O caso do magnata assassinado
Trabalho como investigador da polícia de São Paulo há mais ou menos quinze anos e neste tempo tive oportunidade de ver e ouvir diversas coisas. Contudo, nada me foi tão marcante como os anos que passei ao lado de uma mulher. Seu nome: Isabella Angier, uma das pessoas mais distintas que eu já vi. Seus cabelos são lisos, negros e longos, chegando quase até a metade das suas costas, e seus olhos são amendoados, cor de mel e o que mais chamam a atenção em seu rosto quase angelical. Eu sei que ela tem já mais de trinta anos, mas não sei ao certo quanto; ela sempre parece mais jovem, exceto quando fica toda empertigada em seu ar sério e, para aqueles que não conhecem, talvez até mesmo arrogante. Foi este ar que, devo dizer, primeiro me atraiu nela.
Ela trabalhava como patologista do IML, até que, um dia, ela simplesmente largou tudo. Era a melhor patologista de quem qualquer um já ouviu falar e tinha uma facilidade tão impressionante para resolver tudo, que às vezes nem sequer precisava encostar no paciente para saber o que ia encontrar dentro do seu corpo. Ela era tão boa, que eu muitas vezes a levava comigo quando a cena do crime era muito estranha, ou ficava para assistir às suas autópsias, nas quais ela sempre me explicava diversas coisas. Mal posso dizer o quanto aprendi com ela.
Foi há três anos que ela desistiu do seu trabalho. Alguns dizem que ela ficou louca; outros, que foi por causa da morte de seu marido, talvez o único caso que até hoje ela nunca tenha descoberto. Não sei. Eu gosto de pensar que foi só por causa do estresse da cidade grande, já que ela veio do interior, e, acima de tudo, que foi uma coisa temporária. Gastei os últimos anos tentando convencê-la a voltar, mas, já há algum tempo, desisti. Às vezes parece-me impossível.
No entanto, um dia, a oportunidade perfeita me surgiu, por mais sádico que isto pareça. Fui chamado para investigar uma ocorrência no Morumbi, onde um tal de senhor João Angier havia sido encontrado morto. Estranhei o nome – afinal, era o mesmo sobrenome e extremamente incomum –, e resolvi checar; era o tio paterno dela. Era uma oportunidade única. Imediatamente mandei que todos deixassem a cena do crime exatamente como estava e liguei do celular de um colega para o telefone dela, que sabia de cor, de tanto que já havia discado.
Como ela me contou depois, ela estava sentada em sua poltrona, tomando o seu cálice diário de vinho do Porto e desfrutando de um cd novo do Haydn, quando teve de atender o celular. E só atendeu porque era um número desconhecido, porque, de outro modo, teria desligado imediatamente.
– Alô?
– Isabella?
– Quem fala?
– É o André. André Dias. Lembra de mim?
Esperava que naqueles dois segundos em que ela não respondeu, ela fosse desligar, mas não; por algum milagre, ela continuou conversando.
– Aconteceu alguma coisa, André? Está tudo bem?
– Não, está tudo bem comigo.
– E a Marta?
– Imagino que esteja tudo bem, também. Nós nos separamos há alguns meses, você sabe, não?
– Não, não sabia. Afinal, faz mais de um ano que não nos falamos, não é? Sinto muito, André.
– Não, não sinta. Foi uma das melhores coisas que eu fiz, se quer saber.
E estava sendo sincero. Minha ex-esposa me perturbava demais, sempre com ciúmes por causa da Isabella…
– Bom, se você diz…
– E como está tudo aí no interior?
– Calmo como sempre. Aposto que muito melhor do que aí na capital.
– Ah, sem dúvida. Essa vida mais calma do interior…
Eu fiquei um pouquinho em silêncio; não sabia como prosseguir. Como deveria falar do caso para ela? No entanto, ela pareceu perceber minha indecisão, e prosseguiu.
– E por que você me ligou, André? É para tentar me convencer a pegar o meu emprego de novo?
– Não! – eu exclamei, um tanto sem jeito; havia acertado! Mas não podia dar o braço a torcer. – Já desisti disso. Se a melhor patologista que o maior IML da América Latina já viu acha melhor ficar laudando lâminas em laboratórios fuleras do interior, quem sou eu para reclamar? Já passei dessa fase.
– Então, você ligou só para saber se está tudo bem?
– Mais ou menos. Na verdade, eu liguei por causa do seu tio. João Angier.
– Por que, aconteceu alguma coisa com ele?
– Bom… Há quanto tempo você não fala com ele?
– Deve fazer algumas semanas… Só sei que ele não estava muito bem da cirrose.
Fiquei quieto por alguns instantes.
– André, se você está me ligando, é porque aconteceu algum crime violento. O que foi?
– Acho melhor você vir para cá. Vou deixar a cena intocada como eu encontrei.
Despedimo-nos rapidamente e desliguei; aquilo havia sido o suficiente. Havia mordido a isca. Seria apenas uma questão de tempo até que ela chegasse à cena do crime com a sua costumeira bolsinha de trabalho, na qual parecia carregar tudo. Comemorei com os meus colegas de trabalho; logo, não só tudo estaria resolvido, como a melhor médica do continente estaria de volta à ativa para nos ajudar.
Quase duas horas depois, ela estacionou diante da mansão; assim que ouvi o barulho, saí para encontrá-la olhando para o chão, diante das câmeras de segurança, a bolsinha na mão, como eu havia previsto. Aquilo me deu uma enorme satisfação interna; se havia trazido sua bolsinha, iria trabalhar, e não simplesmente ver tudo como parente.
– Olá, Isa. Que bom que veio!
Não me contive e a cumprimentei com um beijo na bochecha. Ah, continuava linda como sempre!
– O que aconteceu, afinal?
– Você quer que eu conte aqui, ou prefere lá dentro?
– Não, acho que é melhor aqui. Dependendo do que for, não sei nem se quero entrar para ver.
– Ah, acredite, nos cinco anos em que trabalhamos juntos, você viu coisas muito piores. Mas enfim… Seu tio João foi encontrado morto pela sua esposa, Talita.
Ela engoliu em seco; já devia saber que era algo assim. Contudo, pelo que ela me falava do tio, sem dúvida aquilo havia sido um alívio para a esposa.
– Ela disse que chegou em casa por volta das cinco da tarde, e ele, lá pelas seis. Não conversaram muito, ele apenas ligou a televisão para assistir ao jornal, e, quando estava começando uma daquelas novelas…
– A das sete?
– Deve ser. Tem novela demais na televisão. Enfim, ao redor desse horário ela lhe serviu o jantar e subiu para o quarto para ver a novela lá. Você sabe, seu tio não tem televisão na sala de jantar, só nos quartos e na sala de televisão do segundo andar.
– Sim.
– Enfim, ela disse que ouviu o barulho de uma vidraça quebrando e ficou assustada, achando que talvez não fosse ali. Mas o terreno é enorme, e seria muito difícil se não fosse, então ela ficou na dúvida e chamou pelo marido, mas ele não respondeu. E, de repente, ela disse que ouviu um grito, um barulho, e mais nada. Ficou assustada e desceu para ver. O seu tio estava caído sobre o prato de sopa. A primeira coisa que ela fez foi ver se estava vivo, mas não estava mais. Então ela ligou para a polícia.
– E o que vocês descobriram?
– As câmeras de segurança não pegaram nada, porque não estão funcionando há uma semana, pelo que ela disse. Algum vândalo quebrou. A janela da sala de estar está quebrada. Nenhuma porta foi forçada ou arrombada, e ela diz que todas estavam trancadas na hora em que isso aconteceu.
– E o ferimento?
– Bom, acho melhor você ver. Nenhum médico viu, ainda.
Nós caminhamos pelo jardim, cuja grama já havia secado da chuva matinal, e ela se pôs a observar tudo, inclusive a varanda da casa, como era seu costume. Ela entrou e caminhou lentamente pela sala, apreendendo tudo; a janela quebrada, com os estilhaços no chão, logo em frente. Era uma janela grande o suficiente para uma pessoa mediana passar. De importante, não havia mais nada no cômodo, apenas alguns móveis e enfeites de parede, dentre eles um brasão com armas de caça cruzadas. Aparentemente, além de pecuarista, o homem era um caçador. Passamos em seguida para a sala de jantar, separada do cômodo por uma porta de correr de folhas duplas, e eu senti que ela ficou um pouco incerta. Como reagiria à morte do próprio tio? Médicos são geralmente frios, assim como investigadores, mas nunca era fácil quando se tratava da família.
Ela, no entanto, reagiu muito bem; continuou firme, e prosseguiu com o seu exame.
A sala de jantar era composta por uma mesa longa, de oito lugares, de madeira escura, um móvel à sua esquerda, também de madeira, no qual guardavam pratos e outras coisas para o jantar, e sobre o qual colocavam alguns enfeites. Na parede, em cima deste, havia um grande espelho, com moldura dourada, e, do outro lado do cômodo, havia a porta para a cozinha.
O homem estava vestido com roupas comuns, uma camiseta, uma calça e sapatos. Diante de si, na mesa, alguns talheres e temperos. O que destoava de tudo, contudo, era a cabeça do homem; estava caída sobre o prato de sopa, com a face direita emborcada, enquanto, na lateral do crânio, via-se uma lesão no couro cabeludo, coberta de sangue coagulado. Uma parte da pele havia descolado, e era possível identificar que o osso havia afundado com o impacto. Isabella comparou o tamanho, e parecia maior do que a sua própria mão.
Ela olhou ao redor de si; a esposa de seu tio, talvez um pouco mais nova do que ela mesma, encarava toda a cena de braços cruzados, sem falar absolutamente nada. Em sua expressão, não havia nem tristeza, nem alegria; talvez, um certo nervosismo pela situação e, pelo olhar, como eu pude bem ver, um alívio. Afinal, aquele homem beberrão estava lhe dando trabalho havia já um grande tempo, e a piora da sua doença apenas estava piorando as coisas.
– Talita, esses são vocês? – ela indagou, olhando para um porta-retratos apoiado sobre o móvel encostado à parede; não havia cumprimentado a tia, provavelmente porque não se davam lá muito bem, imagino.
E, igualmente, porque era assim que ela agia. Quando estava entretida com o seu serviço, muitas vezes esquecia-se das regras de convívio social. E, também, sempre perguntava das coisas mais improváveis, que posteriormente se mostrariam da maior utilidade. Mas, o que ela teria visto de útil naquilo? A foto era apenas dela com o marido, na frente de uma fazenda enorme.
A mulher encarou o objeto com a mesma expressão de surpresa que eu, mas concordou com a cabeça.
– E este tirando a água do poço, do lado da fazenda?
– É o nosso capataz – ela respondeu.
– É da sua fazenda em Paracatu, não é?
– Sim – ela respondeu. – Mas eu não entendo o que…
– Apenas curiosidade – Isabella respondeu, tomando sua bolsa em mãos.
Tirou um par de luvas e olhou a ferida da vítima; em seguida, passou a mão pela borda do prato e olhou para as mãos, caídas ao lado do corpo. Por fim, tirou cuidadosamente as luvas ensanguentadas, alguns tufos de fios soltos presos entre elas, e pegou um termômetro digital, daqueles que se coloca na orelha.
– Que horas foi que tudo isso aconteceu, mesmo, Talita?
– Umas sete, sete e meia – a outra respondeu. – Foi logo que começou a novela…
– Ou seja, entre duas e três horas atrás.
– Isso.
Ela colocou o termômetro na orelha esquerda da vítima e em poucos momentos ele indicou a temperatura.
– Vinte e nove graus, André. Talvez seja bom você marcar isso no seu relatório.
– Vinte e nove? Então… – eu comecei, enquanto anotava no meu bloquinho, mas logo ouvi o barulho de alguém se aproximando com uma mala de rodinhas e me virei.
O homem que até então estava apenas na foto, pegando a água do poço, veio e passou por nós, deixando a mala no meio do caminho.
– Eu vim o mais rápido que pude – disse o homem, aproximando-se da outra mulher e a cumprimentando com um beijo. – Sinto muito pelo que aconteceu – adicionou, passando a mão em seu ombro. – Já descobriram quem foi?
Eu dei um passo à frente e estendi a mão.
– Sou André, investigador de polícia, e esta é Isabella. Ela é sobrinha do seu João e patologista.
– Genésio – ele respondeu, apertando a minha mão. – Sou o responsável pela fazenda do seu João lá em Paracatu. Eu vim assim que a Talita me chamou.
– Bonito relógio – disse a Isabella, conforme apertava a mão do homem.
O que ela havia visto no relógio? Era de fato bonito, e tanto eu como o capataz ficamos incertos, mas ele agradeceu o elogio.
– Foi difícil conseguir um voo de Minas para cá?
– Dei sorte, consegui pegar o último assento de um voo logo que cheguei no aeroporto – ele respondeu rispidamente e prosseguiu, ansioso. – E então, já descobriram alguma coisa?
– Ainda estamos investigando quem pode ser o culpado – respondi.
Isabella caminhou mais um pouco pela sala e tomou dois saleiros em mãos.
– Por que tem dois saleiros aqui?
A dona da casa pareceu um pouco incerta com a pergunta.
– O João precisava controlar o sal, por causa da cirrose, se não ele incha demais. Então ele tinha um saleiro próprio com sal especial, daqueles light, sabe?
– Ah, sim – ela respondeu, depositando o objeto no local, e depois se voltou para mim, suspirando. – Sabe, André, eu sei que qualquer pessoa pode dar voz de prisão, mas eu acho que seria mais adequado se você falasse isso para estes dois.
Não precisei mais do que aquilo e de um olhar dela para ter certeza de que, com apenas algumas frases e alguns minutos de observação, ela havia resolvido o caso inteiro. Como conseguia? O que ela havia visto, naquela casa, que lhe permitia ter tanta certeza de que os dois eram os culpados?
Mas era sempre assim que ela fazia. Não sei o que tinha na cabeça, mas tinha alguma coisa que sempre lhe permitia ver coisas que nós não víamos. E nunca ela havia errado até então. Muitas vezes estávamos perdidos, mas, só de olhar para a cena do crime ou a vítima, ela conseguia me dizer quem havia cometido o crime e por quê.
Não hesitei.
– Vocês estão presos pelo assassinato do senhor João Angier. Agora, nós podemos proceder cal…
Talita ficou estática, mas Genésio imediatamente se virou e correu para dentro da cozinha; já esperando por isso – eles sempre tentam escapar –, tomei o rádio em mãos e dei algumas ordens. Não demorou muito, apenas o tempo de algemar a mulher, e meus colegas já traziam o capataz algemado.
– Isso é um absurdo! Vocês não têm provas! Que acusação ridícula é essa? Eu nem estava aqui! – ele gritou, conforme o traziam novamente para a sala.
– Au contraire, Genésio. Você estava aqui desde de manhã. Mas não foi você quem matou o João, não. Você só ajudou a acobertar o crime.
– Isso é um absurdo! Eu acabei de chegar de avião!
– Você diz que sim, mas sua mala diz que não. Em Minas já não chove há um bom tempo, e aqui em São Paulo estava chovendo hoje de manhã. Sua mala está suja de lama, e ainda tem marcas secas dela na entrada da varanda desta casa. Além disso, considerando que hoje é sexta-feira, seria impossível você chegar tão rápido aqui. Duas horas e meia, com o tráfego aéreo que temos, sem mencionar o trânsito da própria São Paulo, você não teria nem saído do aeroporto, ainda.
O outro não sabia o que responder e a encarou com ódio; aquilo era mais do que prova de que era exatamente isso que havia acontecido.
– Para seu próprio benefício, acho melhor você ficar quieto. Agora, é bom que todos prestem atenção, porque este é um caso bastante interessante. Me deixou curiosa no começo, mas, quando parei para pensar melhor, era um caso até simples demais. Não é preciso nem ser patologista para descobrir. Vamos começar pela entrada da casa; as câmeras quebradas já há uma semana, como disse a Talita. Eu vi uns cacos de plástico caídos no chão logo abaixo, e é impossível que eles fiquem lá por tanto tempo, especialmente com a chuva que teve hoje de manhã. Por que ela iria mentir? Esta foi a minha primeira pergunta, então prossegui observando tudo. Conforme andei pela casa, vi as marcas na varanda, as portas, sem nenhuma marca de que haviam sido forçadas, e por fim a janela quebrada. Até aí, poderia fazer algum sentido. Mas vamos primeiro ver a vítima para depois pensarmos sobre isso.
Ela caminhou para o lado de seu tio e apontou para a ferida.
– Considerando a posição em que ele está, foi um golpe dado por alguém canhoto, que o acertou por trás e pelo lado, deste jeito. A arma deve ser grande, pesada, com uma ponta arredondada, bastante compatível com um cabo de espingarda. E, se vocês forem olhar, na sala de estar, tem um par de armas de caça pendurado logo de frente à porta de entrada. Uma delas está particularmente limpa, em contraste com a outra, que está empoeirada. Um de vocês pode ir lá buscar?
Olhei para um de meus colegas, que imediatamente se prontificou; não acreditei. Eu mesmo havia ficado um tempo observando – eram belas armas –, mas não havia reparado que havia diferença entre as duas. E, de fato, quando ele voltou, trazia uma arma impecavelmente limpa.
– Para tirar as manchas de sangue e as digitais, não preciso dizer. Agora, ficam duas coisas bastante estranhas. Primeiro, como alguém quebrou a janela desta casa, entrou e ainda assim pegou o homem sentado e comendo? Seria esperado que ele se levantasse, e então ele teria sido encontrado no chão. Mas não, ele estava sentado, como se tivesse sido pego de surpresa. Portanto, a pessoa já deveria estar dentro da casa. E, outra pergunta: por que a pessoa que o acertou se daria ao trabalho de limpar a arma e colocá-la de volta no lugar?
Todos escutavam no mais puro silêncio, conforme Isabella explicava, passo a passo, a linha de pensamento que a levara à descoberta. Ela fazia parecer tão simples!
– Outra coisa favorável a ser alguém de dentro é o fato de que os cacos de vidro logo diante da janela não estão estilhaçados, como seria esperado se alguém entrasse por ela, e os móveis, que ficam logo ao lado, não estão sequer remexidos. A pessoa, então, com certeza não entrou pela janela, mas a quebrou de alguma forma para fingir que alguém entrou por lá. Deste modo, ou a pessoa que o matou com esta arma já estava dentro da casa e o pegou de surpresa, ou o João já tinha morrido e a pessoa decidiu fingir que ele havia morrido do golpe.
Todos nós a observamos com surpresa; aparentemente, não era só pela minha cabeça que aquela possibilidade não havia sequer passado.
– E isso é mais do que possível, é provável, porque, se vocês olharem, com a força de um golpe capaz de afundar o seu crânio, seria esperado que a vítima caísse da cadeira, mas ela não caiu. E, mesmo que o golpe tivesse vindo de trás, o peso da cabeça não seria o suficiente para quebrar este prato – Isabella disse e, com as duas mãos, separou o prato sobre a cabeça, que já estava rachado no meio. – Assim, o mais provável é que ele tenha caído de cabeça no prato por outra causa, e alguém tenha fingido o golpe. E isso é ainda mais óbvio quando se percebe que quase não há sangue no chão, nem no corpo, sendo que cortes no couro cabeludo sangram em abundância. Além disso, os braços estão caídos para o lado, e não para frente, como seria esperado em uma forma de proteção ao golpe. Para chegar a esta conclusão, não é necessário ser patologista. E, para estas duas que eu vou lhes mostrar, a partir de agora também não precisa mais. Primeiro, quanto ao rigor mortis; quando observei seus braços, já estavam endurecidos, o que aponta para uma morte entre quatro e seis horas atrás. E, para confirmar ainda mais, a sua temperatura já caiu oito graus e meio. Considerando que o dia está frio, ao redor dos quinze graus, podemos considerar algo em torno de cinco a seis horas de morte. Aliás, André, acho que seria interessante você saber disso e talvez pesquisar mais depois.
Eu concordei e tomei nota no meu bloquinho; ela sempre fazia aquilo. Em todos os casos nos quais tive oportunidade de trabalhar com ela, ela sempre me deu artigos para ler de lição de casa. Era praticamente uma enciclopédia ambulante de artigos científicos!
– Hirch e seus colegas, em 1979, definiram como uma queda de dois graus por hora nas primeiras horas, e depois um por hora nas subsequentes, em uma temperatura ambiente de quinze a vinte graus. Por outro lado, para nós, aqui no Brasil, em outras épocas do ano que não no inverno, a queda é de 0,9 graus na primeira hora e 0,6 nas subsequentes, de acordo com a tese de mestrado de Costa, de 1998. E muitos outros fizeram estudos disso, mas, no geral, para nós, é bom lembrar que o corpo leva entre vinte e quatro e vinte e seis horas para se adequar à temperatura ambiente. Bom, tudo isso leva a uma hora da morte entre as três e as quatro horas da tarde, ao contrário do que a esposa da vítima falou. E isso me pôs uma grande suspeita sobre ela, porque foi a segunda mentira. Agora vem a pergunta: se ele não morreu do golpe, mas sim de outra coisa, o que foi e qual o motivo do crime?
Nós nos entreolhamos; acho que ninguém conseguiria sequer imaginar. Em primeiro lugar, já era surpreendente o suficiente suspeitar da esposa, quem diria imaginar outra forma de assassinato que não o golpe, que parecia tão óbvio?
– Para isso é necessário ser patologista. Minha primeira suspeita foi envenenamento. Estava esperando algo agudo, mas qual não foi a minha surpresa quando vi as unhas dele? Estão vendo estas listras? Características de intoxicação crônica por arsênio. O arsênio causa um quadro clínico muito semelhante à cirrose hepática e à lesão nervosa por álcool, que é exatamente do que o João já sofria havia anos. Quer coisa melhor do que isso para esconder? E tudo ficou ainda mais claro quando eu vi a foto do sítio em Paracatu.
Ela tomou o porta-retratos em mãos e mostrou aos outros.
– Paracatu é uma cidade da pecuária de Minas Gerais. Minha primeira suspeita quanto à obtenção de arsênio teria sido a partir de herbicidas, mas eu sei que meu tio cria gado nelore. Então, qual a segunda opção? Vinda da água. Por causa da extração do ouro, tem um excesso de sais de arsênio na região, que acabam por chegar nos lençóis freáticos e, aí, contaminar os poços artesianos. Como a Talita é farmacêutica, não era difícil pegar a água, separar o sal, e colocá-lo em um recipiente, como, talvez, neste saleiro específico… – ela comentou, depositando o porta-retratos na mesa e pegando o saleiro com o nome do seu tio gravado. – O sal de arsênio não tem gosto, nem cheiro. É perfeito. Acho que os senhores podem levar isto como prova, assim como isto aqui.
Ela entregou o saleiro e o par de luvas para mim, e eu repassei para outro dos policiais.
– Arsênio se deposita nas unhas e nos cabelos. Agora, por fim, vamos juntar todas as peças; eis o que aconteceu nesta casa: Talita estava envenenando o João lentamente já há algumas semanas, daí a piora do seu quadro clínico. O motivo? Bom, podem ser vários, mas, considerando como as coisas geralmente vão hoje em dia, eu apostaria em golpe. Para pegar a fazenda e todos os investimentos para si. Hoje o seu capataz viria, não sei por que motivo… Seria um encontro amoroso ou algo do gênero? – ela encarou ambos; a mulher abaixou a cabeça, e o outro a encarou com ferocidade.
– Mentirosa! Pare com isso! Você não tem prova alguma!
– Da sua parte no acobertamento do assassinato ou do caso extraconjugal? – ela indagou.
– De nenhum dos dois! – ele retrucou, e ela somente balançou a cabeça.
– De qualquer forma, não era esperado que João morresse tão cedo, mas hoje ele usou uma dose excessiva do seu sal… E morreu de parada cardíaca. Quando Talita percebeu o que havia ocorrido, pediu ajuda para Genésio para esconder tudo. O que fazer? Fingir um latrocínio ou algo do gênero era o mais fácil. Esperaram até escurecer, quando seria mais difícil de serem vistos, e começaram. Quebraram as câmeras, para arranjar uma desculpa para o fato de não terem filmado o ladrão, quebraram a vidraça de fora para dentro, tomaram a espingarda em mãos e acertaram o pobre morto na cabeça, quebrando o prato com o impacto. Mas, pela posição, o golpe foi dado por um canhoto, e alguém com força. E a Talita não é nem canhota, nem tem muita força, mas, por outro lado, o Genésio…
– E como você sabe que ele é canhoto? – eu perguntei; não conseguia me conter. Ela parecia ter um dom sobrenatural para saber coisas sobre as pessoas. Afinal, em nenhum momento eu o havia visto escrever!
– É costume das pessoas usar o relógio na mão não dominante. Destros usam o relógio na mão esquerda para não atrapalhar para escrever. Canhotos usam na mão direita, como o Genésio. E, aliás, um relógio caro demais para só o seu salário como capataz cobrir.
Caro demais… Teria ela suspeitado do caso extraconjugal apenas por aquele pequeno detalhe?
– Eu não sou canhoto! – ele exclamou.
– Isto é fácil o suficiente de se provar, e não precisamos nos preocupar com isso agora. Já há provas o suficiente contra você sem você ficar falando tanto. Fique quieto. Prosseguindo; só restou, por fim, chamar a polícia e garantir que tudo se passasse como se tivesse ocorrido ao redor das sete horas da noite. Então, Genésio saiu da casa e ficou esperando o momento apropriado para voltar, mas acabou chegando um pouco cedo demais, não? Teria sido melhor se tivesse esperado para chegar amanhã. Ou se nem tivesse vindo. Bom, ao menos vai facilitar aos policiais o trabalho de ter de ir atrás de você.
O peão pareceu rosnar de volta, e dois policiais tiveram de segurá-lo e puxá-lo para fora.
– Não deve ser difícil conseguir um registro dos voos de Minas Gerais para cá, no período da manhã, e o nome do Genésio, não? – ela comentou para os investigadores atrás de si, que assentiram.
Enquanto isso, do outro lado da sala, lágrimas escorriam do rosto da esposa, que até então não proferira palavra.
– Eu gostaria de saber como pessoas como você conseguem dormir à noite – a patologista falou, aproximando-se. – Traição, assassinato… Francamente, onde você iria parar?
Com isso, ela explodiu em um choro descontrolado, e outra dupla precisou praticamente carregá-la para ir para o carro de polícia. Outras pessoas talvez ficassem assustadas com aquele comentário da Isabella, mas eu sabia que isto era mais uma de suas técnicas para obter informações; aproveitando-se do estado emocional das pessoas, ela geralmente conseguia com facilidade provas que nem nós conseguíamos. Se não fosse patologista, teria sido uma excelente investigadora.
Isabella se virou e olhou para os outros policiais; estavam todos surpresos. Não eram todos que estavam acostumados com a sua facilidade em desvendar crimes e causas de morte.
– Muito bem, eu não preciso nem fazer a autópsia para saber o que eu vou encontrar. Cirrose hepática, lesão renal, ascite, varizes esofágicas. O cérebro não vai ter nenhum sinal de isquemia ou trauma, e o coração também vai estar normal. E fale para o patologista do IML colher amostras da urina, do sangue e das unhas dele.
– Certo – os outros responderam, anotando tudo.
Eu me aproximei e a cumprimentei; estava realmente impressionado. Aquele havia sido um dos casos mais rápidos de todos da sua história.
– Obrigado, Isa. Foi maravilhosa, como de costume.
– Eu que devo agradecer – ela respondeu. – Foi um caso interessante, me fez pensar um pouco. Devo dizer que bem mais do que só ficar laudando lâminas.
– Posso considerar isso como uma possibilidade de retorno ao seu antigo cargo? – perguntei, esperançoso.
Ela balançou a cabeça, sorrindo.
– Não, estou bem onde eu estou. Eu não quero voltar.
– Em definitivo?
– Por enquanto – ela respondeu. – Depois, me mande o relatório da autópsia para eu ver se eu acertei. Até mais!
E, dito isso, saiu da casa.
Na sexta-feira seguinte, à noite, eu toquei a sua campainha; como tinha hábitos bastante metódicos, aposto que estava tomando do seu vinho e ouvindo música clássica.
– André? O que aconteceu?
Eu lhe entreguei um buquê de flores, sorrindo.
– Isto é de agradecimento pela ajuda.
– Obrigada – respondeu ela, um tanto sem jeito, e, internamente, eu também sorri; aquilo sempre dava certo.
– E você acertou tudo. Aqui está o laudo da autópsia; você mesma poderia ter escrito, porque está exatamente igual.
Ela riu.
– Você poderia só ter mandado por e-mail, não precisava ter vindo até aqui.
Eu preferi ignorar a resposta; ela deveria saber muito bem que eu preferia ir à sua casa.
– Tem certeza que não quer reconsiderar o seu cargo? Você foi brilhante na sexta-feira.
– Não, obrigada. Eu já fui até longe demais com toda essa história. Quando você me chamou, eu jurei para mim mesma que eu não ia deixar me levar e ia ver tudo apenas como parente. Mas, assim que eu vi as câmeras quebradas, não resisti e comecei a ver tudo como sempre vi.
– É, mas para quem não queria passar de parente, você bem que levou a sua bolsa de trabalho, não?
Ela riu, sem jeito.
– Devo dizer que fiquei uns bons dez minutos me debatendo em casa, pensando se levava a bolsa ou não. No final, o bom senso acabou me fazendo levar…
Foi a minha vez de rir; meu plano havia definitivamente dado certo. Agora, era apenas uma questão de tempo… Decidi jogar outra isca.
– Bom, mesmo assim, será que você não quer me dar uma consultoria? Estamos com um caso meio complicado…
Ela suspirou, ainda sorrindo. – Ah, por que não? Entre e se sente em algum lugar confortável. Quer uma taça de vinho?
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais