O caso do artista plástico famoso
Um dos casos mais formidáveis que Isabella resolveu foi de um artista plástico famoso, cujo nome não irei dizer aqui, em respeito à sua família e à confidencialidade que me pediram, mas tenho certeza de que o leitor mais arguto certamente o associará às notícias de jornais veiculadas naquela época.
Quando tudo ocorreu, já estávamos casados e Isabella não trabalhava mais no IML, mas apenas realizando pesquisas, dando aulas ou em consultorias. Em específico, ela era a minha principal consultora em minha humilde agência de investigação particular.
Bem, o que aconteceu? A família deste artista plástico veio me consultar, com a intenção de me contratar para a investigação de defesa da viúva. Pois é! Vieram em um dia à tarde, pouco mais de um mês depois do acontecimento e de toda a comoção da mídia, contando uma história um tanto estranha.
– Então, pelo que você está me dizendo, a empresa de seguro de vida está dizendo que o caso não foi um acidente, mas, sim, um assassinato?
– Exatamente.
Isabella estava junto nesta hora; eu costumava me sentar a uma cadeira, atrás da minha mesa, enquanto meus clientes ficavam de frente para mim. Minha esposa, por sua vez, sentava-se a uma poltrona, perpendicular à minha mesa, de forma que pudesse estudar todos os atos e expressões, tanto meus, quanto dos clientes.
– Conte-me exatamente o que aconteceu, senhora M.
– Nós estávamos descendo para a praia, para o feriado, naquela parte do rodoanel onde ficam as represas, sabe? Eu estava dirigindo, me atrapalhei com um caminhão me ultrapassando pela direita e acabei desviando o carro e acertando uma daquelas muretas de proteção. Acho que o resto vocês sabem.
– Não quero ter nenhuma impressão da mídia – eu falei. – Por favor, prossiga.
– Bom, eu mesma não tenho certeza, pois não me lembro do acidente em si. Acordei algumas horas depois no hospital, sem me lembrar de nada. Mas, pelo que me falaram, o carro subiu, rodou e depois caiu na represa logo abaixo. A polícia, os bombeiros, ou seja lá quem for, conseguiram salvar os meus dois filhos e eu. Meu marido, porém, não resistiu e, pelo que me contaram, morreu afogado.
Eu sempre mantinha uma caixa de lenços sobre a mesa; lançando um olhar para Isabella, passei a caixa de lenços para a senhora M, cuja mãe mantinha um braço sobre seus ombros, em um gesto de conforto para uma moça ainda enlutada. Apesar de já fazer um tempo da morte, ela ainda usava roupas pretas e pouca maquiagem; seus olhos ainda permaneciam inchados, como se chorasse constantemente, e olheiras profundas marcavam seus olhos. As roupas mais largas indicavam que estava, de fato, sofrendo nestes últimos dias, se não pela morte do marido, ao menos pelo estresse causado pelos problemas com a empresa de seguro.
– Mas, o que levou a sua seguradora a pensar que isso foi premeditado? Eu quero dizer, foi algo extremamente perigoso, não é possível que pense que houve alguma vantagem para a senhora!
– Meu marido tinha acabado de aumentar a sua apólice. Você vê, ele era a nossa principal fonte de renda e sempre se preocupou com isso. Já temos esta apólice há anos, e, nos últimos meses, ele vinha se sentindo meio estranho. Estava preocupado com isso e, assim, aumentou o valor do nosso seguro de vida de forma considerável.
– Então, a teoria da seguradora é de que a senhora propositalmente desviou o carro?
– Sim.
– Mas não há como provar que isso não foi um acidente!
A senhora M se remexeu no assento.
– Ou há mais algum acontecimento que a senhora não está nos contando?
Ela assou o nariz e respirou fundo, preparando-se para contar.
– Essa viagem… Era uma viagem de reconciliação. Reconciliação! Quisera eu nunca ter tentado isso!
– Vocês estavam brigados?
Ela assentiu.
– Meu marido… Nos últimos meses, estava muito estranho. Estava meio paranoico, sabe? Cismado com absolutamente tudo que eu fazia. Para contribuir, estava passando com médicos por causa do seu mal-estar, e acho que isso tudo só piorava ainda mais as coisas. Brigamos algumas vezes… Isso sempre saía nos jornais, quando acontecia. Enfim… Eles acreditam que eu tinha motivo. Bateram bastante na tecla que não era meu costume dirigir.
– E não era, mesmo?
– Realmente, não, sempre meu marido que dirigia, mas ele não estava se sentindo bem naquele dia e eu estava fazendo de tudo para agradá-lo.
Olhei de canto de olho para Isabella; ela simplesmente assentiu com a cabeça.
– Precisamos de mais informações – eu falei. – Tudo o que você tiver sobre os acontecimentos. Uma cópia do relatório do IML com as informações… Tudo o que for possível.
– Vocês vão aceitar meu caso? – ela perguntou, esperançosa.
– Sim, senhora M.
– E, o que o senhor acha, senhor Dias? Acredita que podemos ganhar a causa?
– Vamos ver conforme a senhora me trouxer as informações.
Depois disso, discutimos algumas coisas sobre valores e, por fim, despedimo-nos; quando estavam fora da sala, respirei fundo e olhei para Isabella.
– O que acha?
– Um caso tão simples, que acho que podemos até mesmo sair – ela falou.
– O quê?
– Tem uma exposição do Degas no MASP que estou pensando em ir já faz um tempo. O que acha?
– Você está falando sério?
– Claro que sim. Vamos, pegue seu casaco, ainda dá tempo de entrar.
– Mas, o que você acha? Ela é inocente ou culpada?
– Mais importante do que eu acho é: o que você acha, depois de todos esses anos de investigação? Não aprendeu nada com meus métodos?
Enquanto saíamos de casa, eu fiquei pensativo sobre o que Isabella tinha falado. Lógico, era surpreendente como ela sempre conseguia descobrir a resposta dos casos apenas de bater o olho, mas eu ainda estava muito, muito longe desta inacreditável capacidade dedutiva.
– O luto me pareceu real – comentei, depois de um tempo. – O olho inchado… As olheiras, a perda de peso… Me parece que ela realmente está sofrendo com a morte do marido.
– Sim, de fato – ela respondeu. – Me pareceu real, também.
– O acidente foi um tanto mirabolante para que uma pessoa conseguisse fazer de propósito. Eu me lembro de quando saiu nos jornais… O carro realmente voou por cima do muro de proteção. Com as duas crianças no banco de trás… Não me parece uma boa ideia para quem quer se livrar do marido.
– Não, realmente não.
– A sorte deles é que tinha um barco passando por lá exatamente naquele momento e conseguiu salvá-los. Bom, quase todos.
Ela permanecia em silêncio.
– O que acha que a autópsia vai nos trazer?
– Ah, vai confirmar minha hipótese principal.
– Que é…?
– André, qual é a graça da coisa se eu te contar tudo de antemão?
– Você sabe que eu poderia otimizar e muito meus ganhos se você me ajudasse dando as respostas logo de cara – comentei.
– Você cobra por hora. Se tem uma coisa que eu faço, na verdade, é diminuir os seus ganhos.
Ela estava certa.
Chegamos à exposição a tempo de conseguirmos entrar, mas, para minha felicidade, sem tempo demais; não escondo de ninguém, eu não entendo absolutamente nada de arte e fiquei me perguntando por que raios aquele artista era tão fissurado em bailarinas. Pensei até mesmo em comentar com a Isabella se ela não achava que ele só estava se aproveitando, em alguns dos casos, para ficar observando mulheres nuas enquanto as pintava, mas fiquei com medo de isso apenas refletir minha ignorância e desconhecimento de arte, então fiquei quieto. Certamente havia uma explicação plausível para os artistas curtirem tanto pintar pessoas nuas, que estava bem longe da minha compreensão.
Depois de ver infinitas bailarinas nas mais diversas posições, finalmente pediram que nos retirássemos devido ao horário, e a Isabella quis tomar um café antes de passar na livraria Martins Fontes.
– E aí, o que achou da exposição?
– Ahm… – comecei, meio sem jeito. Não importava há quantos anos estávamos juntos, eu sempre me enrolava para mentir sobre as coisas de que não gostava. – Muitas bailarinas, não?
Ela riu, enquanto tomava café.
– Você odeia isso, não é?
Eu respirei fundo e peguei na sua mão sobre a mesa.
– Eu realmente odeio as exposições. Mas eu amo o fato de como você fica encantada com elas. Então, no fim, vale à pena.
Ela sorriu, com aquele sorriso esplendoroso que sempre aquecia meu coração. Ah, se pudesse guardá-lo em um pote para mim pela eternidade!
– Mas, sabe que não vim só porque queria ver.
– Não?
– Não, eu queria ajudá-lo na sua investigação.
– Como é? O que isso tem a ver com a minha investigação?
– O novo caso que chegou hoje, da senhora M. Tem tudo a ver.
– Ela é bailarina?
Ela riu.
– Ah, André, eu sei que você odeia arte, mas talvez fosse bom aprender um pouquinho, pelo bem dos seus clientes!
Ela digitou o nome do artista plástico que morrera no celular e me mostrou as suas diversas obras de arte.
– Como Degas, ele pintava e fazia esculturas. Em especial, ele trabalhava com bronze.
– Ah, daí a semelhança!
– Exatamente.
– Mas, como isso pode direcionar a minha investigação, Isa?
– É uma pista – ela respondeu, misteriosa como sempre.
Fomos do café à livraria, por onde andamos de estante a estante, conforme ela procurava novos romances policiais. Não prestei muita atenção, porém; estava pensando e repensando como aquilo tudo poderia ter alguma relação.
O artista plástico trabalhava com bronze, como Degas. Tá, e daí? Qual a relação entre ambos? Será que ele tinha sido aluno do Degas? Será que sua esposa tinha um caso com Degas? Será que ele tinha um caso com Degas? Mas, espere aí, o Degas tinha morrido em 1917, as coisas não estavam batendo. Seria ele um falsificador de obras do Degas? Como a Isabella poderia ter inferido isso do pouco que conversara com a senhora M? Não fazia qualquer sentido!
Olhei para ela, enquanto ela se entretinha lendo as sinopses dos livros e decidindo se levaria ou não. Deveria ser bom, ter uma cabeça daquelas. Resolver mistérios insolúveis em um piscar de olhos.
Suspirei e dei de ombros. Para nós, reles mortais, restava esperar novas informações do caso.
Na semana seguinte, a senhora M conseguiu me trazer um relatório bastante completo da autópsia realizada e também laudos de seu psiquiatra de que ele estava algo paranoico e que estavam tentando tratá-lo com medicamentos.
– Como o senhor pode ver, detetive, o laudo foi bem conclusivo quanto ao afogamento.
Desta vez, a senhora M estava com um vestido azul escuro, brincos, o cabelo mais arrumado e com um pouco de maquiagem, tentando parecer menos cansada. Entretanto, ainda era possível ver como estava afetada por tudo o que estava ocorrendo.
Li os laudos com cuidado e os passei para Isabella, que passou um bom tempo observando as fotos do registro e alguns pequenos detalhes.
– E então?
– Sim, me parece bastante conclusivo de que foi um acidente – comentou Isabella. – Acho que podemos emitir um parecer ou algo do tipo, para ajudar seu advogado, não?
A senhora M exultou de felicidade.
– Muito obrigada! – disse.
– Vamos redigir o relatório ao longo da semana – eu falei, surpreso com a conclusão tão peremptória de Isabella. – E eu lhe envio. Se precisar de mais alguma coisa depois disso, estaremos à disposição.
– Senhora M – falou ela. – Eu queria lhe pedir uma coisa.
– Qualquer coisa, doutora! O que vocês estão fazendo por mim não tem preço.
– Tem alguma escultura recente de seu marido que esteja à venda? Eu gosto muito de esculturas de bronze, gostaria de comprar uma para mim.
Eu a encarei, surpreso.
– Não se preocupe, doutora. Vou mandar entregar uma aqui amanhã mesmo! Será um presente!
– É muita gentileza sua – ela respondeu.
Quando foram embora, eu ergui as mãos para ela, questionando.
– Ainda nada? – ela perguntou.
– Mas tinha mais algo para descobrir? – questionei. – O relatório foi bem claro, os pulmões cheios de água, a anemia pela destruição das hemácias da absorção do líquido… Sem nenhum outro traumatismo que pudesse incriminar a esposa…
– E o que achou do laudo do psiquiatra?
– Ah, você conhece bem esses artistas – falei, lembrando-me especialmente do caso do assassino em série que havíamos prendido anos antes. – Eles são todos meio malucos. Não duvido que fiquem paranoicos.
– Ser um pouco paranoico com a esposa é uma coisa; precisar de medicamento para isso é outra – ela comentou.
– O que quer dizer?
Ela deu de ombros novamente.
– Vou deixar você pensar a respeito.
Eu amo a Isabella, mas devo dizer que esses pequenos momentos me irritam. No começo, irritavam mais; agora, acho que me acostumei com o fato e não fico mais me remoendo de curiosidade. Se ela mesma concordou em fazer o laudo em vez de sair acusando a moça por assassinato, é porque, de fato, a mulher é inocente. Quanto aos outros detalhes? Bem, se eu não descobrir, uma hora ela vai me contar.
No dia seguinte, como prometido, uma bela escultura de um cavalo foi entregue para nós, toda feita em bronze, muito brilhante e talvez grande demais para acomodarmos no nosso escritório. Era incrivelmente bem-feita, com todos os detalhes do cavalo bem representados; ele estava empinando e, conforme você se movia, o jogo de luz fazia parece que a crina se movia. Sim, ele era de fato um excelente artista! Era impressionante como conseguira fazer algo com tanta perfeição!
E, talvez, a semelhança com Degas fosse porque ambos gostavam de cavalos, além do bronze. Será que era isso que ela queria que eu percebesse?
– Vamos deixar na sala – ela disse.
Acomodei a estátua em um canto da sala, pensando se havia alguma superfície que eu poderia liberar, quando Isabella retornou com um alicate e arrancou um pequeno pedaço da cauda do cavalo.
– Ei, Isa, por que…?
– Vou mandar isso aqui para análise.
– Mas, por quê? Você não pode mandar a estátua inteira para análise?
– Este pequeno pedaço faltando vai sempre nos lembrar das peculiaridades deste caso e da mente humana.
Do que raios ela estava falando?
– Sério, Isa, algum dia eu vou ficar maluco com você falando desse jeito enigmático!
– Mas está claro como cristal. Você ainda não entendeu?
– Absolutamente, não.
– Vamos esperar sair a análise, então. Tenho um amigo que vai fazer isso aqui rapidinho.
Trabalhamos no relatório da senhora M ao longo daquela semana, e isso era, de longe, o que era mais trabalhoso e mais chato de todo o meu trabalho como detetive particular. Por fim, quando estava quase concluído, Isabella me encaminhou um e-mail com a avaliação daquele pequeno pedaço da escultura. Havia diversas substâncias listadas naquela liga, e eu fiquei sem saber como aquilo poderia, de alguma forma, mudar nosso veredicto a respeito da inocência da senhora M.
– Sério, Isabella, cansei deste jogo. Me explique o que é que está acontecendo!
– Eu não vou explicar ainda. Você já concluiu o relatório?
– Falta basicamente rever e assinar.
– Está bem, vamos rever e depois entregar pessoalmente para a senhora M. Acho que é o mínimo que podemos fazer como agradecimento pela obra de arte que nos enviou.
Eu bufei, sem muita escolha, e deixei que ela se sentasse ao computador para revisar o relatório; ela lia duas vezes mais rápido que eu e, quando dei por mim, estava tudo impresso, assinado e grampeado dentro de uma pasta.
– Muito bem, hora de ir.
A senhora M morava em uma bela casa no Pacaembu, que deveria ser, provavelmente, fruto da família abastada do nosso finado artista plástico. Com a sua morte, agora a herança passaria metade para ela, metade para os filhos. E, com a nossa ajuda, ela certamente teria um futuro confortável com a fortuna que receberia do seguro, sem mencionar os frutos da venda das obras de arte de seu marido. Afinal, como todo sabem, elas sempre valem mais quando o artista está morto.
Já era de noite quando chegamos e tocamos a campainha; uma das crianças, um menino de uns dez anos, falou conosco pelo interfone no portão e depois chamou a sua mãe, que pareceu muito surpresa.
– Viemos entregar o relatório – eu falei.
– Senhor Dias, não precisava ter se dado ao trabalho…
– Não foi trabalho nenhum – disse Isabella. – Estávamos aqui do lado. Não vamos nos alongar, vamos ao cinema às oito.
Eu a encarei; que cinema?
Ela destrancou o portão automático e nós subimos a pequena rampa até a sua porta.
– Entrem, entrem – ela disse; estava com roupas normais, de se ficar em casa, mas o cabelo relativamente arrumado. Parecia bem, sem olheiras e sem aquele aspecto de cansada. – Perdoem a bagunça, não está fácil.
– Imagine – falei, conforme entramos.
A casa estava repleta das esculturas do seu marido, que disputavam espaço com cristais medicinais e vários apanhadores de sonhos, dentre outras decorações alternativas. Era quase como se hippies tivessem decidido ocupar a exposição de Degas.
– Estou terminando de preparar o jantar, se quiserem ficar…
– Não se preocupe – Isabella respondeu. – Vamos jantar depois do cinema.
– Um encontro a dois – disse ela. – Que saudade dessa época! Sabe, depois de ter filhos, as coisas se complicam um pouco…
Entreguei o relatório para ela, que repassou ao filho mais velho.
– Deixe lá no ateliê do papai – ela falou.
O menino desapareceu escada acima.
Conversamos algumas amenidades e discutimos sobre as obras de arte de seu finado marido. Fomos bastante positivos em relação ao resultado do processo que teria pela frente. Algo apitou na cozinha.
– Ah, é o forno! Preciso tirar, antes que queime!
– Não tem problema – falei –, nós já vamos, também.
Mas Isabella puxou a bolsa e pareceu procurar algo.
– Ah, querido, acho que coloquei as entradas do cinema na pasta do relatório – ela falou e emendou: – Não se preocupe, senhora M, eu mesma vou lá buscar. Tire o assado do forno, antes que passe do ponto!
Com isso, seguiu escada acima, enquanto eu ajudei a senhora M a retirar a comida de lá e colocar na mesa. Pouco depois, Isabella reapareceu.
– Consegui achar, ufa! Deveria ter deixado só a cópia no e-mail, sabe, mas eu sempre prefiro imprimir as coisas…
– Eu também – a senhora M concordou. – Nada como papel.
Despedimo-nos, conforme as crianças caminhavam lentamente para a mesa, sem desgrudar os olhos dos celulares, e voltamos para o carro.
– Que raios de cinema, Isa? – perguntei.
Ela puxou algo da bolsa; era um frasco de algum remédio homeopático.
– Homeopatia? Mas você não diz que isso não funciona?
– Depende da sua intenção – disse ela, misteriosamente. – Vamos mandar isso aqui para análise, também.
– Isabella! – eu falei, enquanto manobrava o carro. – Você sabe muito bem que não adianta fazer esse tipo de coisa! Seja lá o que for que esteja pensando, não podemos manusear evidências, eu não faço mais parte da força policial e…
– Relaxe, André. Isso aqui é apenas para provar a minha teoria. A senhora M é, de fato, inocente da morte do seu marido, mas não da tentativa de assassinato.
– Então, ela bateu o carro de propósito?
Ela pegou o frasco e pingou uma pequena gota em sua língua; fazendo uma careta, ela balançou a cabeça.
– Não, ou ela seria culpada de assassinato. O acidente veio em boa hora. O seu plano era outro.
– Isabella, pelo amor de Deus, pare de tanto mistério e me conte logo!
– Tudo bem, vai. Eu já sei o que vai vir na análise desse frasco, mesmo. Vamos jantar, e eu te conto.
Eu esperava ansiosamente pela resposta, mas ela fez questão de só começar a falar depois que pedimos os pratos e o garçom trouxe o couvert.
– Você não reparou nada de diferente na senhora M, no momento em que chegou?
– Eu já comentei com o você o que achei dela.
Isabella deu um sorriso.
– Bom, vamos começar do que mais me chamou a atenção: as unhas feitas.
– O quê? As unhas, Isabella!
– Sim. Que tipo de viúva faria as unhas, tão pouco tempo depois da morte de seu marido? Eu vou lhe dizer, eu mesma passei meses sem fazer as minhas. Mas, de qualquer forma, podemos sempre estar lidando com uma pessoa mais vaidosa do que eu, o que explicaria a sua maquiagem.
– Ela estava de maquiagem?
– Sim, e estava muito bem-feita, por sinal, acentuando as olheiras e, principalmente, encobrindo um pequeno hematoma no seu pescoço, próximo à orelha esquerda.
– Hematoma?
– O que os jovens gostam de chamar de chupão.
– Mas, como, se o seu marido…
Ela apenas ergueu as sobrancelhas.
– Sério?
– Pois é. Bem, não bastasse isso, eu não sei se você reparou, mas uma hora ela pediu um copo de água, disse que estava muito nervosa, e pingou um remédio para se acalmar nela.
– Sim, eu me lembro disso.
– Era um remédio homeopático.
– Ou seja, não servia para nada, como você mesma diz.
– No caso, só serviu para me indicar o seu cúmplice na tentativa de assassinato do seu marido. O nome do responsável pela formulação estava escrito na embalagem e, tenho certeza, é o mesmo deste aqui – ela falou, mostrando-me o frasco.
– Sério, Isa, não estou acompanhando. Você mesma me disse que o seu luto pareceu real!
– Me parecer real não quer dizer que é real. Há uma distância entre o que ocorre de fato no mundo e a minha interpretação dele, como já diria Platão.
Continua olhando para ela com a mesma expressão que usava para meus professores de física, no colegial: incompreensão pura.
– Bom, deixe eu falar em ordem dos acontecimentos. A roupa dela, que estava mais frouxa… Na verdade, era proposital. Ela queria parecer mais cansada e sofrida. Aquele vestido é de uma coleção dos anos 2000. Ela provavelmente comprou em um brechó para nos compadecer do seu estado.
– Resumindo, ela estava encenando. Mas, a gente já sabe que o acidente foi, de fato, um acidente…
– Sim, André, mas você não está compreendendo o principal. O relatório da autópsia não chamou a sua atenção?
– Sinceramente…
– Você notou as pontas dos dedos dele? Com pequenas lesões?
– Não posso dizer que notei – falei. – Mas ele era um artista plástico, trabalhava com esculturas, não é natural machucar os dedos? Aleijadinho não era todo machucado?
– Você quase chegou no cerne da questão. Aleijadinho sofria de hanseníase, uma doença que, em estado grave, danifica tanto seus nervos que faz você lesar partes do corpo. É quase o mesmo com o nosso artista; ele estava lentamente se intoxicando com uma substância que lesava seus nervos periféricos, fazendo com que perdesse a sensibilidade da ponta dos dedos. Além disso, era algo que fazia com que tivesse alucinações, ou, ao menos, delírios. Por isso que sua esposa falou que ele estava mais paranoico. O próprio psiquiatra relatou isso.
– Mas ele falou que estava sendo intoxicado?
– Não, infelizmente ele era também um terapeuta psicanalítico e sugeriu que isso tudo se devia a um conflito não resolvido do seu complexo de Édipo… Então, a coisa toda passou reto. E, bem, nós temos as hemácias destruídas.
– Mas isso é uma coisa que ocorre nos afogamentos, você mesma me ensinou isso!
– Excelente, André, isso acontece, mesmo. Mas, no caso, um dos produtos que o intoxicaram pode causar esta hemólise também.
– Tá bom, Isa, entendi que ele estava sendo intoxicado por alguma coisa, mas, como você pode relacionar isso à esposa? – eu pensei um pouco; em algum momento, eu já tinha visto em algum lugar que metais pesados poderiam fazer mal para a pessoa. Uma luz se fez em minha mente. – Quer dizer, ele trabalhava com bronze… Ele se intoxicou com a fumaça? Ao fundir o bronze?
– Era este o plano da senhora M. Envenenar o seu marido lentamente, para que todos pensassem que se tratava da fumaça do bronze. Só que não. Lembra aquele pedaço que mandei para avaliação? Não tinha nada de excepcional. Sem concentrações de arsênico acima do normal, nem nada do tipo.
– Por que arsênico, Isa?
– Arsênico era muito usado antigamente, para tornar o bronze mais resistente. Mas, atualmente, ele não é mais usado e as ligas são seguras, contanto que você siga os protocolos de segurança quando estiver trabalhando com o forno.
– Então, a senhora M estava envenenando o seu marido de outra forma, mas querendo que todos pensassem que ele estava sendo intoxicado pelas suas obras de arte?
– Exatamente. E a resposta está aqui.
Eu olhei para o pequeno frasco.
– Um remédio homeopático para angina. No próprio relatório do psiquiatra, ele relata que o nosso artista estava tomando medicamentos homeopáticos para tratamento de diversos sintomas, dentre eles, angina. Por que tinha angina? Acredito que era mais psicológica, mas não posso descartar que ele, de fato, tivesse alguma doença cardíaca, dado o seu histórico familiar. Seu pai morreu de infarto na casa dos quarenta anos, você pode checar isso na internet.
– E nesse remédio tem… Arsênico?
– Exatamente. Usado desde antigamente em uma diluição ridiculamente ínfima, tão ínfima, que não funciona. No entanto, se você fizer a concentração errada…
– É um veneno!
– Sim. Resumindo: tudo um plano muito bem arquitetado entre a senhora M e o seu amante, o homeopata. Acredito que seu objetivo não era o seguro de vida, mas, simplesmente, livrar-se dele e ficar com o amante. Lembra que era uma viagem de reconciliação? Eles viviam brigando, isso estava nos jornais o tempo todo. E, de certa forma, herdar as coisas é muito melhor do que dividir no divórcio.
Eu parei por uns instantes e a encarei.
– Então, quando você disse, logo no começo de tudo, que era um caso simples…
– Ah, sim, já tinha resolvido tudo antes mesmo de ela sair da sala.
– E a exposição?
– Eu realmente estava a fim de sair e ver o Degas era uma boa desculpa. E achei que você talvez conectasse uma coisa à outra.
– Meu cérebro não funciona como o seu…
Ela sorriu e me deu um selinho.
– Mas, você não precisava ter tirado aquele pedaço da escultura, então.
– Na verdade, não. Mas, se a liga viesse alterada, iria significar que eu estava errada, e isso seria mais fácil do que conseguir entrar na casa dela e achar o frasco.
– Como você sabia que ela ainda teria os frascos em casa? Se ela realmente estava planejando isso, não deveria dar um sumiço…
– Ah, não, ela realmente deu um sumiço em tudo. Eu só achei esse, porque o nosso artista era bem cuidadoso e tinha uma reserva. Você viu como ele era detalhista e perfeccionista? Como todo bom artista, ele deveria ficar horas e horas perdido no seu trabalho, e a única forma de não se esquecer de tomar o medicamento era deixar vários frascos em vários lugares.
– Mas, e agora? O que fazemos com a senhora M? – Como disse, o acidente foi, de fato, um acidente. A tentativa de assassinato foi, de fato, uma tentativa, que não chegou a ser concluída. Agora, o que podemos fazer com isso? Não sei. Você é quem era policial, eu sou apenas uma patologista. Ah, chegou a comida! Que ótimo. Quer um pouco de vinho? Ah, melhor não, você está dirigindo, deixe para mim.
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais