O caso das faces de Oni
Certamente, um dos casos mais curiosos que já trabalhei com a Isabella em todos estes anos foi o que apelidei de “O caso das faces de Oni”. Foi mais um daqueles casos em que fiquei perplexo com a capacidade dedutiva de Isabella, diante das coisas mais simples, apesar de indicarem algo extremamente raro.
Comecemos comigo chegando à nossa casa, após um dia cansativo de trabalho, para encontrar um casal sentado no nosso sofá. O homem era um negro, que parecia estar na casa dos cinquenta anos, mas, como descobri depois, disfarçava muito bem a idade, pois era mais velho. Estava vestido com um terno muito elegante e conversava com leveza, ao mesmo tempo em que parecia dominar o ambiente ao seu redor. Segurava uma taça de vinho na mão, que Isabella certamente havia servido, o que era relativamente incomum.
Na poltrona ao lado estava uma moça, na casa dos trinta e tantos anos, igualmente negra, muito altiva e bonita, vestida com um terninho igualmente elegante. Ela, também, segurava a sua taça de vinho e participava da conversa com animação.
Cumprimentei Isabella ao entrar, e ela me apresentou os convidados:
– André, esses são Aldebaran Fogaça e sua filha, Diana. Eles trabalham no escritório de advocacia Fogaça & Fogaça.
– Prazer – disse eu, enquanto Aldebaran apertava minha mão com firmeza. – Bem que achei vocês familiares! – prossegui, enquanto Diana me dava um aperto igualmente forte. – O escritório é famoso!
– Eles vieram me contar de um caso muito interessante em que estão trabalhando – disse Isabella, a única que não estava com o vinho em mãos.
– Vieram só a trabalho, ou vamos todos jantar? – perguntei. Estava morrendo de fome!
– É uma pena, mas não podemos ficar hoje. Mas será um prazer jantar com vocês outro dia – disse Aldebaran. – Acompanho seu trabalho desde o caso do Anatomista e, devo dizer, fiquei muito impressionado.
Eu balancei a cabeça.
– Quem trabalhou de verdade foi a Isabella, não eu.
Ela abanou a mão.
– Vamos, deixem dessas amenidades. Aldebaran, conte para o André o caso que vocês têm em mãos, tenho certeza de que ele vai poder nos ajudar.
Eu deixei minha mochila de vigilância na mesa e me sentei ao lado de Isabella, curioso.
– É um caso muito… Peculiar – disse ele, afagando o basto bigode. – Um homem de 42 anos foi preso por assassinar a esposa. Bem, na verdade, não foi apenas assassinar; houve o que chamaram de “requintes de crueldade”.
– Por quê? – questionei.
– As imagens falam por si mesmas – ele disse, entregando-me um dossiê.
Ele trazia as reproduções das fotos tiradas por policiais e, também, pelo médico legista que avaliou o caso. Era um dos colegas de Isabella, inclusive.
A mulher, que poderia muito bem passar por uma modelo, estava de camisola de seda, toda manchada de sangue. Alguns rasgos na roupa e arranhões pelo corpo mostravam que, antes da morte, houvera alguma briga corporal. O pescoço tinha marcas de estrangulamento, mostrando claramente qual havia sido a causa da morte.
Mas, se fosse só por isso, certamente não teriam procurado Isabella, não é? Tinha de haver algo mais bizarro.
Eu sempre tive minha ressalva com advogados criminalistas. Talvez você não conheça, caro leitor, mas o escritório Fogaça & Fogaça é um dos mais famosos (e mais caros) do país. Eles são especialistas em defender criminosos. Como eu sempre atuei do outro lado, nunca gostei particularmente deles, mas, ao menos, nunca os vi reverter uma condenação para a qual tínhamos provas suficientes, como vemos ocorrer tantas vezes na política. No máximo, eles diminuíram a pena.
Sendo assim, isso só podia significar que o homem envolvido era muito, muito abastado, ao mesmo tempo em que muito, muito culpado. A combinação perfeita para esse escritório.
Só que o requinte de crueldade do que ele fizera era o que certamente estava deixando a equipe de advogados de cabelo em pé.
– Alguma ideia de por que ele retalhou a face dela?
– É justamente por isso que estamos aqui – respondeu Diana.
Olhei mais uma vez para a fotografia: o rosto da moça estava desfigurado. O homem havia cortado, provavelmente com uma faca de cozinha, ao redor dos olhos, orelhas, sobrancelhas, nariz e boca. A moça estava praticamente irreconhecível.
– Vocês são famosos por esses casos bizarros – ela disse.
– Eu diria que casos com pessoas que gostam de mexer no corpo das outras são meio que sua especialidade – disse Aldebaran, referindo-se, é claro, ao meu nêmesis.
– Não tenho nenhuma atração específica por eles, mas parece que eles gostam de me encontrar… O que o assassino… Quero dizer, o seu cliente disse?
– Isso é o mais peculiar – disse Aldebaran. – Ele refere que estava vendo faces demoníacas em todos os lugares. Que a esposa tinha se tornado um demônio.
– Oni foi o termo específico que ele usou. Já ouviu falar? – adicionou Diana.
– Vou dizer que não me é estranho o nome…
– São demônios japoneses – disse Isabella.
– Não vai me dizer que é mais um daqueles Otakus que o Jonas gosta?
– Ele não sabia o nome – disse a advogada. – Na verdade, ele não parece ter nenhum gosto específico por cultura japonesa. Mas, quando fez a descrição para o nosso papiloscopista…
Eles tinham um papiloscopista próprio? Que luxo! Eu tinha passado anos na polícia implorando por um!
Ela puxou do dossiê algumas imagens de seres bizarros. Alguns tinham faces realmente demoníacas, como aquelas máscaras de samurai que vemos à venda por aí, ou os itens de decoração que se encontram vendendo em lojas na Liberdade. Uma delas, porém, seria razoavelmente sensual, se não fosse pela cabeça: era uma moça com corpo de modelo, nua, porém com o rosto de uma raposa.
– Esse se chama Kitsune. É um tipo de Yokai. É como ele diz que a sua esposa parecia para ele.
– Como é? – perguntei, surpreso.
– Exatamente isso – disse Aldebaran. – O homem afirma com todas as letras que o rosto das pessoas se modifica quando ele olha. Que todos se parecem com demônios, e que sua esposa, especificamente, se parecia com essa criatura.
– E foi isso que levou ele a atacar ela?
– Exatamente – respondeu Diana.
– Ele estava com medo. Encurralado. Cercado de demônios por todos os lados. Acuado, acabou por atacá-la. A destruição do seu rosto foi para tentar fazer a criatura sumir – disse Aldebaran.
– Mas, como isso…? Não faz sentido!
– Ele começou a ver as pessoas assim há aproximadamente um mês. No começo, achou que estava surtando de cansaço, ou algo do tipo, mas a coisa só piorou. Ele chegou a procurar atendimento médico e até mesmo a tomar medicação, mas sem sucesso. Quando reconheceu o tipo de seres que ele estava enxergando, começou a estudar mais de mitologia japonesa, e realmente começou a acreditar que estava vendo demônios de verdade, que tinham dominado o corpo das pessoas. E isso o levou ao ataque.
– A desfiguração do rosto da esposa foi para tentar fazer o tal Yokai desaparecer.
– E conseguiu? – questionei.
– Não. Mesmo com a esposa morta, ele continuou vendo a criatura, e ele só parou quando os vizinhos o arrancaram de cima do corpo da esposa. Ele tentou atacá-los, também por estar vendo demônios, e só parou quando a polícia o prendeu.
Eu devolvi a imagem e me recostei no sofá, suspirando.
– É um caso complexo! Não vejo nenhuma luz no fim do túnel.
Isabella sorriu; eu conhecia aquele sorriso. Ela sabia o que era, eu tinha certeza!
– Não vai me dizer que você…
Ela inclinou a cabeça com charme, como sempre fazia.
– Eu tenho algumas ideias. Mas preciso falar com ele, primeiro. E, também… Visitar o lugar onde ele morava.
– Vamos organizar isso!
Isso resolvido, eles tomaram mais um pouco de vinho, e Diana comentou sobre o marido e os filhos gêmeos, quase pré-adolescentes, mas que já estavam dando um trabalho!
Eu sorri. De vez em quando pensava em ter filhos com Isabella, o que era meu sonho no meu casamento anterior, mas, a cada vez que ouvia essas histórias e juntava com o meu tipo de trabalho… Bem, eu mudava de ideia.
Conseguiram organizar a entrevista com o assassino, senhor A, ainda naquela semana. De certa forma, parece uma bobagem esconder o seu nome, pois tenho certeza de que todo mundo no país, para não dizer no mundo, ficou sabendo deste caso, mas, por discrição, manterei assim.
O senhor A era um homem branco, também na casa dos 40 anos, com o aspecto de que até então vivia bem arrumado. Tinha os olhos claros, os cabelos pretos, e antes mantinha uma barba bem-feita. No entanto, todos os acontecidos dos últimos dias haviam cobrado seu preço, e ele estava desgrenhado, com a barba por fazer e claras rugas recentes de preocupação. Mais do que isso: parecia claramente transtornado. Os agentes o levaram à mesa de interrogatório algemado, e o tempo todo ele olhou para o chão. Para evitar o excesso de gente na sala, apenas Aldebaran e Isabella entraram, mas eu tive acesso ao áudio e à transcrição da entrevista, então, posso contar em primeira mão.
Isabella se apresentou, e na sequência disse:
– Senhor A, está evitando nos olhar porque nossos rostos não estão normais?
– Sim – ele respondeu.
– Todo o rosto que o senhor vê se parece com um demônio?
– Sim – ele falou novamente, com um tom de evidente sofrimento e talvez alguma resignação.
– São só os rostos, ou os corpos estão modificados também?
– Só os rostos.
Isso batia com os desenhos que o papiloscopista fizera.
– Eles sempre se associam a alguém, ou você consegue vê-los em lugares vazios?
– Eu acho que… Sempre tem alguém. Mas não sei. Não sei mais o que é real e o que não é.
– Olhe ao redor. Quantas pessoas têm aqui?
Ele respirou fundo e finalmente levantou os olhos, perscrutando pela sala, mas pulando rapidamente de uma pessoa para outra, como se quisesse evitá-las.
– Três. Além de mim – respondeu, antes de tornar a olhar para o chão.
– Exato. Muito bem. Agora, eu gostaria que você olhasse atentamente essa figura… – ela falou, pegando uma imagem da pasta. – O que está vendo?
Com alguma relutância, o senhor A tirou os olhos do chão e olhou para a superfície da mesa, onde Isabella havia colocado uma foto do Lionel Messi.
– O Messi – ele falou, parecendo surpreso.
– Ele está normal?
– Sim! – falou, com alguma esperança na voz.
– Agora, olhe para mim.
Ele levantou a cabeça mais empolgado, mas, assim que a encarou, torceu o nariz e voltou o olhar para o chão, levando as mãos à cabeça.
– Não, não, não!
– Senhor A, por favor, fique calmo. Isso é uma coisa boa!
– Como pode ser uma coisa boa? Como? Todo mundo que eu vejo parece um monstro! Um monstro horroroso! Não consigo dormir à noite, não consigo olhar para ninguém! Tenho medo de tudo! Especialmente aqui, nessa cela! Eu não… Eu não… Eu não queria! – ele falou, antes de começar a chorar. – Não queria ter… Feito… Aquilo.
– Alguém o obrigou a fazer? Alguma voz?
– Não – ele disse.
– Tem certeza?
– Tenho! – ele exclamou. – Eu não estou louco! Tomei remédio, não funcionou!
– Eu tenho um último pedido – disse Isabella, colocando um espelho na mesa. – O que você vê quando olha aqui?
Ainda chorando, ele levantou o olhar para o espelho, mas não por muito tempo; em poucos instantes, arremessou-o contra a parede, e ele se espatifou, caindo no chão em pedaços.
– Ahh!!!
Pude ouvir seus gritos na gravação. Ele se agitou, e o policial teve de o conter e levar de volta para a cela. A entrevista estava, certamente, encerrada.
Saímos todos me silêncio da delegacia e nos encontramos em uma cafeteria para discutir o caso.
– E então? – perguntou Aldebaran, sorvendo seu café.
– É exatamente o que eu pensei. É raro. Muito raro.
– Acha que tem…
– Talvez. Mas quero dar uma olhada na casa dele, antes.
Eu estava profundamente curioso com o caso, mas sabia que Isabella não ia compartilhar nada enquanto não fosse a hora, ou seja, quando todas as peças do quebra-cabeças estivessem bem encaixadas. Assim, no dia seguinte, fomos ao apartamento do senhor A, procurar algo que eu não sabia exatamente o que era.
– Qualquer coisa que possa ser útil – disse Isabella.
Pensando que o homem certamente estava tendo alucinações, e que alucinações geralmente se associavam a drogas ou remédios, seguindo meu instinto policial, fui procurar nos esconderijos usuais algum pacote de maconha, LSD, ou até mesmo cogumelos ou ayahuasca. Mas, além de concentrados de CBD, não encontrei absolutamente nada.
– Isso aqui é maconha, não é? – questionei para Isabella. – O cara compra importado para o cachorro!
– É só o princípio ativo. Não causa alucinações, se é isso que você está pensando.
– Mas, pro cachorro? Não é estranho?
– Talvez estejam usando para tratar epilepsia, ou algo do tipo.
– Sério? E funciona?
Ela deu de ombros.
– Parece que sim.
– Isabella, o que a gente tá procurando, exatamente?
– Eu quero na verdade excluir causas.
– Como é?
– O que eu estou pensando é… Algo muito raro. Muito mesmo.
– Certo.
– Só que, para ser isso, não pode ser mais nada. Então… Nós estamos procurando qualquer coisa que explique os sintomas que ele está apresentando.
Eu suspirei. Ela não ia me explicar, e eu ia continuar procurando às cegas. Tudo bem. Isso que dá ser casado com um gênio.
Continuei andando pela casa, procurando algum sinal. Observei sua mobília fina, seus vasos e quadros, dentre outras peças de decoração; cheguei ao quarto, onde ainda era possível ver as manchas de sangue (a polícia não havia liberado totalmente a limpeza da cena do crime). Observei os porta-retratos nos aparadores, e Isabella chegou bem neste momento.
– Eu não entendo por que essas coisas acontecem – falei. – Olhe aqui. Eles pareciam muito felizes! Veja o casamento em Paris… Várias outras viagens… Acampando em um lugar bonito… Olha só, até há pouco estavam em Sidney! Já imaginou? O que você acha de um dia…
– O que você falou?
– Ah, só estava pensando se um dia a gente poderia viajar para a Austrália…
Ela pegou o porta-retratos na mão, olhou para mim e, com um sorriso, disse-me a maior mentira do mundo:
– Você é um gênio, André!
Deu-me um selinho, colocou o porta-retratos de volta no aparador e só faltou sair saltitando pelo quarto.
– Vamos pedir uma ressonância! – ela falou, empolgada.
Eu não fazia ideia do que ela estava falando…
Alguns dias depois, Isabella chegou com um exame de imagem enorme na mão.
– Veja só! Exatamente o que você tinha falado que era!
Eu sei pouquíssimo de medicina; basicamente tudo o que aprendi foi a partir dos anos e anos de convivência que tenho com Isabella. Aos poucos, fui aprendendo, e, no mínimo, consigo ver uma imagem de um cérebro e saber mais ou menos o que esperar, mas não vou muito mais longe do que isso.
Assim, encarei o que me parecia ser um cérebro. Ele estava mantendo os padrões que eu geralmente via nas imagens que Isabella me mostrava, mas, em um ponto lá atrás, perto da nuca, em vez de estar pret, ele tinha algumas marcas brancas.
– Eu não consigo entender o que isso tem a ver com Sidney.
– Isso aqui é uma lesão em uma região próxima ao lobo temporal e ao occipital. Está pegando dos dois lados, então quer dizer que a origem deve vir de alguma artéria. Daí, fizemos uma angioressonância e… Voilà.
Eu olhei para as imagens e continuei sem entender nada.
– Você não está vendo?
– Estou, mas não estou entendendo.
– Tem alguma coisa aqui no polígono de Willis.
– Continuei sem entender.
– Você não se lembra do polígono? Do Anatomista, a senhora que teve a artéria cerebral anterior dissecada?
– Ah, é ela?
– Não, ela vem do polígono. O polígono está aqui. E aqui… Está o problema.
Eu assenti, mesmo sem entender. Tinha alguma coisa lá, atrapalhando o fluxo, mas eu não sabia exatamente o que era.
– Ele está em uma mesa de cirurgia neste exato momento.
– Como é?
– Mal posso esperar pelo resultado!
Eu não tinha lá muito tempo para ela me explicar, pois precisava sair para uma vigilância, então, tive de esperar até retornar, ao cair da noite, quando ela me mostrou a foto de um bichinho minúsculo, branco, preso dentro de um pote.
– O que é isso? Uma lêndea?
– Quase. Ophidascaris robertsi.
– É o nome científico da lêndea?
– É um verme. Eles são comuns na Austrália, onde infectam cangurus e cobras.
– Chegou um canguru morto no IML, é? – questionei, brincando.
– Não – ela riu. – Isso aqui estava na cabeça do senhor A.
– Como é? – perguntei, quase engasgando.
– Exatamente. E quem me fez pensar nisso foi você.
– Ah, não é possível.
– Sim – ela falou. – Veja, quando os Fogaça me contaram sobre o caso do senhor A, a primeira coisa que pensei foi que ele estava tendo um quadro de psicose. Mas ele não estava respondendo à medicação, o que era muito estranho, e as suas alucinações eram muito específicas. Quando conversei com ele, descobri que não eram alucinações, mas ilusões. Ele estava alterando a imagem que via, e isso era específico para rostos de pessoas. Não acontecia quando ele via figuras ou imagens em duas dimensões, mas só quando via a pessoa pessoalmente. E se restringia aos seus rostos. Isso é característico de uma doença raríssima, chamada prosopometamorfopsia.
– Fala a verdade, vocês gostam de inventar nomes difíceis, né?
– Basicamente quer dizer uma doença que modifica a forma como enxergamos os rostos das pessoas. Podem mudar de cor, forma ou textura, mas, no caso do senhor A, por algum motivo que não sabemos qual é, ela causava alterações que faziam as pessoas parecerem demônios. Ou os tais de Oni que o papiloscopista disse.
– Certo. Mas, e daí? O que tem a ver com o bicho?
– Essa doença acontece por lesões no cérebro. Ninguém tem certeza ainda de qual lesão específica, porque podem ser múltiplas. Eu estava tentando procurar na casa dele alguma coisa que me mostrasse o que estava acontecendo, como no caso daquele homem que teve um derrame e começou a inverter o sentido das pistas, lembra?
– Sim, lembro.
– Só que ele é meio novo para isso. E eu estava quebrando a cabeça na casa dele, quando você me mostrou essas fotos. Ele acampando. Ele, recentemente na Austrália. Olha, a gente sabe que, quando o pessoal faz esse turismo de aventura, está sujeito a umas infecções esquisitas. Ele provavelmente foi exposto, de alguma forma, a fezes de cobra, ou canguru, infectadas com este bicho. E, aí, eu descobri exatamente o que era. Os exames de imagem mostraram a obstrução lá no polígono, o que levou àquela lesão cerebral que você viu na imagem…
– Se você diz que eu vi…
– Não se menospreze, André! Você viu, sim. Com o procedimento cirúrgico, eles conseguiram tirar esse bicho vivo! – ela exclamou, exultante.
– Nossa! Quem diria! Pensando bem, não quero mais ir com você para os confins da Austrália.
Ela riu, com aquele sorriso tão lindo pelo qual me apaixonei.
– Mas, e agora? O que os Fogaça vão fazer?
– Ah, eles vão argumentar no tribunal que ele fez o que fez por causa da infecção. Com certeza alguma redução de pena eles vão conseguir. Como já tratamos a causa da doença, agora é questão de esperar pela recuperação total.
Fiquei pensativo, enquanto a observava.
– O que foi?
– Você falou de redução… Você acha que o senhor A era realmente inocente?
– Olha, eu não sei dizer. Houve uma época em que eu achava que tudo era mais preto e branco, mas agora sei que há muitos tons de cinza… Imagine que um dia você acorda e todos se transfomaram em demônios. Não é algo de deixar qualquer um louco?
– Mas, daí para agressão…
– Pois é – ela falou. – Como disse, difícil de julgar. Ainda bem que sou médica, não juíza. Agora… O que acha de irmos dar um passeio na Liberdade no fim de semana? Essa história de Oni me deu vontade de comprar uma máscara japonesa!
– Eu, ehm! – respondi.
– Tá bom, tá bom. Comer um lámen já basta.
– Isso eu aceito!
Conforme termino de escrever esta história, o debate em torno do caso do senhor A prossegue. Ele permaneceu preso durante o julgamento, mas foi transportado para um hospital penitenciário. Após alguns meses, ele recuperou totalmente a capacidade de enxergar as pessoas adequadamente. A luta dos advogados, contudo, continua. A equipe da família da esposa dele também é de ponta, e a briga ficou feia. Mas isso aí é motivo para outra história, que já não me compete…
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais