O caso do carnaval
Isabella detestava o carnaval tanto quanto eu. Simplesmente, não fazia o menor sentido na nossa cabeça pessoas desfilando quase seminuas, isso quando não estavam literalmente nuas, bêbados por todos os cantos, agarrando-se por aí sem o menor pudor, como se o mundo fosse literalmente acabar no dia seguinte.
Na época em que eu trabalhava para a polícia, isso era ainda pior, pois era um feriado sempre cheio de trabalho, e, na escala, todos brigavam para não cobrir por diversos motivos. O principal, é claro, é que eles queriam estar lá no meio dos foliões.
Além disso, São Paulo fica intransitável nesta época (como se fosse lá muito transitável em outras épocas), assim como as cidades litorâneas, e nós decidimos, já há muito tempo, que viajaríamos para um lugar tranquilo com dois casais de amigos que igualmente não gostavam de carnaval.
Estávamos, aliás, conversando no restaurante, Isabella, Carla, nossa amiga, e eu, sobre assuntos aleatórios. Pouco depois, Simas e Nádia, outro casal, juntaram-se a nós e, já estávamos a pedir uma nova rodada de café, quando Edu, marido de Carla, chegou, todo esbaforido.
– Não consigo achar a minha aliança! – disse ele.
– Mas, como assim, Edu?
– Eu tirei mais cedo para jogar tênis e não encontrei – ele disse, simplesmente. – Estou preocupado que algum faxineiro tenha roubado. Me empresta a chave do quarto para procurar?
Isabella, baixando a xícara de café, encarou-o e disse, na lata:
– Já tentou olhar no bolso da sua cueca?
O silêncio caiu na mesa.
– Bolso na cueca? – questionei.
– Sim, provavelmente do lado direito.
Eduardo levou a mão lentamente à bermuda larga e, descendo cuidadosamente, encontrou um bolso. Dentro do bolso… A aliança.
– Mas… Como você sabia? – perguntou ele.
– É, Isa… Como você sabia que tinha um bolso na cueca do Edu? – perguntei eu, com um sorriso, curiosíssimo.
É claro, nunca passaria pela minha cabeça que minha esposa teria visto a cueca dele em alguma situação inóspita. Certamente havia alguma explicação totalmente plausível.
– A bermuda que ele está usando está muito larga, dá para ver a borda superior da cueca, e você tem uma exatamente igual, André. Sempre achei que fosse uma inutilidade, mas, agora, parece-me que ela é bastante útil para casos de infidelidade – ela falou, tomando um gole de café, e na sequência olhou para mim: – Mas quero crer que você não esteja usando a sua para isso.
Todos ficaram quietos na mesa.
– Bem, nessa situação, você talvez não estivesse usando nada, mas enfim.
– O que você quer dizer com isso, Isabella? – questionou Edu, franzindo a testa.
Era uma frase comum; não era raro as pessoas não entenderem o que ela queria dizer.
– Exatamente o que eu disse. Que as pessoas usam este bolso para auxiliar nos casos de infidelidade, como você.
– Mas o quê?! – interroclamou Carla.
– Como se atreve! – exclamou Edu.
Até Nádia se exaltou, enquanto Simas cofiou o bigode.
Eu suspirei; era sempre assim. A gente não podia ter um café simples com amigos, sem a Isabella descobrir coisas que não deveria descobrir e, incapaz de ficar em silêncio, sair anunciando a todos.
– Bem, vamos recapitular a manhã. André e eu acordamos e saímos para dar uma volta pelo hotel. Encontramos com Carla, que disse que o Edu estava jogando tênis. Simas passou correndo por nós, fazendo seu treino matinal, e nós o vimos ainda algumas vezes, antes de nos sentarmos aqui à mesa e Simas, como de costume, dar a sua derradeira volta que completaria seus oito quilômetros a exatamente doze quilômetros por hora.
– Como sabe que…?
– Você adora compartilhar no facebook seus dados de corrida – disse Isabella.
– Tudo bem, mas o que isso tem a ver com… Você sabe – disse Edu.
– Bem, acontece que o Edu não estava realmente jogando tênis. Primeiro, está seco demais. Segundo, essa bermuda está larga demais para quem estava jogando tênis. Aliás, tenho a impressão de que essa bermuda nem é sua…
Simas se inclinou, olhando melhor para ele, que meio que tentou se esconder, mas, inevitavelmente…
– É minha! – exclamou. – Mas como?
– Exatamente. Eis aqui o que aconteceu: Edu saiu para supostamente jogar tênis e Carla saiu para se encontrar comigo. Simas saiu para sua corrida matinal, e Nádia ficou no quarto. Quando Simas já estava bem avançado na sua corrida, e Carla e nós já estávamos longe o suficiente, Edu saiu da quadra de tênis e correu de volta para os quartos, entrando no quarto de ninguém mais, ninguém menos do que Nádia.
– Ei, isso é absurdo! – ela exclamou.
Simas soltou sua mão.
– Continue, Isabella, eu quero ouvir – ele disse.
– Simas voltou ao quarto um pouco antes do que deveria, porque, como aqui é mais plano, conseguiu fazer a um ritmo um pouco mais alto, como você pode conferir na sua postagem do Facebook. Edu foi pego de surpresa e teve de pular a janela do quarto, o que é tranquilo, porque estamos no térreo. Nádia fingiu que estava de preguiça na cama. Simas foi tomar banho, e esta foi a oportunidade de Nádia jogar de volta as roupas de Edu. Ela encontra a camiseta, os tênis e as meias, encontra a cueca e a aliança perigosamente jogada no chão, que ela coloca no bolso da cueca, antes de jogar para ele, lá embaixo, mas não encontra a bermuda em lugar nenhum. Onde estará? No banheiro, debaixo da cama, enrolada na coberta? Sem tempo para isso, ela pega uma bermuda qualquer da mala de Simas e joga pela janela.
Todos a encaravam, curiosos, Edu boquiaberto e Nádia vermelha como um pimentão.
– Edu se veste com pressa nos arbustos e corre descalço por trás do hotel, onde fez um pouco de lama, depois da chuva de ontem, antes de colocar os seus sapatos, pois queria garantir que estava longe do campo de visão de Simas.
– Como você pode dizer uma coisa dessas? – questionou ele.
– Bem, primeiro, temos as marcas de lama secas no seu tornozelo, enquanto seus tênis estão limpos. Portanto, você correu descalço. Seus antebraços e pernas têm arranhões dos espinhos dos arbustos, onde você se meteu para se esconder. E, no pescoço, é discreto, mas tem um pequeno hematoma de um chupão do lado direito, bem ali.
Ele levou a mão imediatamente para o local machucado do pescoço, enquanto todos encaravam com curiosidade.
– Depois disso, Edu, sem a sua bermuda, onde estavam seu celular e seu cartão de entrada do quarto, volta para o seu quarto, na expectativa de se arrumar minimamente e colocar uma roupa própria, mas não consegue. Ele espera um pouco para ver se ela volta, anda um pouco sem saber o que fazer. O que sobra? Encontrar Carla, pedir o cartão emprestado, já lançando a ideia de que a aliança foi roubada e, provavelmente, emendar o celular na história. Mas, acho que tudo pode ser resolvido com uma checada rápida no quarto de Nádia e Simas…
– Eu vou – exclamou Simas.
– Isso é absurdo! – respondeu a esposa dele. – Você não pode estar acreditando em uma história dessas! Isa, isso com certeza é uma piada, não é?
– Bem que eu gostaria.
Simas levantou-se e foi marchando até o quarto; todos fomos atrás, em uma procissão meio fúnebre.
Com o cartão de acesso, ele entrou, e nós nos acotovelamos para ver; Isabella, certa do que encontraria, ficou do lado de fora.
O quarto estava todo arrumado, porque a faxineira havia passado logo que o quarto ficou vago e, dobrada sobre a cama, estava uma bermuda, que provavelmente ela encontrara embolada no meio dos cobertores.
Simas avançou, pegou a bermuda e buscou seus bolsos: um cartão de acesso e um celular, com a foto de, é claro… Carla e Edu.
A comoção foi geral; os dois casais começaram a brigar naquele mesmo instante, e eu saí de fininho, puxando Isabella comigo de volta para o restaurante.
– Você sabe que, se continuar assim, a gente vai ficar sem amigo nenhum – eu falei.
Ela pegou um jornal, indiferente.
– A culpa não é minha se as pessoas não sabem fazer as coisas direito.
Ela baixou o jornal e me encarou.
– E é bom você se controlar. Depois do Marcel, eu não deixo passar mais nada.
Eu tomei mais um gole de café, balançando a minha cabeça. Amo Isabella do fundo do meu coração, desde o dia em que a conheci, e nunca passaria pela minha cabeça fazer algo assim. Mas eu não tenho dúvidas, é claro, de que ela não demoraria nem dois segundos para descobrir.
Acho que ela descobriria até mesmo antes de eu pensar em fazê-lo.
De qualquer forma, este é mais um dos motivos pelos quais eu odeio carnaval. Ano que vem, talvez seja melhor fazer uma coisa só nós dois…
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais
Josué Luz
18 de fevereiro de 2024 @ 12:46
Muito divertido!