A primeira aventura
Apesar de já ter descrito diversos casos nos quais participei com Isabella Angier de suas descobertas, ou nos quais ela mesma participou em minhas investigações, na maioria das vezes lançando luz às situações mais obscuras apenas a partir de sua observação acurada, como era seu costume fazer, até o momento ainda não descrevi como foi o primeiro caso no qual trabalhamos juntos. Acredito que, diante da sua crescente popularidade, não seria justo manter o público afastado desta notável história.
Ocorreu em torno de nove anos atrás, quando eu estava havia pouco tempo trabalhando como investigador da polícia civil de São Paulo após ter concluído o meu curso de direito. No começo de carreira, eu era um investigador bastante empolgado e gostava de estudar a fundo todos os meus casos. Eu tinha vinte e oito anos e estava casado havia três com minha namorada da universidade, que estava acabando de se formar.
Havia sido incumbido de juntar as provas para o caso do assassinato do Coronel Silva, que havia sido assassinado pelo seu genro em legítima defesa, como ele mesmo havia afirmado. Embora as provas da própria cena do ocorrido e o depoimento do genro e de sua esposa já parecessem mais do que o suficiente para comprovar o crime e a sua relativa inocência (porque, na minha opinião, homicídio em legítima defesa nunca deixou de ser homicídio), eu sempre fiz questão de ir ao fundo de todos os meus casos. O que, naquela situação, seria ir até o Instituto Médico Legal e conversar com o patologista que realizasse a autópsia da minha vítima.
Cheguei ao local perto das onze horas da manhã, para encontrar apenas uma pessoa trabalhando no salão de autópsia. Contudo, embora eu esperasse encontrar um homem barrigudo, careca e de bigode, com um avental imundo de sangue no corpo e um facão em uma das mãos, quem estava trabalhando naquele dia era uma mulher. E, muito além disso, era a mulher mais bela que eu já havia visto em toda a minha vida. Apesar de vestida com o avental, que estava impecavelmente limpo, e usando uma máscara e uma touca, não pude deixar de notar seus longos cabelos, lisos e negros, presos em um coque apertado atrás da cabeça, com uma delicada presilha de borboleta; e, mais do que tudo, seus olhos amendoados, cor de mel, que já prediziam uma face digna de obras-primas.
Ela estava entretida enrolando uma faixa na cabeça de um homem sentado em uma cadeira, vestido apenas de bermuda, sua barriga protuberante e repleta de pelos sobressaindo. Olhei ao redor, buscando alguma outra pessoa que pudesse me atender, para não atrapalhar a moça, mas não havia, e decidi chamá-la.
– Ahm… Bom dia. Meu nome é André Dias, sou investigador da polícia.
Ela se virou e me encarou com aqueles belíssimos olhos cor de mel. Devia ter pouco mais de um metro e sessenta e não aparentava mais de vinte e cinco anos, embora toda a lógica apontasse para que ela tivesse mais do que isso, uma vez que já era uma médica especialista.
– Sou Isabella Angier, patologista de plantão – ela respondeu e, mesmo através da sua máscara, sua voz era doce e melodiosa. – Estou um pouco ocupada agora, senhor Dias, mas se o senhor não se importar em me ajudar…
– Claro! – respondi prontamente. – O que posso fazer?
– Pegue um par de luvas daquela caixa ali e vista. Isto. Agora, venha aqui, atrás da cadeira, e segure os ombros deste homem. Isso, desse jeito mesmo. Não deixe as suas costas desencostarem da cadeira, ehm?
– Sim, mas o que você…
Ela não demorou mais do que dois segundos; acertou a faixa, branca e grossa, na nuca do homem, segurando as suas duas pontas em suas mãos. Deu uma volta em cada uma, para segurá-la com firmeza e, de um ímpeto, abaixou-se, quase se sentando no chão, e puxou a faixa. O pescoço do cadáver fez um barulho asqueroso, e ela soltou a faixa e se levantou.
– Pronto, agora só falta mais uma coisa…
Ela tirou a faixa, apoiou a mão esquerda no queixo do homem, a direita em sua nuca e, com uma força aparentemente impossível para uma mulher daquela estatura, torceu o pescoço do cadáver.
Eu não sabia o que dizer; desde sempre sabia que os patologistas não eram nem um pouco normais, mas aquilo ultrapassava todos os limites. Não só da normalidade, como também da loucura e do bom senso!
– Desculpe perguntar, mas… Por que você está fazendo isso?
– Estou tirando uma dúvida – ela respondeu, simplesmente. – Agora, se o senhor quiser me ajudar mais ainda, pode me ajudar a colocar este homem nesta mesa, de barriga para baixo?
Não sem algum esforço, colocamos aquele cadáver estava sobre a mesa, virado de bruços.
– Já assistiu a alguma autópsia, senhor Dias?
– Assisti a algumas com o doutor Orlando. E pode me chamar de André.
– Muito bem, então acredito que não vá se importar se eu fizer esta primeiro, antes de tirar qualquer dúvida que você tenha. Não vou demorar mais do que vinte minutos.
– Tudo bem – respondi. O que mais poderia dizer?
– Imagino que tenha vindo aqui pelo caso do coronel Silva.
– Isso.
– É um caso bastante interessante, devo lhe dizer. Me levantou curiosidade a respeito de algumas coisas que pretendo resolver agora.
Eu não compreendi muito bem o que ela queria dizer (como seria comum por tantos e tantos anos), mas assenti. Em poucos segundos ela havia tomado um bisturi e outros instrumentos em mãos e cortava a nuca do cadáver com mais facilidade do que eu passava manteiga no pão. Observei o homem e mais alguns cadáveres em outras bancadas, todos de barriga para baixo, com os pescoços abertos desde a nuca até o tórax, porém sem aparentemente terem qualquer outra incisão costumeira de autópsia, e me perguntei o que diabos estava acontecendo naquele salão.
– Desculpe perguntar novamente, mas… Fazer isso não atrapalha o resto da autópsia? Quero dizer, você pode fazer isso?
– Quanto a poder, provavelmente não – ela respondeu, com um leve sorriso, enquanto analisava vértebra por vértebra do cadáver. – Mas eu vou fechar com pontos intradérmicos depois e ninguém nunca vai ver. E, quanto a atrapalhar a autópsia, não, não atrapalha. Eu não preciso necessariamente abrir o corpo do paciente para saber o que eu vou encontrar.
Eu fiquei surpreso com aquela afirmação, que se tornaria gradativamente mais verdadeira com o passar dos anos, e lhe indaguei como isso era possível.
– Digamos que se trata de uma espécie de… Passatempo meu. Estou usando todo o conhecimento da arte da dedução, instituído por milhares e milhares de médicos por séculos antes de mim, para descobrir, com certeza, o que o meu paciente tem.
Ela tinha um certo ar arrogante, que, para quem não a conhecia, era um tanto desagradável. De fato, talvez por este motivo não tivesse muitos amigos dentre seus colegas de profissão. Eu, contudo, não me irritei; analisando melhor, depois, percebi que não era necessariamente arrogância, mas sim orgulho de sua própria obra.
– E o que ele tem? – perguntei, cruzando os braços e observando conforme ela mexia em sua coluna.
– Bom, este é o seu João, um homem branco de cinquenta anos que foi encontrado caído no chão às cinco horas da manhã, a duas esquinas de um bar. Foi o dono que, depois de fechar as portas, encontrou o cadáver no chão e ligou para a polícia.
Assenti; todas aquelas informações poderiam ser facilmente obtidas.
– Ele é um homem casado, que há poucos dias brigou com a mulher por causa de seu alcoolismo. Recentemente, por sinal, ele a agrediu, e desde então estão separados. Ele estava bebendo até pouco antes das três horas da manhã, quando saiu do bar e se encontrou com um homem, de aproximadamente um metro e oitenta de altura, que primeiro discutiu com ele, depois puxou uma faca e o agrediu. João tentou se defender, mas não conseguiu, de tão bêbado que estava, escorregou e bateu a cabeça na base de um poste. O agressor tentou ajudar, mas quando viu que a vítima já estava morta, fugiu.
Eu a encarei com surpresa, depois de todo aquele jorro de informações, e fiquei alguns momentos sem saber o que responder. Inicialmente, não sabia o que pensar; de onde ela havia tirado todas aquelas informações? Teria ela lido o relatório da polícia, ou alguma coisa do tipo?
– Não, eu não li nada da polícia, só supus pelo que observei e acredito ter chegado a uma conclusão certa.
– Como você sabia o que eu estava pensando? – indaguei, ainda mais surpreso. – Você tem algum poder mágico, é?
Ela riu.
– Não, o seu pensamento foi bastante óbvio. Primeiro você olhou para mim, depois para o seu João, depois novamente para mim, e por fim vasculhou todo o salão à procura de algum papel. Obviamente você estava pensando como eu havia descoberto, se apenas observando alguma coisa extremamente óbvia que você havia deixado escapar e que não encontrou mesmo observando novamente, ou se lendo em algum relatório. E, pensando no relatório, você começou a procurar algum pela sala.
– Nossa! Mas foi exatamente isso que eu pensei!
Ela sorriu e voltou sua atenção para o que estava fazendo. Eu aguardei mais alguns segundos, antes de fazer a próxima pergunta, e estava puxando o ar para iniciar a fala, quando fui interrompido.
– Você está se digladiando internamente sobre perguntar ou não como eu descobri tudo isso.
– Pare com isso! – falei, estendendo as mãos como se estivesse me protegendo. – Você já está me assustando!
Ela riu novamente.
– Quanto ao nome e a idade da vítima, não foi difícil, pelos seus documentos, nem a informação de onde ele foi encontrado, que estava no relatório. Mas eu parei de ler ali mesmo e comecei a observar o cadáver. Em primeiro lugar, o fato de ele ser alcoolista foi óbvio por ter sido encontrado a poucos metros de um bar em um horário nem um pouco compatível com uma pessoa de hábitos saudáveis. Além disso, o tamanho de sua barriga, de seu fígado, o estado dos seus dentes e o seu hálito mostraram que ele era um bebedor inveterado que havia bebido recentemente.
– E quanto a ser casado?
– Bom, tem a marca da sua aliança na mão esquerda, indicando uma aliança de casamento, que havia sido retirada há poucos dias, pois havia diferença entre a cor da marca e a cor de sua coxa. E foi retirada porque ele brigou com sua esposa e a agrediu, como você pode ver pelas marcas que ficaram nos seus metacarpos, os nós dos dedos. E não foi nenhuma agressão leve, não.
– E com relação ao que aconteceu na briga? – indaguei.
– Bom, eu posso supor que ele conversou com o agressor primeiro porque, se a intenção do agressor fosse assassiná-lo desde o início, ele teria investido de uma vez em uma área vital. No entanto, há cortes nas suas mãos, nos seus braços e barriga.
– E a altura do agressor?
– Pela altura e profundidade das lesões, posso supor com relativa certeza que ele era um pouco mais alto do que este homem, ou seja, aproximadamente um metro e oitenta centímetros.
– Isso é inacreditável! – exclamei. – E a história do poste?
– A forma da lesão na sua cabeça indica que ele escorregou e caiu, virando-se para tentar se segurar. A sua cabeça acertou a quina de algo aqui, do lado direito, enquanto a têmpora esquerda acertou algo cilíndrico. Mais provavelmente, a quina de uma base de concreto e o poste de iluminação em si. Faz sentido, porque o agressor não tentaria conversar com a vítima em um lugar que não fosse iluminado.
– E como você sabe que ele tentou ajudar?
– Bom, a vítima foi virada de barriga para cima, embora tenha caído de barriga para baixo, e isso você podia ver pelo rastro do sangue coagulado, que eu já limpei. O fato de ele ter fugido é óbvio, porque o homem morreu ao redor das três da madrugada, mas só foi encontrado às cinco.
– E você sabe a hora da morte pelo rigor mortis?
– Exatamente – ela respondeu, com um leve sorriso.
Ela havia dado toda a explicação como se fosse a coisa mais simples do mundo, sem por um segundo interromper o que estava fazendo ou perder a concentração total que dirigia àquilo.
– Doutora Angier, devo dizer que estou impressionado – eu falei, por fim, e ela agradeceu. – Imagino que você tenha anos de experiência com este tipo de coisa, para conseguir inferir tanto a partir de tão pouco!
– Bom, foram os três anos de residência e os poucos meses em que estou trabalhando aqui – ela respondeu.
Fiquei surpreso; ela era praticamente recém-formada!
– Quanto ao que eu encontraria na autópsia deste homem, um fígado cirrótico, uma pancreatite crônica, já provável perda de algumas ilhotas, uma gastrite e pouca aterosclerose, apesar de toda a gordura. Obviamente, também, um hematoma intracraniano de grande monta. Agora, você quer que eu explique a causa de morte daqueles outros homens, ou não preciso?
Por mais curioso que estivesse, eu neguei; aquilo já havia me dado provas mais do que suficientes de que ela não precisava mais do que observar para saber tudo e mais um pouco sobre os pacientes.
– Bom, já estou satisfeita com este aqui. Vou tirar primeiro suas dúvidas a respeito do coronel Silva e depois fecho todos os meus pacientes.
Eu sorri levemente ao uso do termo.
– Afinal de contas, eu sou médica, não?
Ela soltou o avental, descalçou as luvas e tirou a máscara; seu sorriso era ainda mais lindo do que eu imaginava e seu corpo era digno de uma modelo. Para minha grande tristeza, contudo, em sua mão direita usava um grande anel de noivado. Balancei a cabeça; por que estava pensando naquilo? Eu era um homem casado! E muito bem casado! Mas havia uma coisa nela que… Eu não sei. Até hoje eu não sei explicar o que era. Só sei que, por um bom tempo, fiquei me perguntando se não havia me casado cedo demais…
Segui-a para a sua sala, onde ela escrevia os laudos.
– Muito bem, o que você quer saber sobre o coronel, investigador André?
– Na realidade, vim buscar informações sobre a sua causa de morte. O que você descobriu até agora?
– Bom, a sua causa de morte me parece bastante óbvia, mas ainda tenho uma teoria ou outra que gostaria de provar antes de me dar por satisfeita. Vou aproveitar que você está aqui para lhe pedir que me conte toda a história. Quem sabe, a partir da daí, eu posso ter mais certeza?
– E o que você já sabe sobre ele? – testei.
– Bom, sei que o coronel é do interior de São Paulo, onde enriqueceu criando gado e onde morou por um bom tempo depois de sua aposentadoria. Ele se mudou para cá quando sua esposa morreu, alguns anos atrás, e foi assassinado por seu genro em legítima defesa na tarde de ontem, na casa dele.
– Todas estas informações são verdadeiras – eu confirmei –, embora eu ainda fique curioso em saber como você descobriu tudo isso.
Ela sorriu.
– Não posso ficar contando todos os meus segredos, senão o truque perde a graça. Agora, por favor, me conte o que vocês sabem.
– Muito bem, o coronel Silva tinha sessenta anos e morava na capital já há seis anos, em uma mansão no Pacaembu. Sua filha se casou dois anos atrás com um amigo de faculdade, com quem o coronel não se dava nem um pouco bem. O genro conta que o coronel implicava com ele desde o momento em que o conheceu e que havia se oposto veementemente contra o casamento dos dois, tanto que sequer foi à festa. Quem teve de pagar tudo foi a filha, porque ele não contribuiu em nada. Bom, parece que na tarde de ontem o coronel decidiu fazer um almoço de conciliação para eles, e, depois de comer, os dois começaram a discutir. A filha subiu para o andar de cima, o genro foi atrás, e o coronel também, ainda gritando com eles. Note que a casa do coronel é enorme, e ela tem um par de escadas subindo do saguão da sala em direção a um mezanino, que leva para os quartos no segundo andar. Esse mezanino tem apenas uma grade de metal para proteger da queda, mas ela é bastante frágil. O genro e o sogro se atracaram, e, tentando se soltar, o genro empurrou o coronel, que escorregou por cima da grade e caiu no térreo, quebrando o pescoço na queda. Eles tentaram prestar socorro, mas o coronel já estava morto.
– E o que vocês têm de prova?
– Bom, nós temos o e-mail do coronel convidando o genro para um almoço no horário combinado, e não tem nenhuma outra marca de briga na casa, exceto pela grande entortada. Os funcionários da casa dizem que ouviram a discussão e um baque no chão e encontraram o coronel caído no chão, com os dois ao redor. A filha estava chorando muito, e o genro parecia bastante preocupado, chamando pelo sogro.
– Bom, não sei se isso é o suficiente para vocês provarem alguma coisa ou nada, mas eu sei que eu gostaria de dar uma olhada no local antes de fechar o meu diagnóstico.
Eu estranhei aquele pedido; nunca, desde que havia iniciado minha carreira na polícia, havia ouvido semelhante ideia. Como poderia eu levar uma até então total desconhecida para ver a casa da vítima? Não poderia. Que implicações isto não poderia ter na minha carreira?
Por outro lado, eu me sentia tentado. O que ela poderia inferir da cena do crime, que eu até então ainda não havia inferido?
– E, para falar a verdade, o que eu quero ver lá acho que pode mudar todo o rumo da sua investigação.
Seu ar definitivamente arrogante e aquela afirmação me convenceram de vez. Ela parecia saber alguma coisa que eu não sabia, e só iria dizer se pudesse ver o local.
Vamos ver então, Isabella Angier, o que você sabe e eu não, pensei comigo mesmo, e concordei. Contanto que ela não tocasse em nada.
Em pouco tempo ela estava pronta, sem a touca, com os cabelos soltos e a bolsa em mãos. Eu perguntei se não teria problema de ela se ausentar, e ela disse que não, que ninguém entraria na sala, e que no máximo, talvez, deixassem um ou outro paciente lá para aguardá-la. Que, convenhamos, não teriam muita pressa.
Quando chegamos à casa do coronel, ela observou tudo em detalhes; o local estava interditado, para que ninguém mexesse na cena (embora, como de costume, muito já houvesse sido mexido desde a nossa primeira chegada), e não havia mais nenhum policial; todo o trabalho já havia sido feito, e as provas, coletadas.
Isabella gastou um tempo considerável observando o salão, que era de piso de porcelanato imitando mármore branco, as paredes igualmente brancas, com um pé direito de seis ou sete metros, o teto em um arco arredondado, terminando em uma abóbada de vidro, que garantia toda a iluminação do local. Duas escadas, uma de cada lado, do mesmo material do piso, ascendiam em uma curva para se encontrarem no topo do mezanino, que era uma varanda de dez metros de largura, por cujas portas de madeira se ia para o interior do segundo andar, onde ficavam os quartos. Podia-se ver, no mezanino, a grade de metal, de menos de um metro de altura, parcialmente entortada onde o homem fora empurrado, e dois pedestais brancos, como colunas romanas, um pouco mais altos do que a grade, cada um deles com um vaso de plantas de cerâmica com figuras romanas entalhadas.
A patologista se ajoelhou no chão e batucou com os dedos, testando o som; em seguida, subiu para o mezanino, e eu a observei de perto, para ter certeza de que não encostaria em nada. Ela observou a altura do topo do mezanino até o chão e, em seguida, a grade entortada. Depois, aproximou-se de um dos vasos e testou a resistência da grade com uma mão.
– Eu sei que você já foi testar justo aí para não modificar a cena do crime, mas é melhor não ficar forçando – eu a alertei.
Ela parou e se virou imediatamente.
– Tudo bem – ela disse e deu um passo em minha direção. – E estas portas, levam para onde?
– Para os quartos.
– Será que eu posso entrar lá? Elas estão abertas?
– Não sei, eu vou ver – respondi e me dirigi para as portas; testei as maçanetas e estavam destrancadas. Contudo, antes de dar a notícia, ouvi um barulho e me virei.
– Ai, André, me desculpe! – ela falou, meio sem jeito. – Eu esbarrei sem querer no vaso! Ai, meu Deus, o que eu fiz!
Apressada, ela desceu para o andar inferior e começou a separar a terra e juntar os cacos.
– Como sou desastrada! Pelo amor de Deus! Ainda bem que meus pacientes já estão todos mortos!
– Não, não, pare com isso – eu falei, puxando-a pelo braço, para que se levantasse. – Não precisa arrumar. Tudo bem. Não tem problema.
– Ah, me desculpe, André! Não acredito nisso! Desculpe!
– Tudo bem, eu já disse que não tem problema. Você ainda quer ver o resto da casa?
– Não, é melhor não. Acho melhor ir embora, antes que eu quebre mais alguma coisa! – ela exclamou, e eu não discordei. Era melhor, mesmo.
Pouco tempo depois, estávamos no carro, e ela ainda parecia sem jeito.
– De volta para o IML? – perguntei.
– Na verdade, se pudesse, eu queria conversar com o genro. Sabe, para ter mais detalhes de como foi. Por mais detalhes que você tenha me dado, não é a mesma coisa que conversar com testemunhas.
– É, eu sei – respondi com franqueza, e imaginei que aí, talvez, houvesse alguma coisa produtiva. Queria saber que tipo de interrogatório ela faria, que eu já não havia feito. – Tudo bem, vamos lá, então. A casa dele é um pouco longe daqui, mas acho que não tem muito trânsito a essa hora.
Apesar do pouco trânsito, levamos quase uma hora para chegar; a casa do jovem casal era um apartamento em um bairro bem menos nobre da cidade, na zona sul. Em seu exterior, era bastante velho, o que se refletiu no interior do apartamento, que não tinha mais de cinquenta metros quadrados.
Quando entramos, um homem alto e forte nos recebeu; estava vestido de camisa regata e bermuda, e eu pude ver alguns hematomas em seu corpo. Eu nos apresentei e falei que precisávamos lhe perguntar ainda algumas coisas, antes de concluir a investigação, e ele, ainda que um pouco contrariado, deixou-nos entrar.
A sua sala tinha apenas um sofá e uma estante, na qual ficavam a televisão, algumas caixas de DVD, um videogame e várias fotos e troféus dele.
– Seu nome é Ricardo, certo? – Isabella perguntou.
– Isso.
– E você tem quantos anos?
– Vinte e cinco.
– Pelo que posso ver, você treina artes marciais?
– Treino, sim. Sou faixa preta de Aikido.
– E parece que ganhou várias competições.
– Sim – ele respondeu, cruzando os braços e sorrindo.
– Estava treinando esses dias? – ela indagou, apontando para os hematomas e alguns arranhões em seus braços, a que ele assentiu novamente, com orgulho. – E você é casado com a filha do coronel?
– Sim, a gente se casou faz uns dois anos.
– E vocês se conheceram como?
– Na faculdade. Ela fazia artes plásticas, e eu estava fazendo educação física.
– Faculdade particular?
– Sim.
– E você tinha algum tipo de bolsa doação?
Ele pareceu surpreso com o comentário, mas concordou.
– Você não é daqui, é, Ricardo?
– Não, eu nasci em Presidente Prudente.
– Eu percebi pelo seu sotaque – a patologista comentou. – Não era essa a cidade onde o coronel morou por um bom tempo antes de vir para cá?
– Acho que sim.
– E vocês nunca se encontraram lá?
Ele deu um leve sorriso.
– Acredite se quiser, nunca.
– Puxa vida, e eu que achei que todo mundo se conhecesse em cidades pequenas… – ela falou, batendo as mãos. – Agora, Ricardo, você se importa se eu usar seu banheiro? Eu não queria pedir, mas você sabe como é, levamos uma hora para chegar e vamos levar mais pelo menos uma hora para voltar…
– Não, tudo bem, pode usar. É logo ali, de frente para o quarto.
Isabella se levantou e caminhou pelo corredor, mas pareceu entrar no lugar errado, pois murmurou um pedido de desculpas e, sorrindo desconcertada para nós, na sala, entrou no banheiro. Sem ter muito o que conversar neste ínterim e ainda me perguntando sobre o que mais a patologista questionaria, pedi que Ricardo me explicasse um pouco sobre Aikido, e ele estava animadamente me ensinando um ou outro golpe, quando ela retornou do banheiro.
– Bom, Ricardo, muito obrigada pela sua ajuda. Vai me ajudar bastante a fechar o meu diagnóstico – ela falou, estendendo a mão para cumprimentá-lo.
Ele pareceu tão surpreso quanto eu, tendo a entrevista sido interrompida tão precocemente, mas nos cumprimentou e nos levou até o elevador. Tão logo nos encontramos fechados, eu tentando rever toda a conversa e identificar que pista ela havia obtido a partir dela, ela se virou para mim, séria.
– Você consegue prender ele, ou precisa de ajuda?
– Como assim?
– O Ricardo. Eu tenho certeza de que ele vai reagir, e ele é violento. Você acha que consegue prender ele sozinho, ou precisa de ajuda?
– Mas, por quê?
– Porque ele é culpado por homicídio doloso, e não culposo.
– Você quer dizer que foi de propósito?
– É isso o que quer dizer doloso, não é?
– Mas como você sabe? – indaguei, surpreso.
– Isso não importa agora. Você consegue prender o homem ou não?
– Acho que consigo, mas eu não posso fazer isso se você não tiver certeza de que…
– Quando ele estiver algemado, eu vou contar passo a passo o que aconteceu. Confie em mim.
Eu hesitei por alguns segundos; deveria confiar nela? O que ela sabia de criminologia? O que ela sabia que nós não sabíamos? Como ela podia ter certeza de que ele era culpado? Ela era só uma patologista! Não era investigadora!
Por outro, ela havia mostrado soluções brilhantes para a causa da morte do tal de João. Poderia ela estar certa novamente? O que ela encontrara naquela casa e ouvira naquela conversa que eu não tinha percebido? Que pistas havia lá sobre a culpa do homem, que eu mesmo, com toda a minha experiência, não sabia?
Respirei fundo e a encarei; minha curiosidade era maior do que o risco de prender um homem inocente. Se estivesse errada, nós o soltaríamos depois. Apertei o botão do sétimo andar, e nós retornamos.
De frente para a porta, apertei a campainha uma, duas vezes, mas ninguém respondeu. Bati à porta, chamei pelo homem, mas nada; entretanto, quando encostei meu ouvido para tentar discernir se ainda havia alguém lá dentro, ouvi gritos desesperados de uma mulher, algo abafados. Tentei abrir a porta, mas estava trancada.
– Se afaste! – ordenei para Isabella e, em um ímpeto, chutei a porta; ela tremeu, mas não abriu. Tentei novamente, e ainda uma terceira vez, mas só quando joguei todo o meu peso com o ombro, ela cedeu.
Puxei a arma do coldre e corri para o quarto para encontrar Ricardo inclinado sobre uma mulher, usando suas pernas para prender as dela, uma mão segurando suas duas, e a outra usando para lhe bater no peito.
– Eu falei pra você que não era pra ninguém te ver! Eu não falei? Não falei?
– Parado! – ordenei, apontando a arma. – Largue essa mulher, coloque as mãos para cima e saia desta cama!
O homem olhou para mim ensandecidamente e pareceu considerar a possibilidade de me desarmar. Eu, contudo, encarei-o nos olhos, impondo-me.
– Nem pense em fazer nada, ou eu vou atirar. E em legítima defesa, não como você, que matou seu sogro a sangue frio e depois veio com uma desculpinha idiota dessas!
Isso pareceu desmontar o homem, que me encarou como se eu tivesse descoberto algo impossível; devo dizer que fiquei igualmente surpreso, pois até o momento não esperava que fosse de fato verdade, e ele teria aproveitado este momento de surpresa, se Isabella não tivesse berrado de dentro da sala:
– Investigador Dias, está tudo sob controle aí, ou quer que o resto da unidade entre?
– Está tudo sob controle – respondi. – Vou algemar o meliante e já saio.
Isto fez o homem desistir de vez, e ele apenas se virou e estendeu as mãos para que eu as algemasse. Rapidamente eu o prendi e o levei para a sala, empurrando-o sem o menor cuidado; tenho certeza de que, se tivesse tido a oportunidade, ele teria me atacado também. E Deus sabe o que teria feito com aquela mulher.
Na sala, Ricardo pareceu surpreso de não haver nenhum outro policial, mas apenas a patologista, sentada no sofá como se nada tivesse acontecido. Eu peguei uma cadeira da mesa da cozinha e a coloquei de frente para o sofá, empurrando-o para que se sentasse; em seguida, postei-me diante dele, encarando-o, ainda com a arma em mãos, enquanto Isabella foi para o quarto, ver se estava tudo bem com a moça.
– É bom você ficar bem quieto, ou as coisas podem ficar bem piores para você – eu falei e peguei meu rádio para chamar uma viatura.
Pouco depois, a médica retornou e se sentou no sofá; eu a olhei com apreensão.
– Está tudo bem com ela – respondeu. – Mas acho bom que ela vá para um hospital e faça um ultrassom. Primeiro, para confirmar a gravidez, e segundo, para ter certeza de que esse cretino não fez nada com o feto. Vai saber onde ele não bateu.
A expressão de surpresa foi a mesma em nós dois.
– Ora, por favor, isso foi muito simples. Tinha uma caixa de teste de gravidez com o palito com resultado positivo guardada dentro do armário do banheiro. A descoberta é recente e vocês estão esperando para mostrar para o médico. Além disso, o fato de ter guardado mostra que, ao menos para a sua esposa, o filho é desejado. Eu não consigo imaginar como ela gostaria de ter um filho com você, mas quem sou eu para julgar? E, aliás, seu sogro aparentemente compartilha da minha opinião, porque foi este o motivo da briga de vocês neste fim de semana, não?
Eu olhei para Ricardo, e a expressão de surpresa e desalento na sua face era tamanha, que não precisava sequer falar para mostrar que ela estava certa.
– Você realmente discutiu com o seu sogro antes e, em um espírito apaziguador, graças à sua esposa, não duvido, ele decidiu fazer este almoço de confraternização. Mas você tinha outras ideias, não é, Ricardo? Você é pobre, foi pobre sua vida inteira, e a oportunidade de se casar com uma moça rica era boa demais. Não é possível que você nunca tivesse nem sequer ouvido falar do coronel Silva, porque ele sempre foi muito famoso em todo o interior de São Paulo. O seu plano foi simples: vir para São Paulo, entrar em contato com a filha do coronel, casar com ela e, depois, matar o seu sogro para ficar com todo o dinheiro. Fácil, e o almoço foi a oportunidade perfeita; lutador tão bom quanto você é, você simplesmente quebrou o seu pescoço com uma torção. Ele nem conseguiu lutar, de tão rápido que você foi. Depois, você tentou forjar a cena do homicídio entortando a grade do mezanino e, sabendo que seria suspeito o seu sogro morrer de uma torção, sendo que ele caiu, você quebrou o seu pescoço puxando a cabeça para baixo, usando um pano. A sua esposa você convenceu batendo, algo que já vem fazendo há um bom tempo, e, quanto aos funcionários, nada que um bom suborno não faça, não é? Mas vamos ver quanto tempo eles resistem, quando a polícia fizer os interrogatórios portando essas informações sobre a sua crueldade!
O homem diante de nós simplesmente murchou; conforme ela falava, ele arqueava mais e mais as costas e apoiava os cotovelos sobre os joelhos, encarando o piso sob si. Isabella o observava triunfante, e eu estava prestes a lhe perguntar como havia descoberto tudo aquilo, quando a viatura chegou com outros policiais. O SAMU chegou pouco depois, e logo estava tudo encaminhado.
– Levem o Ricardo para a delegacia. Enquanto isso, eu vou levar a doutora Angier de volta para o IML e, depois, encontro vocês – falei.
– Mas o que uma patologista está fazendo aqui, André?
– Acredite se quiser, foi ela quem descobriu que a alegação de legítima defesa foi um plano muito bem arquitetado. Ela é incrível!
Pouco depois estávamos nós dois no carro, a caminho do Instituto Médico Legal, e o trânsito estava tão pesado, que tivemos bastante tempo para conversar a respeito do caso.
– Como foi que você descobriu tudo isso, doutora Angier?
– Isa.
– Como?
– Acho que depois de tudo isso, você pode me chamar de Isa, não?
Eu assenti, sorrindo.
– Bom, foi bastante simples, quando você para para pensar. Primeiro, a história era de que o homem caiu e quebrou o pescoço. A primeira coisa que eu procurei foi alguma indicação da batida na cabeça, que eu não achei. Isso já levantou minhas dúvidas, e mais ainda quando eu vi seus braços, que também não tinham nenhuma lesão. Foi quando decidi examinar a coluna, e dissequei da mesma forma que você me viu dissecando meus outros pacientes. As vértebras estavam, de fato, quebradas no pilar anterior, mostrando que a cabeça teve uma lesão em hiperflexão, ou seja, que ele dobrou a cabeça com o impacto. Mas as fibras da medula não estavam partidas só em uma distensão longitudinal, ou quer dizer, puxadas, mas também de uma forma torcida. Ou seja, alguém havia lhe torcido o pescoço, e antes da hiperflexão, ou os fragmentos ósseos estariam espalhados, e toda a lógica apontava para que ele tivesse sido morto assim, e depois alguém tinha tentado encobrir a cena do crime. Eu fiquei com um pouco de dúvida nesta minha teoria e tive de testar com os outros que estavam na sala.
– Ah, isso explica tudo!
– Sim. Você vê que, em um deles, eu tentei quebrar o pescoço primeiro, e depois torcer. Nos outros eu já tinha feito o contrário. A diferenciação é meio sutil, mas tudo estava me levando a ter certeza de que o homicídio por legítima defesa não havia sido tanto por legítima defesa. Ver a cena do crime apenas confirmou todas as minhas teorias. Quando eu derrubei o vaso…
– Você derrubou de propósito, então! – exclamei.
Ela sorriu, assentindo.
– Sim. O piso era de porcelanato e bastante fino. Eu tinha certeza de que, se alguém batesse a cabeça caindo daquela altura, ele iria no mínimo lascar. E foi o que aconteceu quando o vaso caiu; não só lascou, como rachou um pouco.
– Até aí, eu entendo, mas, e todo o resto? Como você sabia que ele era pobre? Que ele batia nela?
– Bom, o fato de ele ser pobre foi relativamente simples. Se ele tivesse mais dinheiro, ou pais que o sustentassem, ele não teria feito a faculdade com bolsa doação, nem estaria vivendo em um apartamento tão simples quanto este. Não duvido que ele tenha falado a verdade a respeito da faculdade, já que, quanto a isso, ele não teria por que mentir. Agora, quanto ao fato de bater na esposa, não foi difícil. Quando estava indo ao banheiro, acidentalmente entrei no cômodo errado…
– Acidentalmente? – indaguei, com um sorrisinho maroto, mas ela ignorou.
– E vi a esposa dele deitada na cama, chorando. Nos seus braços e pernas tinha hematomas em diferentes estágios de reabsorção, mostrando que ele batia nela já há algum tempo, e deve ter batido ainda mais para impedir que ela contasse sobre o pai. Eu estava esperando algo assim desde que vi o corpo do coronel e o tipo de lesão que o matou. Não era difícil de imaginar. Tenho certeza de que ele vinha provocando o coronel já há um bom tempo, para poder alegar legítima defesa. Qualquer um diria que o relacionamento entre os dois era péssimo.
– De fato, com você falando, parece bastante óbvio, mas eu nunca chegaria a isso! Nossa, Isa, você já pensou em ser investigadora, em vez de médica?
– Já – ela respondeu, sorrindo. – Por isso que fiz o meu mestrado em medicina forense.
– Mestrado?
– Sim, defendi minha tese dois meses atrás.
– Mas você acabou de se formar!
– Eu fiz junto.
Eu balancei a cabeça, inconformado. Ela não parava de me surpreender.
– Isa, se nós precisarmos de você no tribunal, você iria?
– Claro. Não sei de que forma eu poderia ajudar, mas iria, sim.
– Vamos precisar da sua opinião, sem dúvida, na hora dos dados da autópsia. E vou conversar com a filha do coronel, para ter certeza de que ela vai prestar queixa. Não podemos deixar isso do jeito que está.
Ela concordou de pronto, e, conforme voltávamos para o IML, conversamos sobre os mais diversos assuntos. Como pude observar, Isabella Angier tinha um gosto muito refinado para música e passou uns bons vinte minutos discutindo sobre Bach e Mozart, sem que eu entendesse absolutamente nada do que ela estava falando. Esta foi a primeira aventura da qual participei com Isabella Angier, e devo dizer que voltei para casa àquele dia rezando para que, na minha próxima investigação, eu necessitasse da ajuda de patologistas. O que, devo dizer, não demorou muito. Mas isto já é assunto para uma segunda aventura…
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais