A Aventura dos Enfermeiros da Morte
Em uma aventura intitulada “A Aventura das Próteses”, eu comentei a respeito de um dos diversos motivos que levaram Isabella a querer, cada vez mais, abandonar a cidade de São Paulo e se mudar para o interior do estado, para uma vida mais tranquila, onde pudesse continuar com suas pesquisas.
Sua popularidade já estava em alta na ocasião desta história, uma vez que, ao desmascarar toda a tramoia das próteses, ela havia ganhado notoriedade nacional. Embora inicialmente não quisesse que seu nome aparecesse nos processos, inevitavelmente acabaram descobrindo, como todos os bons repórteres conseguem, e, em pouco tempo, ela apareceu nos jornais. Aproveitaram a oportunidade para rever todos os casos em que ela trabalhara e, não sem satisfação, trouxeram à tona diversas ocasiões nas quais ela nos ajudou nas investigações.
Pouco tempo depois, a minha colega patologista se deparou com um crime, que, como sempre, à primeira vista não passava de nada trivial, mas que, com seus olhos experientes e seu intelecto sempre ágil, ela conseguiu diferenciar como bastante complexo.
Encontrei-a certo dia pela manhã, revendo os dados do prontuário de um paciente que ela havia acabado de autopsiar, no mesmo hospital em que ocorrera o evento das próteses. Ela estava cumprindo o seu aviso prévio, na época.
Remexia os papéis, profundamente incomodada, e eu lhe perguntei o que estava acontecendo, que a havia deixado tão inquieta.
– Detesto casos em que a autópsia é inconclusiva! – exclamou. – Está no mesmo nível de irritação que um violino desafinado no meio de uma orquestra!
Eu me peguei perguntando como ela conseguia perceber um violino desafinado no meio de uma orquestra inteira, mas achei melhor relevar o fato.
– O que acontece, Isa?
– Veja lá na mesa e me diga o que você acha.
Já esperava que a resposta não seria fácil.
Caminhei até o local e observei o corpo deitado de costas sobre a mesa; já estava fechado, significando que a autópsia havia acabado, e em frascos havia alguns fragmentos de órgãos que ela havia colhido. Tomei o cuidado de observar tudo o que já havia aprendido com ela naqueles últimos anos e, devo dizer, senti-me bastante satisfeito com o que obtive.
O paciente tinha aproximadamente sessenta anos, estava bastante emagrecido e desidratado. Possuía um dedo amputado no pé direito, as unhas bastante malcuidadas e escaras nos calcanhares. Não movi o corpo, mas pude imaginar que possuiria também outras escaras na altura das escápulas e nádegas. Em seu pescoço, havia um cateter de duas vias, preso por um curativo; o abdome não estava dilatado, mas sim, escavado, e não havia nada de mais marcante naquele homem, além da barba de alguns dias por fazer.
– E então? – ela me perguntou.
– Um homem idoso, com diabetes e insuficiência renal – disparei.
Ela assentiu de leve.
– Mais alguma coisa?
– Está acamado há algum tempo.
– Por quê?
– Por causa da insuficiência renal? – arrisquei.
Ela riu.
– Apenas observando o nosso paciente, eu posso lhe afirmar algumas coisas: sim, ele tem diabetes há pelo menos dez ou vinte anos, e sim, ele tem insuficiência renal. Uma insuficiência renal crônica não dialítica, agudizada. Teve um derrame há alguns anos, está acamado deste então por causa das sequelas. Estava em uma casa de repouso, onde não era tão bem cuidado quanto deveria, e foi internado recentemente, coisa de um ou dois dias, e fez uma sessão de hemodiálise ontem.
Encarei-a, surpreso; algumas conclusões, eu poderia até compreender, mas de modo algum conseguia supor de onde ela havia obtido tantas inferências.
– Eu posso afirmar com certeza que ele é diabético há tanto tempo pelo dedo amputado, a diminuição da circulação nas pernas e braços, como você pode observar na perda de pelos, a recuperação lenta das feridas, a lesão renal óbvia e as lesões na retina e globo ocular. É uma insuficiência renal agudizada, até então não dialítica, porque, se ele precisasse de diálise, teria ou um Tenckhoff – e, no caso, ela se referia ao cateter implantado para realizar a diálise peritoneal, na qual se infunde um líquido na barriga, funcionando da mesma forma que a hemodiálise – ou uma fístula arteriovenosa – que é a via para a realização da hemodiálise. – E agudizada, porque ele precisou de um Shiley – aqui, ela se referia ao cateter de duas vias implantado no pescoço. – Posso falar sobre o derrame e posso até inferir que foi localizado provavelmente na cápsula interna esquerda, porque o nosso paciente apresenta uma atrofia da musculatura de todo o lado direito do corpo, uniforme. Provavelmente, ele conseguia falar, mas tinha alguma dificuldade para articular as palavras. Como não podia se mover, a família provavelmente o internou em uma casa de repouso, onde ele não era tão bem cuidado, porque, como você pode ver, ele tem escaras em vários lugares do corpo, mostrando que ele ficava muito tempo em uma posição só. Tomavam o cuidado, no entanto, de fazer a sua barba, até que, alguns dias atrás, ele piorou e foi internado. Há dois dias, no máximo, pois, se fosse mais tempo, as auxiliares já teriam tomado o cuidado de lhe raspar a barba.
– Com você explicando, parece uma coisa tão simples e tão ridícula!
– Explicando ou não, não deixa de ser.
– E qual a causa de morte?
– Como disse, não consegui identificar. A história do paciente obviamente me leva a crer em um distúrbio hidroeletrolítico. Os níveis de sódio, potássio, cálcio, magnésio, ureia e creatinina estavam muito alterados ontem pela manhã. Mas ele fez diálise, e eu sei disso, porque está no prontuário e nós temos os exames pós-diálise aqui. Mas, mesmo assim, durante a noite, ele morreu.
– Arritmia?
– Muito bem, André! – ela exclamou. – Boa hipótese. Você está desenvolvendo um excelente raciocínio médico, muito embora não tenha essa formação. Muito melhor do que muitos recém-formados por aí. De qualquer modo, como você sabe, arritmia não deixa rastros. Mas, uma arritmia causada por o quê? Ele não tinha nenhuma alteração eletrocardiográfica de base, exceto pelas causadas pela alteração do potássio, como você vê aqui.
Ela me mostrou uma folha de eletrocardiograma, com seus infinitos quadradinhos laranjas e treze linhas desenhadas; apontou pontos onde havia montes, outros onde havia picos, e outros onde havia linhas retas, mas, para mim, era tudo igual – totalmente ininteligível.
– Pode ter sido uma arritmia oriunda da própria diálise. Uma hipotensão, que gerou um novo derrame. Só que, como eu disse, não havia nada nos órgãos internos, que já não fosse observável externamente. Portanto, autópsia basicamente inconclusiva.
– E você não pediu novos exames?
– Perfeito, André! Perfeito. Pedi, sim. Estou esperando saírem os resultados. Agora, dê uma olhada nesta prescrição. Tem algo que chame a atenção?
Sem dúvida, ela deveria estar me confundindo com um aluno e ignorando o fato de que, para mim, era tudo apenas uma série de nomes que eu não compreendia. Exceto, talvez, por…
– Meperidina?
– Exato!
– É um tipo de opioide, não é?
– Isso. Não é uma das drogas favoritas para fazer analgesia, especialmente em idosos. E é uma droga que precisa de ajuste da dose com a função renal. Como você vê, aqui está ajustada.
– Mas o que isso quer dizer?
– Às vezes, um erro na dose pode ter causado depressão respiratória. Outra das causas de morte que não deixa muitos rastros. Pedi, também, um toxicológico, mas você sabe como esses dados demoram para chegar…
Dito isto, ela voltou a se entreter com os papéis do prontuário, e eu fiquei me perguntando se ela não estava exagerando demais por causa de uma simples morte de causa incerta. Observei novamente a prescrição e o paciente e não compreendi totalmente que tipo de pista ela estava tentando seguir; o que o seu faro sensível havia identificado de estranho naquele caso?
– Bom, Isa, eu vou almoçar. Quer vir junto?
– Não, eu vou ficar aqui até o doutor Orlando chegar. Eu saio só às treze.
– Então, está bem. Eu volto depois do almoço, acho que dá tempo.
Quando retornei, ela olhava atentamente para alguns papéis, aparentemente novos, e murmurava repetidamente que não era possível.
– O que foi agora?
– Veja os resultados dos exames.
Eu peguei o papel, mas não havia muito que eu efetivamente compreendesse; os níveis de potássio e sódio estavam acima do normal, e o resto parecia dentro dos padrões, talvez apenas um pouco elevados.
– Quer dizer que o rim dele piorou, mesmo depois da diálise?
– Não, quer dizer que essa morte foi intencional.
Fiquei alguns momentos sem compreender o que ela havia falado.
– Como assim?
– Se o rim tivesse piorado, e eu nunca vi um rim piorar tão rápido em toda a minha vida, especialmente a ureia e a creatinina teriam aumentado. Potássio e sódio não subiriam tanto assim. No entanto, o que você vê? Só os dois aumentaram. Potássio e sódio são dois elementos que nós podemos prescrever para o paciente e que normalmente estão presentes em soros padrões de infusão. Veja aqui, na prescrição do paciente: soro fisiológico, potássio, magnésio, etcetera, etcetera.
– E como você pode sugerir que foi intencional?
– Essa concentração do soro nunca iria causar uma concentração tão alta no sangue em tão pouco tempo. Alguém injetou potássio e sódio a mais no soro deste paciente.
– Mas, por que o sódio? Só o potássio não é o suficiente para matar alguém?
– Não é lógico, André? Porque estão tentando acobertar o crime. Alguém menos interessado com certeza veria os níveis aumentados de eletrólitos e se daria por satisfeito em dizer que o paciente morreu por distúrbios hidroeletrolíticos oriundos de uma insuficiência renal. O que eles não contavam, no entanto, é que eu estaria aqui hoje, para realizar esta autópsia.
– E o que vamos fazer? Como identificar quem é o culpado? Puxa, Isa, pode ser qualquer um!
– Vou fazer um levantamento, primeiro. Mas tenho uma boa pista de por onde começar: pelo médico que prescreveu, pelo auxiliar que aplicou e pela enfermeira que supervisionou. Passe por aqui de novo na sexta-feira pela manhã, e eu devo ter alguma resposta mais definitiva. Até mais!
E voltou seus olhos para os papéis diante de si.
Sabendo que não obteria mais qualquer informação e também que não adiantaria de nada tentar conversar, pois, quando estava com a mente ocupada, Isabella era tão inexorável quanto a Grande Muralha da China, voltei-me para o meu carro, as mãos nos bolsos, e o pensamento em quem se beneficiaria com tão cruel ato. Familiares, talvez? Era uma opção plausível. Eutanásia não é permitida no Brasil, o paciente era acamado, complicado, com uma perspectiva de vida muito ruim. Não era de todo improvável que os familiares houvessem se cansado e, ou realizado a morte, ou encomendado. Não seria nem o primeiro, nem o último caso a ocorrer nos hospitais deste país.
Quando retornei, poucos dias depois, Isabella andava atarefada, de uma mesa para a outra, pegando dados de um lugar e escrevendo em outro. Dei-lhe algum tempo, sabendo que ela só iria me dar atenção quando lhe fosse propício. Esperei mais alguns minutos, ainda ignorado, decidi sair, comprei uma Coca-Cola zero, tomei-a inteira e estava seriamente considerando comprar outra, dando asas ao meu vício e provavelmente me garantindo mais uma noite insone, quando ela me chamou.
– Consegui – ela disse. – Mas, antes de te entregar qualquer coisa, eu quero que você veja com os seus próprios olhos. Hoje à noite, no setor de Emergência. Venha vestido como uma pessoa comum. Você vai ficar no leito sete, e eu, no cinco. Aqui é o nome do seu paciente. Para todos os fins, você é neto dele. A hora da troca é às vinte.
Eu encarei o pedaço de papel que ela me deu e fiquei esperando por novas orientações; ela, contudo, não disse mais absolutamente nada e apenas se voltou para o seu trabalho.
Às cinco para as oito horas da noite, eu me encontrei com Isabella na recepção do hospital e, portando crachá com a identificação de visitante, eu disse que iria ficar no leito cinco da emergência, com o senhor Frederico Ribeiro, meu avô. As recepcionistas pediram que me esperasse e, pouco depois de o relógio da recepção marcar vinte horas, uma série de pessoas começou a sair pelas portas dos elevadores. Uma delas, uma moça com os cabelos negros e longos, trançados, um pouco mais nova que eu, de saia e blusa, devolveu o crachá e, vendo-me ao lado da minha colega, cumprimentou-me.
– Tudo bem?
– Tudo – respondi, sem compreender.
– Cuida bem do vovô, ehm? Amanhã estou de volta.
E, com isso, desapareceu. Ainda troquei um olhar com Isabella, tendo ela mesma cumprimentado alguém e dito que cuidaria bem do tio, antes de caminharmos em direção aos elevadores. Ela apenas me sorriu de volta, e entramos juntos na ala de emergência.
O meu suposto avô não estava nem um pouco bem; estava sonolento, pouco responsivo e, como era de se esperar, não me reconheceu como seu neto. Do outro lado, Isabella apenas gesticulou que eu esperasse, e, quando um grupo de médicos passou e um disse ao outro que ele era uma paciente com insuficiência hepática e doença de Alzheimer, eu compreendi o motivo. Não tinha por que me preocupar; o paciente havia sido muito bem escolhido.
Pouco depois, passaram no leito entre mim e Isabella, e compreendi que se tratava de um senhorzinho com câncer de intestino e metástase para o fígado e ossos, que estava lá apenas para suporte clínico.
– SPP – um disse para o outro, e eu já havia ouvido aquela sigla em algum lugar.
Passaram para o leito de Isabella, de um senhor com leucemia, que viera para fazer transfusões e iria embora na manhã seguinte ou na próxima, e seguiram adiante; neste momento, observando minha dúvida, ela se virou para mim e, apenas movendo os lábios, disse:
– Se parar, parou.
O que queria dizer que, se o paciente entre nós sofresse uma parada cardíaca, não deveria ser reanimado. Era o mais próximo que se poderia chegar de uma ortotanásia – ou seja, uma boa morte, na concepção correta do termo – dentro do novo Código de Ética Médica.
Quando os médicos se foram embora, a minha colega rapidamente iniciou uma conversa com os outros visitantes, e o clima se tornou agradável; era impressionante como ela conseguia achar os mais diversos assuntos que, para mim, até então, ela nunca parecera nutrir nenhum interesse: desde acontecimentos políticos, até esportes, novelas e horóscopo. Isabella só não conversava com o resto das pessoas quando não queria, porque, como pude observar, ela era plenamente capaz de encantar qualquer um e até mesmo se passar por uma simples cabeleireira.
Pouco depois, vieram médicos examinar nossos pacientes; eu não perguntei nada sobre meu suposto avô, e eles também não me falaram nada. A minha colega, por sua vez, fez tantas perguntas como uma sobrinha aflita faria, e o médico diligentemente respondeu, uma a uma. Pouco depois, veio o jantar para os acompanhantes e os pacientes acamados que conseguiam se alimentar, e Isabella cuidadosamente, com um carinho como eu nunca havia visto antes, ajudou o seu suposto tio a comer um prato de sopa.
Mais tarde da noite, auxiliares vieram, fazendo medidas, examinando alguns pacientes e injetando medicação. Por fim, pouco após as dez horas da noite, tudo ficou em silêncio, salvo por um ou outro auxiliar entrando, e os acompanhantes começaram a adormecer, junto de seus parentes acamados.
Pelo celular, recebi uma mensagem.
“Fique acordado e de olho. Acho que vai acontecer lá pelas três da manhã. Isa”.
Olhei para o lado, mas ela parecia estar igualmente dormindo.
Mesmo que quisesse dormir, não seria fácil; além da cafeína circulando em meu sangue, o constante entra e sai dos auxiliares me garantiu não conseguir manter os olhos fechados por muito tempo.
Foi ao redor do meio da madrugada, quando um homem entrou com uma cuba rim de metal e um par de seringas. Apoiou o braço carinhosamente no peito do paciente ao meu lado e disse, com docilidade:
– Vou fazer um remedinho pra dor, tá bom, seu João?
O homem grunhiu de volta e logo voltou a roncar; o outro, enquanto isso, injetou o conteúdo das duas seringas na bolsa de soro.
– Vou tirar o som deste aparelhinho, que ele é muito chato, né? – falou para a acompanhante, apertando um botão do monitor eletrocardiográfico, e saiu da sala.
Tentei prestar atenção ao monitor, mas, por algum tempo, nada aconteceu. E, cansado e inspirado pelo silêncio e o escuro, pouco depois adormeci.
Fui acordado pelo início de um grande movimento no quarto e, quando dei por mim, havia dois auxiliares – um deles o mesmo que fizera a medicação –, um médico e uma senhora de pé, com uma expressão consternada e preocupada, todos em torno do leito seis. Um dos auxiliares se aproximou e pediu que ela esperasse do lado de fora, levando-a para outro local.
– Não sei que horas parou, doutor, mas quando fui olhar, tava com a linha reta.
Ele olhou para o paciente, coçando a cabeça.
– Bom, era SPP, não era?
– Era.
– Então, está bem. Hora da morte… Cinco e trinta e sete – disse, com um bocejo. – Aquela senhora era mulher dele?
– Sim.
– Eu vou avisar, então.
Os auxiliares desligaram as máquinas e deixaram o corpo do seu João deitado ainda um pouco sobre o leito; do outro lado, Isabella piscou para mim e tornou a se recostar em sua poltrona, como se estivesse dormindo.
Às oito horas da manhã trocamos o nosso posto para familiares verdadeiros que, para minha surpresa, não estranharam nossa presença.
– Ontem de manhã eu vim ao pronto-socorro e procurei pacientes bons – a minha colega explicou, conforme caminhávamos para uma padaria, onde tomaríamos o desjejum. – Quer dizer, bons para o que eu precisava. Vi esses três e achei a oportunidade perfeita para ficarmos de tocaia. Falei para a família que era auxiliar de enfermagem e cuidadora de idosos e que poderia ficar no lugar deles. Não foi difícil conseguir; você sabe como é complicado para esse pessoal que tem de ficar o dia todo junto. Agora… Você conseguiu ver bem?
– Consegui – respondi, ainda impressionado com a artimanha. – O que foi que ele injetou?
– Provavelmente meperidina – ela respondeu. – É um dos itens que estavam na prescrição dele, pelo que consegui bisbilhotar, quando o médico passou. E, agora que você já viu com os próprios olhos, eis os culpados.
Ela retirou um bolo de papéis de sua bolsa e os colocou sobre a mesa, entre as nossas xícaras de café.
– Consegui evidências claras de que, se não como culpados, ao menos como cúmplices estes três auxiliares estavam envolvidos. E, também, estas duas casas de Repouso.
Ela me mostrou os nomes: uma se chamava “Magnólias de Aço”, e outra, “Cantinho da Vovó”. Pelas fotos anexadas, pareciam bastante acolhedoras; quem diria que, naqueles lugares, tais crimes poderiam ocorrer?
– E, também, estas três funerárias. E, por último, mas não menos importante, o médico chefe da UTI, o chefe da Emergência e o Diretor Clínico do Hospital.
Ela me apresentou os dados com a imponência de quem joga a última cartada de truco e garante a vitória.
– Mas, Isabella! De onde você tirou tudo isso?
Ela sorriu de satisfação e se deu ao direito de sorver um pouco de seu café e dar duas mordidas em seu pão com manteiga, antes de me contar.
– Bom, foi bastante simples, se quer saber. Comecei levantando os dados das autópsias de pacientes graves com causas idióticas de óbito, como arritmia, distúrbios hidroeletrolíticos, insuficiência cardíaca aguda, coisas assim. Logo, encontrei esses três auxiliares como responsáveis, e eles irremediavelmente estavam nos casos mais estranhos. Estavam ausentes em alguns, mas esses não apresentaram nenhuma alteração nos exames, ou apresentavam exames compatíveis com o diagnóstico. Por outro lado, naqueles em que eles estavam envolvidos… Sempre havia evidência de iatrogenia.
– Ou seja, culpa no cartório.
– Exato. Bom, obviamente, minha busca não poderia parar por aí, já que muitos pacientes não vão para a autópsia. Deste modo, guardei o nome dos auxiliares e, falando com a enfermeira certa, consegui as escalas de plantão. Com elas, bati as datas de morte de alguns pacientes com os dias em que eles estavam lá, e voilà! O negócio já está em andamento há um bom tempo. Em comum entre diversos dos pacientes estavam estas duas casas de repouso e, especialmente, estas três agências funerárias, que receberam de uma forma bastante equilibrada os pacientes para realizar o enterro: trinta, trinta e trinta e dois. Está vendo?
– Foram noventa e dois assassinatos, então?
– Que eu consegui levantar, nos últimos dois anos.
– Pelo amor de Deus!
– Certamente, este trio vai entrar para os anais da criminologia brasileira como um dos maiores, se não o maior, grupo de assassinos em série do país.
– E os chefes, como você pode incluir nisso?
– Bom, eu não tenho provas concretas, ainda. Isso vai depender de você, mas, convenhamos, é bastante lógico de se pensar que eles saem ganhando com isso. Quanto menos gente ocupando a emergência e a UTI com casos complicados e sem solução, melhor para o hospital. Por isso, posso inferir que o esquema se estenda mais e mais. Não duvido nada que empresas de convênio estejam envolvidas.
– Inacreditável, Isa! Posso ficar com esses dados?
– Pode, leve o que quiser.
– Vou dar andamento para as coisas. Você vai ver, nós vamos conseguir pegar esses caras!
Nossa investigação não demorou muito; em pouco tempo, conseguimos documentar e comprovar a morte de mais cinco pacientes, sob responsabilidade de dois dos três auxiliares que Isabella havia identificado (o terceiro seria desmascarado alguns meses depois, por um colega da minha equipe de investigação). E, como ela bem havia mostrado, as três funerárias, as duas casas de repouso e o diretor clínico do hospital estavam mancomunados com os auxiliares. O jogo era absurdo: as funerárias e as casas de repouso pagavam metade do valor, cada uma, para os auxiliares responsáveis pelas mortes; o diretor clínico, por sua vez, além de ganhar com leitos vazios, ainda recebia uma parte de três empresas diferentes de convênio, que ficavam satisfeitas por não ter de arcar com os custos da internação. Quanto aos dois outros médicos, nada ficou comprovado. Isabella ficou bastante satisfeita com os resultados da nossa investigação, mas tenho de admitir que, quando a encontrei novamente para levar notícias, pude perceber que seu olhar perdeu um pouco mais de seu brilho costumeiro; gradativamente, ela perdia o gosto pela sua profissão.
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais