e suspirei. Droga! Só porque tínhamos achado!
– Vambora, vambora!
Um ficou apontando a arma para nós; outros dois correram para fora, para ver se não havia ninguém, e entraram no carro; o terceiro arremessou a sacola para dentro e saltou no banco de trás. O derradeiro, por fim, enquanto um, já sentado no carro, apontava a arma para dentro da loja, correu e entrou. O carro arrancou e, cantando pneus, saiu.
Eu não hesitei por sequer um minuto; corri para o meu carro e saí atrás deles, tentando evitar que me identificassem, escondendo-me atrás de outros carros. Pelo rádio, mandei a informação de perseguição, e logo todos já estavam atentos para um Celta preto, de vidros escuros e rebaixado.
Eles avançaram pela Avenida Eliseu de Almeida e entraram em uma das ruelas; algumas quebradas depois, estavam na Avenida Professor Francisco Morato, pela qual seguiram na direção bairro até o Habib’s. Lá, eles fizeram o contorno bem devagar, para não chamar a atenção da polícia, e quase cruzaram no vermelho, mas se controlaram e pararam como primeiros da fila. Eu notifiquei pelo rádio, parado um carro atrás, e logo os policiais avançaram para o celta. Logo ao início da abordagem, o motorista acelerou e cruzou no sinal vermelho, escapando por pouco dos carros cruzando; eu, logo atrás, subi pela calçada e o segui, ligando a sirene dentro do carro. Os outros policiais entraram na sua S10 e vieram logo atrás.
Os ladrões andaram pela pista de ônibus apenas o suficiente para desviarem do trânsito e, fazendo uma curva fechada diante de todos os carros no cruzamento, entraram na avenida transversal, subindo em direção ao estádio do Morumbi. Eu estava logo no seu encalço, e eles, vendo que não tinham como escapar do meu carro, logo colocaram os braços para fora e começaram a atirar. Sendo o meu blindado, eu não me importei e avancei novamente, encostando a frente da minha Hilux na traseira do carro fugitivo; eles continuaram atirando.
Preocupado com os motoristas que estavam ao lado, eu tentei avançar e prensá-los contra o canteiro central; logo atrás de mim vinha a outra viatura, e, pelo outro lado da avenida, outros já se aproximavam, com as sirenes ligadas. Eu colei na lateral direita do Celta; a S10 logo atrás de mim fez o mesmo com a sua traseira; e, na primeira lombada que surgiu, velozes como estávamos, o pequeno carro saltou e caiu no canteiro central, batendo em uma árvore.
Eu abri a minha porta e me abaixei, apontando a arma por cima e olhando pela janela. Logo ao lado outros carros estacionaram e policiais saíram armados. Os bandidos saíram do carro atirando, nós trocamos alguns tiros, mas não demorou muito, e dois estavam caídos no chão, mortalmente feridos. Um havia recebido apenas um tiro no ombro e, desarmado, entregou-se; o quarto, por fim, largando a sacola dentro do carro tentou fugir, mas foi pego pouco depois, a alguns quarteirões dali.
Quando a cena estava novamente segura, a primeira coisa que fiz foi ir até o carro e abrir o saco; enquanto o SAMU chegava e socorria os meliantes, eu procurava a estatueta e as argolas naquela sacola cheia até a boca, que havia esparramado tudo pelo chão do carro, mas não encontrei nenhum deles. Onde estariam? Quando trouxeram o quarto ladrão, pedi que o revistassem, mas nada; circulei pelos arredores, tentando achar as peças roubadas, mas, por mais que procurasse e refizesse os passos do garoto, não as encontrei.
Foi apenas na terceira tentativa consecutiva que notei que estavam me ligando no celular; era Isabella.
– Alô?
– André! Está tudo bem?
– Está sim.
– Ah, graças a Deus! Eu fiquei preocupada quando você saiu que nem louco atrás deles!
– Não, está tudo bem. Nós os pegamos. Todos os quatro. E você vai ver dois deles de novo lá no IML.
Pude sentir que, mesmo através do telefone, ela estava retorcendo seu nariz em desaprovação.
– Mas não consegui achar nem a estatueta, nem os braceletes, em lugar nenhum! – exclamei, inconformado.
– Então venha me buscar, que eu vou mostrar onde estão. Estou esperando você na padaria aqui da esquina.
Quando cheguei à padaria, ela estava sentada, tomando um café e vendo o jornal na televisão, que mostrava a perseguição, gravada por um helicóptero, enquanto um homem gordo, de terno, vociferava ferozmente contra os “meliantes que não deixam sequer um trabalhador comum viver honestamente!”.
No momento em que parei ao seu lado, ela se levantou e me abraçou.
– Graças a Deus está tudo bem! – ela disse, abraçando-me longamente. Pude sentir todo o seu corpo colado no meu e tive de admitir que, se aquela era a recompensa, o esforço havia valido a pena.
Quando nos separamos, mal podia esperar para que algum outro evento ocorresse e eu tivesse outra recompensa daquelas.
– Quase que eu perco meu falso marido! – ela exclamou, sorrindo. Como era lindo o seu sorriso!
– E as peças?
– Vamos voltar para o HC, que eu te mostro – ela respondeu, misteriosamente, e, sem falar nada, nós entramos no carro e tomamos o caminho de volta.
No carro, ela pegou o celular e discou um número anotado em um papel. Pelo que pude entreouvir da conversa, ela estava falando com Farida e lhe pedindo que fosse ao hospital imediatamente e procurasse por ela.
Enquanto cortava o caminho por uma paralela à Avenida Rebouças, não pude deixar de pensar se as peças seriam, de fato, amaldiçoadas; lembrei-me das três pessoas que haviam misteriosamente morrido, da mulher doente, do vendedor assaltado e dos quatro bandidos. Seria tudo parte de uma maldição egípcia milenar?
Ao chegarmos ao hospital, ela me levou para a sua sala, onde tinha o seu computador. Fechando a porta, abriu sua bolsa e colocou sobre a mesa a estatueta, os braceletes e alguns papéis.
– Onde elas estavam, afinal? – eu perguntei, sem acreditar.
– Acho que a sacola estava tão cheia, que eles deixaram cair, junto com algumas outras peças, no chão, em frente à loja. Logo que você saiu, eu fui até a rua e, quando vi as peças no chão, corri para esconder na minha bolsa. Depois peguei as outras e fui levar de volta para o vendedor. Ele estava tão nervoso, coitado, que nem sabia o que estava fazendo. Eu dei para ele um copo de água com açúcar, para ver se ajudava em alguma coisa, e, como todo bom placebo, ele se acalmou rapidinho. Um grande mentiroso ele é, sabia? Depois de tudo aquilo, ele me contou que tinha acabado de comprar as peças de um homem com aquela descrição que você conseguiu. Sabe quanto ele pagou? Quinhentos reais, só! E disse que pretendia vender por pelo menos quinze mil a estatueta, e mais cinco mil cada bracelete!
Ela balançou a cabeça, inconformada.
– O pior é saber que essas coisas não têm nem preço! É isso que dá ser ignorante. Ele não estava vendendo nem pelo valor do ouro.
– Mas… Isa… Como você descobriu onde as peças estavam, em primeiro lugar?
– Ah, não foi tão difícil. Você vê, a primeira coisa em que você pensou foi tentar achar o homem, o que é típico de um policial. Eu, por outro lado, resolvi pensar de outra forma: se eu fosse um catador de lixo e achasse três peças provavelmente valiosas, o que eu iria fazer? A primeira coisa seria tentar vender. E onde eu posso vender coisas que parecem de ouro? Em uma loja de penhor. Eu procurei na internet as lojas de penhor mais próximas dali e achei três. Resolvi tentar as duas primeiras e, como não consegui nada, fui buscá-lo para ir à última. Tinha praticamente certeza de que a estatueta estaria lá.
– Lojas de penhores! – eu falei, batendo a mão na testa. – Mas é lógico! Como que eu não pensei nisso?
– Eu não sei – ela disse, sorrindo.
– Mas, e como você descobriu que era isso, em primeiro lugar? Como você sabia que eram tanto as estatuetas, quanto os braceletes?
– Bom, aqui eu devo dizer que foi um toque de gênio. Quando eu vi o nome deste homem que eu ia dissecar – Ahmed Diab -, considerando o quão poucos egípcios nós temos aqui, eu me lembrei de outro caso que eu havia feito há pouco tempo, de um tal de Alfed Diab. E, antes dele, de uma Samira Diab. A Samira morreu com uma queixa bastante semelhante à do Ahmed. Ela começou com sintomas parecidos com uma virose, tinha perdido peso nos últimos tempos, e morreu. Seus exames estavam tão anormais quanto os dele, e eu decidi colher uma biópsia de medula óssea para ver o que dava. E lá estava: aplasia medular.
– Aplasia medular? É quando a medula não funciona mais?
– Isso. Era uma coisa que fazia sentido; ela ficou aplásica, pegou alguma infecção intestinal e morreu em decorrência da diarreia, já que estava tão debilitada. Mas ela tinha algo de estranho, que eu não tinha dado bola até hoje: uma fratura nos dois punhos.
– Fratura?
– Bom, não era exatamente uma fratura, mas eram pequenas lesões nos ossos do antebraço, bem perto do punho. Ela fez algumas radiografias durante a internação, porque estava sentido dor e fraqueza nos braços e, quando foi ver, tinha quase uma osteoporose localizada em faixa. Eu fiquei uns bons dias pensando nisso, mas não cheguei a nenhuma conclusão. Bom, algum tempo depois, chegou o Alfed, que morreu de uma infecção incomum, que chama pneumocistose. É um tipo de infecção que só ocorre em pessoas com problemas de imunidade, como pacientes com AIDS, leucemias e linfomas, ou medicamentos imunossupressores. Alfed não tomava nenhuma medicação, o teste rápido de HIV veio negativo, mas o seu hemograma também veio alterado, e a biópsia de sua medula óssea tinha a mesma alteração. Eram dois casos de dois egípcios, marido e mulher, com as mesmas alterações. Era muita coincidência. Eu imediatamente comecei a pensar no que poderia estar causando isso. Aplasia de medula não é uma coisa comum; pode ser causada por medicação, que nenhum dos dois tomava, ou radiação. Mas, mesmo com radiação, só é comum quando a pessoa faz algum tipo de tratamento, coisa que nenhum dos dois fazia. Assim, eu precisava achar uma fonte de radiação que estivesse afetando os dois ao mesmo tempo.
Ela ligou o seu computador e se voltou para mim, prosseguindo enquanto ele carregava.
– Foi no meio da noite que eu fiz a ligação entre uma coisa e outra. Se eles eram egípcios, era provável que eles tivessem ganhado alguma peça vinda de lá. E, considerando os roubos que ocorreram no começo deste ano, não seria de todo improvável que a peça fosse verdadeira. Uma peça amaldiçoada.
Eu a encarei; ela havia falado amaldiçoada sem o menor escárnio, embora, para mim, fosse inconcebível que ela acreditasse naquela baboseira.
– Bom, caso você não saiba, os tesouros de Tutancâmon foram uns dos saqueados durante os roubos, e nós não sabemos até hoje direito o que está faltando. E, dentre os tesouros, ele tinha braceletes e estatuetas, bastante semelhantes a estas aqui. E elas tinham uma peculiaridade…
Ela se levantou e apagou a luz da sala; no escuro, eu só pude ver os traços dos braceletes e os olhos de Anúbis brilhando em azul. Devo dizer que fiquei algo assustado; aquilo parecia fantasmagórico demais. Seriam, de fato, amaldiçoadas?
– Agora, veja aqui a sua maldição – ela disse, acendendo a luz.
Ela digitou apenas uma palavra no buscador: Césio. E lá estava a substância radioativa, com todas as suas características: branca na luz, brilhava no escuro em um azul meio fantasmagórico e era bastante lesiva para o organismo.
– Quando eu juntei uma coisa com a outra, tudo ficou muito claro. Muitos já suspeitavam que as mortes misteriosas ocorridas depois da descoberta do túmulo de Tutancâmon foram causadas por substâncias radioativas. A morte desses dois, a sua origem, o roubo das peças que brilhavam no escuro, tudo apontava para a mesma direção. E, especialmente, a lesão óssea que aquela mulher tinha, que era acentuada demais para a sua idade, e estranha demais.
– O bracelete!
– Exatamente. Ela usava os braceletes nos dois braços, e a radiação foi consumindo o seu osso lentamente. Ela ficou exposta a tanta radiação, que acabou por se intoxicar. Sua medula também sofreu aplasia, e ela morreu por uma intoxicação aguda sobreposta. Já o seu marido morreu das complicações da aplasia medular. O problema é que, mesmo tendo descoberto isso, eu não tinha o que fazer; como eu ia conseguir avisar alguém? Para quem avisar? O homem já tinha morrido fazia um tempo e não tinha nenhum outro responsável na ficha. Como eu ia achar uma estatueta no meio de uma cidade de dezessete milhões de habitantes? Achei melhor esperar; algum dia, algum caso semelhante iria chegar até mim, e seria a oportunidade perfeita. Logo que vi o senhor Ahmed, com uma morte de causas também estranhas, tive certeza de que estava com as peças praticamente em mãos.
– Mas, por que ele morreu antes da esposa? Ele não usou os braceletes, usou?
– Não, mas você lembra que ela falou que estava brigada com ele? Acho que ele lhe trouxe os braceletes, e ela provavelmente falou que não ia usar coisas de uma pessoa morta. Com isso, eles brigaram, e ele passou a dormir na sala, logo ao lado…
– Da estatueta! – exclamei.
– Exatamente. E foi ficando gradativamente doente, e a sua esposa teve de cuidar dele. Com isso, ela também se contaminou. E aposto que o cachorro também. Você viu como ele estava velho?
– Nossa! – falei, realmente surpreso.
– Mas, se você reparar bem, ela também tinha uma fraqueza nas mãos. Na hora em que ela derrubou a chave, eu tive a certeza de que precisava de que as peças estavam lá.
– E ela sabia que eram verdadeiras – afirmei.
– Sem dúvida. De outro modo, ela não teria ficado com tanto medo quando te viu com a arma. Ela deve ter achado que você já sabia das peças e tinha vindo buscar.
– E eu nem fazia ideia!
– Eu levei um bom tempo explicando para ela que você não estava investigando nada, só estava me ajudando a localizá-la. Só por isso que ela te deixou ficar junto.
– Nossa, isso foi incrível! Que aventura!
Ela sorriu.
– E foi mesmo. E você foi muito corajoso. O jeito que você lidou com os ladrões…
Ela parou de falar e me fitou profundamente nos olhos; eu fiz o mesmo. Estávamos assim, olhando-nos, quando começamos lentamente a nos aproximar, o meu coração voando no peito, só de imaginar o que estava para acontecer, e…
O telefone tocou. Como se saísse de um transe, apenas no segundo toque Isabella pegou o fone e atendeu; Farida já havia chegado e a estava esperando lá em cima.
– Bom, eu vou lá na emergência falar com os clínicos. Ela precisa de tratamento, e rápido. E o seu cachorro também – ela falou e se levantou da cadeira, meio que evitando me olhar.
– Espere, Isa! E o que eu faço com isso? – perguntei, apontando para a estatueta.
– Não faço a menor ideia. Isso é com vocês, da polícia; eu já fiz minha parte. Não dá pra levar no consulado do Egito e dizer que achou numa lata de lixo? Aliás, talvez seja bom informar a eles também que ela só é radioativa, e não amaldiçoada. Não sei se algum dia alguém já tinha se dado ao trabalho de colocar um dosímetro perto disso…
Ela sorriu e me deixou; eu suspirei e olhei para as peças diante de mim. Até hoje tenho certeza de que o telefone só tocou justo naquele momento por causa da maldição das joias de Tutancâmon.
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais