O Caso da Mansão de Sherlock Holmes
Desde pequeno eu sempre quis trabalhar como policial investigativo. Justamente por isso, sempre me interessei por livros e programas de televisão que falassem a respeito de investigações policiais. Dentre os livros, os meus autores favoritos sempre foram Agatha Christie e Conan Doyle, com seu insubstituível Sherlock Holmes. Li quando criança, li de novo como adolescente e, depois, novamente como adulto, quando assisti aos filmes; o detetive que tudo sabia nunca deixou de me encantar.
E, justamente por causa disso, quando fiquei sabendo do evento que ocorreria para celebrar cento e vinte e tantos anos de Sherlock Holmes, não pude me conter; tinha de ir visitar.
Na época, já estava casado com Isabella fazia algum tempo; eu estava trabalhando um pouco menos, aproveitando a minha vida como investigador privado, mas ela continuava empolgada com seus estudos, em específico a sua livre docência. Quando lhe falei do evento, a princípio ela não se interessou muito.
– Sherlock é um dos personagens mais idiotas que eu já vi – ela falou, sem desgrudar os olhos do computador.
– Como assim? – indaguei, inconformado; aquela ofensa havia sido como uma facada no peito. – Sherlock Holmes é o maior detetive de todos os tempos!
Suspirando, ela se virou na cadeira e olhou para mim através dos seus óculos; era quando ficava irritada que seu olhar era ainda mais gracioso.
– Sherlock Holmes está lado a lado com o Dr. House na minha lista de mais desprezados. Mas, devo admitir, talvez não se deva tanto por culpa do personagem em si, e sim, muito mais provável, pelo seu autor incompetente.
– Conan Doyle, incompetente?! – interroclamei, ainda mais inconformado.
– Primeiro, porque os dois personagens que ele criou representam ele mesmo; de um lado, o fiel Sancho Pança, Dr. Watson, que reflete toda a sua incompetência como médico, ao ter uma clínica falida, na qual ele escrevia nos horários livres. Segundo, Sherlock Holmes, que representava o seu hobby, que era se meter onde não era chamado e tentar resolver crimes que não lhe faziam respeito.
– E não é exatamente isso que você faz?
– É o meu trabalho, não o meu hobby.
– E você ainda usa a mesma técnica que o Holmes!
– Ahm… Não. O Holmes muitas vezes quebrava as leis para fazer o que lhe convinha e raramente dava as informações necessárias para a polícia.
– Ele sempre deixava que a polícia se virasse! Ele sempre deixava metade das pistas!
– Não muda o fato que ele age à parte da lei e deixa muitos criminosos se safarem, como, por exemplo, no Vale do Medo, entre outros.
Eu permanecia inconformado.
– Bom, a capacidade literária do Conan Doyle era tão ruim, que ele mesmo se execrava em alguns contos. Se não me engano, em duas ou três histórias ele fala mal de si mesmo, travestido de Watson. E, para você ver, das sessenta e duas histórias de Sherlock Holmes, em apenas vinte é possível inferir o culpado ou o que aconteceu. Em algumas outras, você suspeita, mas não completamente, e na maioria o Holmes esconde todas as pistas de forma que você sequer consegue suspeitar e só vai descobrir no final.
– Mas é aí que está a graça! Ele descreve em primeira pessoa, como o Watson via as coisas, e ele geralmente só descobria no final!
– Se o Watson sabia de tudo no final, e ele escrevia muito tempo depois, como ele mesmo comenta tantas e tantas vezes sobre os supostos sucessos internacionais, privados e antigos que nunca poderiam vir à tona, ele poderia muito bem escrever em terceira pessoa. Escrever em primeira pessoa só demonstra a sua imaturidade literária. Escritores de primeira viagem escrevem em primeira pessoa!
Senti uma certa ofensa pessoal; eu escrevia em primeira pessoa!
– Além disso, ele é incongruente. Em duas histórias longas, dentre elas Um Estudo em Vermelho e O Vale do Medo, ele escreve em terceira pessoa. E, também, na última história, cujo título eu só me lembro em inglês, que foi como li, no original: His Last Bow. Existem duas histórias que têm um começo exatamente igual. E, além disso, ainda falando do Last Bow, a melhor parte, que é como ele chegou a descobrir tudo, ele nunca conta. O mesmo vale para a longa história do Dr. Moriarty, que é só comentada en passant; o melhor da história Conan Doyle era totalmente incapaz de criar e escrever. E não venha me dizer que isso era apenas para deixar a história mais interessante, porque isso só me deixava mais irritada. E, convenientemente, ele apenas descrevia os casos em que Holmes acertava, mas nenhum deles extremamente complexo. Você vê, Conan Doyle era tão infantil, que matou o seu ganha-pão por ciúmes!
Eu não sabia o que responder; nunca imaginaria que poderia existir alguém que não gostasse do meu herói de infância, e mais; que o desprezasse de tal forma.
– E, que mal me pergunte, se você detesta ele tanto, por que você se deu ao trabalho de ler tudo?
– Eu não posso opinar sobre algo que não conheço. Mas, vamos prosseguir; uma vez definida a incompetência do autor, vamos discorrer sobre a incompetência do personagem: um workaholic inveterado, que necessita tanto do movimento de sua mente que recorre ao uso de tabaco, cocaína e sabe-se lá que outras drogas para fazer sua cabeça funcionar. É um excelente ator, mas de poucos amigos e com definitivas dificuldades de travar amizades; não é possível definir ao certo, mas eu tenho grandes suspeitas de que Holmes era um portador de transtorno do espectro autista com superdotação. E, não se esqueça, ele era totalmente avesso a guardar em sua mente coisas que não seriam úteis ao seu trabalho, como, por exemplo, o fato de que a Terra gira em torno do Sol, e não o oposto; como uma pessoa destas pode exercer um cargo tão importante? É incongruente. Sem mencionar que, no final, ele exerce uma profissão inútil como apicultor, e em outra vez queria empregar seu tempo observando a semelhança entre duas linguagens diferentes. O que isso tem a ver com conhecimento para a sua profissão? E, também, eu já li os livros de cabo a rabo, mas até hoje não descobri qual universidade que Holmes fez. Não é mencionado. Fala-se também no Estudo em Vermelho que ele não tem conhecimentos de política, mas ele demonstra diversos conhecimentos sobre geopolítica e o que acontece no mundo.
Balancei minha cabeça e deixei cair os ombros, derrotado; o que poderia responder àquele arsenal de críticas? Não havia o que dizer.
– Bom, de qualquer forma… – respondi, lentamente. – Montaram uma mansão com diversas salas lá no Morumbi, cada uma representando uma das histórias do Sherlock Holmes, que vai inaugurar hoje. Eu quero ir.
– Que horas vai ser?
– Às oito.
Ela olhou para o computador, buscando o horário.
– Bom, então eu também vou.
Encarei-a, surpreso.
– Mas você não disse que detesta o Sherlock Holmes?
– A reconstrução das cenas deve ser bastante interessante. Além disso, se você gosta tanto dele…
Ela sorriu, e eu lhe dei um beijo de leve.
Pouco antes das oito horas da noite, deixamos o carro em um estacionamento – não havia mais vagas em lugar algum – e fomos até a mansão; diante dela, uma enorme faixa dizia que aquela era a primeira convenção nacional do grande detetive Sherlock Holmes; e, sob ela, centenas de pessoas, muitas vestidas com longos sobretudos, chapéus, cachimbos, alguns a estilo Sherlock Holmes, outros imitando Watson, e até mesmo alguns de figurantes, como Irene Adler, Lestrade e o temível Dr. Moriarty, todos extremamente empolgados. Era impossível não entrar no clima e, apesar do calor da primavera brasileira, não se imaginar em uma noite escura e enevoada de um inverno londrino.
– Devo dizer que é uma coisa realmente impressionante – Isabella comentou, olhando ao seu redor. – Não imaginei que teria tanta gente aqui.
Repórteres filmavam e entrevistavam os fãs; logo na entrada da mansão, uma banca vendia livros, edições especiais e Blue Rays com os filmes, e os atendentes corriam atabalhoadamente para conseguir atender a todos os pedidos em tempo.
Com pontualidade britânica, às oito horas da noite o Sr. Flávio Martins, um dos sócios da editora organizadora do evento, iniciou a inauguração da casa, com as suas saudações a todos os participantes e agradecimentos aos patrocinadores. Pouco depois, o Prof. Dr. Joaquim Andrada, presidente da União Brasileira dos Escritores, veio dar suas saudações aos fãs e os parabéns à maravilhosa iniciativa da editora, instigando fãs de todas as idades. Gastou um bom tempo do seu discurso comentando o quão importante era aquilo para a literatura brasileira, como esta estava crescendo a olhos vistos, e como era impressionante que determinados personagens de livros haviam povoado a infância de gerações e gerações de uma mesma família.
Por fim, após diversos agradecimentos, o sócio da editora retornou e declarou oficialmente aberta a primeira convenção. Pessoas comemoraram pelos jardins e logo uma fila se formou para entrar; guias levavam grupos de vinte pessoas de uma vez, que passariam por um circuito de aproximadamente uma hora e meia, visitando os mais diversos cômodos. Eu, por ter comprado o ingresso logo que lançaram o evento, consegui entrar com Isabella no terceiro grupo, e, às nove horas da noite, entramos no primeiro salão.
Era uma sala simples, de madeira, sem muitos móveis; no chão, o cadáver de uma pessoa de faces contorcidas; pelo piso, o mesmo pó e os mesmos detalhes permitiam a todos os aficionados inspecionar, com riqueza de detalhes, o local onde se desenrolou o primeiro de todos os casos de Sherlock Holmes: um estudo em vermelho. A palavra Rache, escrita em vermelho na parede, exatamente na mesma altura e da mesma forma como descrito no livro, era interativa; ao tocá-la, os alto-falantes escondidos no interior da parede indicavam as pistas que levaram Sherlock Holmes a desvendar quem era o culpado deste crime, e como. O mesmo era válido para as cinzas de cigarro, para a garrafa, e até mesmo para o homem caído no chão. Todo o nosso grupo exclamava em exultação; era incrível!
O próximo cômodo mostrava o quarto em que Holmes trabalhava, o quarto de Watson e a saleta onde compartilhavam os desjejuns e os casos. No quarto de Holmes, era possível ver o boneco que ele utilizara em pelo menos duas de suas aventuras, na primeira delas para fingir que estava no cômodo, esperando que as armas de fogo atingissem o boneco em seu lugar, e ele conseguisse pegar o culpado.
Em uma poltrona havia um ator fingindo-se de Sherlock, imerso em pensamentos, tragando seu cachimbo e ocasionalmente soltando frases dispersas; para nossa surpresa, quando menos esperávamos, ele saltava e corria para uma mesa repleta de tubos de ensaios e béqueres, onde fazia seus experimentos; e, repentinamente também, podíamos ouvir o melodioso som de um violino, representado o seu estado de humor.
– Não está fazendo jus ao seu tão amado colega – disse Isabella, entredentes. – Holmes era um violinista de primeira qualidade, e este é um de terceira. Meus ouvidos doem cada vez que ele… Ai… Desafina.
Eu, com meu ouvido péssimo para música, por mais que tivesse aprendido nos últimos anos com Isabella, não percebi nenhum erro, e para mim tudo estava maravilhoso.
No quarto ao lado, pudemos encontrar um ator fingindo ser Watson, ainda dolorido do tiro que levara na perna, pensando na guerra, e tentando montar o seu consultório de pouco sucesso. Era possível ver um baú, que compartilhava com Holmes, no qual guardava informações de todos os casos, tão detalhado como o livro índice que repousava em uma das prateleiras de Holmes.
Na saleta, um manequim de governanta servia o desjejum, com os jornais que os dois tanto compartilhavam pela manhã.
O terceiro cômodo em que entramos era uma reprodução fiel do quarto encontrado em o Signo dos Quatro, no qual um manequim estava sentado à mesa, com seu riso sardônico, totalmente paralisado; haviam feito de tal forma, que era possível subir pela falha no teto até o forro e, dele, para o telhado, seguindo o caminho que o assassino fizera.
– Extremamente interessante, não? – comentei para Isabella, apertando o signo dos quatro escrito em um papel na mesa, que imediatamente começou a discorrer sobre o conto. – É neste conto que ele conhece a Mary, com quem se casa.
– Extremamente interessante é o fato de quão pouco ela é mencionada durante a história e de que, uma vez que Holmes retornou, Watson basicamente a abandona para voltar a Baker Street.
– Como assim, abandona?
– Bom, desde 1890, basicamente não há mais nenhuma menção a Mary, e os dois muitas vezes passam semanas juntos viajando.
– Ora, isso não significa nada!
Isabella apenas deu de ombros e se virou; ao meu lado, pude ver alguns outros olhares inconformados, apoiando-me, outros sorridentes, apoiando-a, e o fato de que ninguém possuía uma resposta convincente para aquela crítica.
Estávamos para sair da sala, quando o Sr. Flávio Martins, acompanhado de uma mulher muito bem vestida, interrompeu-nos.
– Boa noite, Dias – ele disse, estendendo a mão para me cumprimentar. – Esta é minha esposa, Alessandra.
Cumprimentei ambos e apresentei a minha esposa.
– Ah, nós conhecemos a Dra. Angier muito bem – ele comentou. – Afinal, não tem ninguém no Brasil que não tenha ouvido falar dela, depois do caso do Anatomista.
Ela sorriu de leve, apenas por educação; embora tenhamos conseguido pegar o sujeito, apenas muitos anos depois, para ela ainda era muito doloroso pensar naquilo.
– Sabe, Dra. Angier, eu estava justamente discutindo o quanto seu método é semelhante ao de Sherlock Holmes.
Ela estava prestes a responder – sem dúvida de que não se assemelhava de todo –, quando ouvimos um grito ecoando de cômodo em cômodo, e o celular do senhor Flávio tocou.
– Sim, sim. Entendo. Já estou indo para aí – ele desligou o telefone e olhou para nós, nervoso. – Dra. Angier, será que poderia abusar um pouco de sua boa vontade?
– O que aconteceu? – ela indagou.
Ele se aproximou e cochichou para que apenas nós dois ouvíssemos.
– Parece que ocorreu um acidente com a esposa do meu sócio.
Era sempre assim; eram raras as ocasiões em que nós podíamos passear em paz, sem que nada acontecesse. Justamente como havia ocorrido em nossa lua de mel e tantas outras vezes.
Ficamos todos surpresos; eu olhei para Isabella, que encarava Andressa, antes de olhar para o próprio homem.
– O que foi que aconteceu, exatamente?
– Venha comigo, eu vou informar no caminho – ele respondeu, e rapidamente nos levou por um intrincado labirinto de salas, enquanto falava. – Parece que, na exposição do quarto da Faixa Malhada, a cobra mecânica mordeu a Mariana.
– A esposa do seu sócio.
– Sim.
– Mas, como uma cobra mecânica mordeu uma pessoa?
– Ela é feita para dar o bote em um boneco, deitado na cama. Não sei exatamente o que foi. Espero que não tenha sido grave.
Todos caminhamos aflitos pelas portas, até parar diante de um cenário com dois quartos, separados por uma parede; em um, havia alguns poucos móveis, da mesma forma que descritos no livro, um buraco de ventilação no topo da parede e uma corda logo acima da cama. Uma cobra mecânica atravessava de um quarto para o outro – e era possível ver no quarto do dono da cobra os seus apetrechos indianos, o chicote e o cofre, onde a cobra ficava guardada –, descia pela corda e mordia um manequim, representando a vítima. Em uma cadeira havia espaço para uma pessoa se fingir de detetive e aguardar a chegada da cobra para acertá-la com um chicote.
No chão, caído ao lado da cama, estava o corpo de uma mulher, e, ajoelhado ao lado dela, um homem, segurando sua mão. Todos os outros, exceto pelo guia do local, haviam sido removidos para outra sala.
Imediatamente, ao ver a mulher, eu me prostrei ao seu lado, pedindo que o marido saísse, e chequei para ver se ela estava viva, pois estava tão imóvel, que a impressão inicial era de que a vida já a havia abandonado. Isabella, contudo, olhou para todos os arredores, antes de se aproximar.
Olhando-a do chão, balancei a minha cabeça; ela parecia já estar morta de fato. Ela se ajoelhou ao lado e pôs a mão em seu pescoço; em seguida, encostou a orelha em seu peito e ficou um longo tempo. Ficou alguns momentos pensativa, observando cada detalhe da mulher, até identificar, em sua barriga, a marca de duas mordidas, da presa.
– O que foi que aconteceu aqui afinal? – ela indagou para o marido.
Ele parecia em choque, mas conseguiu se controlar e articular a resposta.
– A cobra apareceu e se pendurou na corda, e ela se aproximou para olhar. No que ela se aproximou, a cobra deu um bote e mordeu ela na barriga. Nós tentamos chamar por ajuda, mas foi coisa de alguns segundos… – ele respirou fundo. – Eu não sei o que aconteceu.
– Onde está a cobra? – indaguei. – E quem é que controla esse negócio?
– Deve estar guardada no cofre – respondeu Flávio. – Como aconteceu na história. E, até onde eu sei, ela é previamente programada…
Ele chamou o guia que estava lá e pediu que encontrasse o responsável pelas partes eletrônicas da casa; enquanto isso, caminhou conosco em direção à outra sala, também deserta, onde encontramos o cofre fechado e os trilhos por onde a cobra mecânica caminhava.
O homem tentou abrir a porta, mas estava lacrada, e nem mesmo tentando mexer na combinação, conseguiu.
Isabella, enquanto isso, analisava o corpo da vítima.
Pouco depois, um dos funcionários se aproximou, e eu lhe perguntei como funcionava a cobra, enquanto ele se postava para destrancar o cofre.
– Ela é programada antecipadamente para fazer este percurso – ele falou. – Basicamente, não tem muito o que fazer. Ela tem poucos movimentos adicionais. O único jeito de ela morder alguém é se ela se postou no meio do caminho, ou se alguém tirou ela do trilho na hora em que ela ia morder o boneco.
Ele girou a combinação do cofre uma única vez e o abriu; lá, conforme pudemos observar, havia uma cobra amarela, malhada, enrolada.
– Eu vou ativar a cobra para vocês verem – ele disse.
Levantou-se, apertou um botão atrás do cofre, e, lentamente, com um som a acompanhar, a cobra se desenrolou e começou a caminhar pelos trilhos; subiu por uma corda, atravessou o tubo de ventilação e, conforme a acompanhamos pelo vão na parede, desceu pela outra corda, postou-se sobre o manequim e deu um bote em seu ombro.
– Ela pode parar? – indagou Isabella.
O chefe deu a ordem para que o controlador a interrompesse, e a minha esposa se pôs a cuidadosamente examiná-la, até que se deu por satisfeita.
– Isso é extremamente curioso – ela comentou. – Parece que…
Contudo, ela não conseguiu terminar; logo, outro grito, e imediatamente começaram a ligar no telefone de Flávio.
Ele se virou para nós com a face sombria.
– Aconteceu outro “acidente”? – perguntou Isabella.
– Isso.
– Onde?
– Na sala do Pé do Diabo.
– Precisamos tirar todos daqui – exclamei.
– Não – respondeu minha esposa, e o guia parou seu movimento no meio.
– Por quê?
– Isso não foi um acidente qualquer – ela disse. – E aquele também não. Ninguém pode sair daqui. Para todos os fins, é uma cena de crime. Eu quero que todos se reúnam em um lugar. Tem algum auditório ou coisa do tipo por aqui?
– Eu acho que o único lugar que poderia comportar todo mundo é o cenário de Baker Street, onde temos três salas interligadas – disse Flávio.
– Lá é perigoso pelas armas aéreas e pela caixa do botânico.
– O quê? – indaguei.
– São duas ocasiões em que morte ocorreu ou quase ocorreu na sala de Holmes. Os dois únicos lugares seguros são o quarto do Watson e a saleta onde tomam café da manhã. Conseguimos colocar todos lá?
– Acho que não.
– Você tem um mapa?
O guia prontamente lhe entregou um encarte.
– Bom, nós temos algumas salas razoavelmente seguras. A do Ritual de Musgrave é uma delas, e acredito que a do Cão dos Baskerville dificilmente poderia machucar alguém. O cão também se mexe?
– Não, ele só brilha no escuro e aparece do nada.
– Então, está bem. A da queda do Dr. Moriarty também é um bom lugar. Não tem nenhum despenhadeiro de verdade, não é? Ótimo. Agora, ninguém pode ficar nestas salas aqui…
Ela começou a marcar com uma caneta todos os cenários em que algum tipo de morte havia ocorrido nas histórias de Sherlock Holmes. Depois, virou-se para o senhor Flávio.
– Acho que seria bom se você se escondesse, também.
– Eu? Por quê?
Ela olhou para Andressa e respondeu sem desviar os olhos dela.
– Acho que o senhor pode ser a próxima vítima. Vá se esconder, e deixe que André e eu vamos cuidar de tudo.
Dito isso, ela me pegou pela mão e me puxou em direção a outro cômodo; quando estávamos longe o suficiente, ela parou e se virou para mim.
– André, fique de olho neles. Eu não confio naquela Andressa.
– Por quê?
– Não importa agora. Fique de olho neles, antes que alguma coisa aconteça. Eu vou cuidar do outro.
E, com isso, desapareceu pelas portas, aparentemente como se conhecesse o lugar como a palma das mãos.
Eu me separei e fui para outra direção; segui os dois de perto e pude observar o homem pedindo que todos saíssem. Ele voltou para a sala da Faixa Malhada, onde orientou o sócio a sair o mais rápido que pudesse, uma vez que ele também poderia ser uma vítima, mas este pareceu não se importar e continuou postado ao lado de sua esposa.
Em seguida, eles caminharam por todas as salas, orientando a todos, e somente interromperam sua marcha na sala do Signo dos Quatro; neste ponto, escondi-me atrás da porta e pude ver a esposa segurando seu marido pela mão e o puxando para si. Segurou sua cabeça, disse alguma coisa provocativa em seu ouvido e começou a raspar sua coxa na dele, expondo-a toda através de seu vestido cortado. Ele respondeu algo, tentou se afastar, mas logo ela o puxou novamente e o beijou, segurando sua cabeça com a mão esquerda.
E, repentinamente, o homem deu um grito, levou uma mão ao pescoço, do lado esquerdo, e, zonzo, começou a cambalear. Tentou se apoiar na cadeira, mas não conseguiu, e foi ao chão, derrubando a cadeira e o manequim.
Andressa olhou para os lados; eu me escondi na sombra, evitando ser visto. Guardou algo na bolsa, lançou um olhar para a parede oposta e, por fim, tomou o celular. Falou rapidamente com alguém e desligou; em seguida, ajoelhou-se ao lado do marido e, desesperada, começou a gritar por socorro.
– Parada aí! – exclamei, aproximando-me da mulher e lhe apontando a arma.
Ela me encarou, assustada.
– Dias? O que foi que…
– Ponha a bolsa no chão. Isso. Agora, ponha as mãos para cima e se levante… E fique parada ali, onde eu possa ficar de olho em você.
Observei o corpo no chão; o homem estava caído, com uma expressão de dor, e, ao seu lado, uma pequena flecha de zarabatana, exatamente da mesma forma como descrito no livro. Olhei para a parede de onde teria vindo o tiro, mas não consegui identificar nada; julguei ser mais seguro tomar a bolsa em mãos e me pôr entre a parede e a mulher.
Sem tirar os olhos da moça e sem abaixar a arma, pus-me a vasculhar a bolsa; havia, no bolso externo, um pequeno botão de camisa, que não seria de todo estranhos se não fosse totalmente destoante do conteúdo que deveria haver em uma bolsa de festa. Analisando o botão em mais detalhes, percebi que uma parte era retrátil. Olhei para Andressa; tentava se manter impassível, mas era possível ver em seus olhos o desespero pelo que eu acabara de encontrar.
Olhei para a parede, abaixei-me e apertei o botão; da altura do pescoço do homem, um dardo surgiu e cruzou o cômodo, fincando-se do outro lado.
Eu a encarei; ela não sabia o que dizer. Era inteligente demais para começar a balbuciar aquelas idiotices do tipo: “Eu não sei nada disso aí”.
– A senhora está presa por homicídio qualificado – anunciei e dei seguimento aos procedimentos.
Pelo rádio, confirmei onde estavam meus colegas, que já haviam sido previamente avisados no primeiro assassinato; em poucos minutos, Daniel chegou e realizou a prisão. Em seguida, liguei para minha esposa, contando o que aconteceu, e corri para a sala da Faixa Malhada, onde Murilo, o sócio, ainda estava; permanecia ao lado de Mariana, conversando com um dos policiais. Isabella também estava no cômodo, vasculhando-o cuidadosamente.
– Nós estávamos perto da cobra, que ela quis olhar de perto, quando, de repente, ela veio e mordeu a sua barriga, aqui, assim… – ele dizia.
Foi quando minha esposa se levantou, escondendo algo em sua mão direita, e se virou para o homem.
– Sabe, é uma coisa bastante interessante, seu Murilo.
– O quê? – ele indagou, com um sorrisinho de escárnio no rosto.
– Como o senhor acha que a mordida de uma cobra mecânica fez a sua esposa morrer tão rapidamente?
– Eu não faço a menor ideia.
– Afinal de contas, é uma cobra mecânica…
– Não sei. A mordida pegou alguma parte vital? – ele tentou, seu sorriso mudando do escárnio para uma leve irritação.
– Aquele ponto da barriga não tem nada de vital – Isabella respondeu, calmamente. – No máximo, talvez, pegaria uma alça intestinal, mas é muito difícil…
Ele não respondeu.
– O que a senhora sugere, então, doutora?
– É isso o que eu estou perguntando.
– Eu não sou obrigado a responder este tipo de pergunta.
– Bom, o que você me diz disto aqui, então?
Ela mostrou um pequeno objeto de metal, semelhante à boca de uma serpente, com duas presas pontiagudas; no momento em que a pressionou, dois jatos de líquido espirraram contra o chão.
O homem não respondeu absolutamente nada.
– Curiosamente isto estava preso no estrado da cama, ao lado de sua esposa… E, vejam só… – ela ergueu a blusa da moça o suficiente para mostrar a lesão. – Se encaixa perfeitamente aqui, não?
A expressão do homem havia se tornado de pura fúria.
– Me diga uma coisa, seu Murilo; quantas pessoas você pretendia matar aqui hoje para acobertar os seus planos?
– Meça bem suas palavras, doutora. A senhora está me acusando de coisas irreais.
– Irreais? Instalar um apetrecho em cada lugar desta casa que pudesse assassinar alguém, sem deixar de reproduzir a cena real, como se não passasse de um simples acidente? Eu devo dizer, foi uma ideia de mestre, seu Murilo.
– Eu não preciso ouvir isso – ele respondeu. – Vamos embora daqui logo de uma vez.
– Sabe, acho que o senhor deve ter um coração de ferro. O senhor e a sua comparsa. Matar a própria esposa e pedir que a amante matasse o próprio marido, seu sócio e colega há tantos anos…
O homem não precisou falar absolutamente nada. Apenas a expressão em seu rosto foi o suficiente para mostrar a realidade.
– Vamos, seu Murilo, seja uma pessoa honesta e faça como nas histórias de Holmes. Conte como tudo aconteceu, admita a sua culpa. O senhor já vai para a prisão de qualquer forma e não vai ter escapatória.
– Eu não tenho de responder nada a ninguém. Não há prova de nada contra mim.
Ela apenas balançou a cabeça; por seu olhar, tive certeza de que queria dizer: “Viu com o livro é irreal? Ninguém nunca sai confessando seus crimes por pura boa vontade”.
– Muito pelo contrário. Quem mais estaria interessado na morte de sua esposa e do seu sócio ao mesmo tempo? As provas poderiam até ser insuficientes, se a linha dos acontecimentos não fosse tão óbvia como o que aconteceu aqui hoje. Vamos começar pela sua esposa. Primeiro, uma morte supostamente acidental, causada pela mordida de uma cobra mecânica. Talvez até pudesse passar despercebido, se eu não estivesse aqui. O senhor poderia muito bem se recusar que a autópsia fosse realizada por fins religiosos, já que, até onde sei, sua esposa é judia, e conseguir algum médico que atestasse o óbito por vocês. Eu, no entanto, estava aqui. E me pareceu extremamente estranho uma pessoa morrer por uma mordida de um boneco. A única forma seria se ele tivesse algum veneno… Minha primeira ação foi ver a cobra. Caso você se dê ao trabalho de perceber, as presas da cobra são arredondadas e nunca perfurariam uma pessoa. Ninguém se daria ao trabalho de olhar isso, se não estivesse procurando, e o fato de que ela fica enrolada e guardada no cofre seria bastante conveniente. Bom, observado a cobra e vendo que ela não era a culpada, tive de buscar uma outra opção. E esta seria, lógico, a de que alguém havia propositadamente injetado veneno nela com algo semelhante à mordida de uma cobra, que foi o que eu encontrei aqui.
– O seu pensamento não tem lógica. E, também, não tem como provar que isso é meu – ele falou. – Eu nunca encostei nisso. Eu nunca nem sequer tinha visto isso até agora.
– É lógico que não. Apagar as digitais é uma coisa bastante fácil. Mas nós não precisamos disso para provar a sua culpa. Vamos prosseguir com o meu pensamento; por que o senhor se daria ao trabalho de matar sua esposa? Crime passional é o primeiro que me veio à mente. Ou o senhor a estava traindo, ou ela estava traindo o senhor. A resposta me foi bastante óbvia; bastou observar os olhares que Andressa trocava com o seu marido e com o senhor, e a surpresa e aflição que Flávio mostrou diante da morte de Mariana. Eu diria que era um caso de troca de casais.
O outro se mostrou surpreso.
– Ah, aparentemente, o senhor não sabia, então? Significa, assim, que matou seu sócio só para ficar com a empresa e a amante, e não para se vingar.
Ele não respondeu, e sua estupefação já era o suficiente.
– Eu estava em dúvida se vocês dois iriam agir contra o senhor Flávio na noite de hoje, mas, como o segundo assassinato me mostrou, vocês queriam aproveitar a oportunidade; era uma noite perfeita. E, além isso, vocês tinham de acobertar, porque seria absurdo que apenas os dois morressem. Seria muito óbvio. Então, vocês mataram outros na sala do Pé do Diabo, que, como na própria história, é perfeita para isso. Ela dá a receita de como matar um cômodo cheio de pessoas com nada além de uma erva queimada. Perfeito. E, em meio a tantas pessoas, por que alguém suspeitaria dos senhores? Mas eu fui mais além. Quando me falaram que outra pessoa havia morrido, que não o seu sócio, que seria o segundo na linha, eu tive a minha confirmação. Era claro. E quantos mais vocês teriam matado no dia de hoje? Havia um arpão esperando por alguém que entrasse na cabana do marinheiro? Havia uma espingarda esperando na sala do Vale do Medo?
Ele não respondeu nada.
– E, meu caro, não é necessária nenhuma digital sua. Quem mais conseguiria articular tudo isso? Quem mais teria acesso a todos os dados da casa, desde a organização inicial? É óbvio que não era a intenção do Flávio se matar hoje.
– Era intenção do Flávio me matar! – ele exclamou, por fim. – Foi a Andressa que descobriu e contou tudo! Ele tinha descoberto sobre nós e armou tudo, mas a gente conseguiu virar o jogo! Ele nunca imaginou que Andressa sabia de todos os detalhes e, especialmente, para que servia aquele botão da camisa!
– O feitiço se virou contra o feiticeiro, então, seu Murilo?
– Exatamente! – ele exclamou, triunfante. – E, como eu disse, não precisava de nada além do que já tinha para ter certeza de quem era a culpa – ela respondeu. – Muito bem, acho que não tem mais o que ver aqui. E, em homenagem ao nosso personagem aqui representado, eu devo dizer, André, tudo foi extremamente elementar, embora, claro, ele nunca tenha dito isso nos livros, mas apenas nas adaptações cinematográficas, e que, na falta de uma ópera, ainda é cedo o suficiente para irmos ao Shopping e pegar algum filme. O que acha?

O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais