O caso do motorista estrangulado
Um dos casos mais surpreendentes em que já trabalhei em todos estes anos com Isabella foi o que eu gosto de intitular como “O caso do motorista estrangulado”. Para você que me lê neste momento, creio que o nome seja bastante ilustrativo por si só: imagine um homem conduzindo um carro, que falece, ao que tudo indica, não pela colisão do automóvel, mas, sim, por estrangulamento? Parece roteiro de filme de terror, não?
Mas não era. Isabella sempre me chamou para os casos mais interessantes que ela encontrava enquanto fazia suas autópsias para o IML, e este caso não foi diferente. Assim que chegou, dada a sua peculiaridade, ela me chamou.
– Vamos, André, use o que eu já lhe ensinei para conseguir obter tudo o que for possível do nosso paciente!
Estávamos ambos em começo de carreira, mas as habilidades de Isabella estavam anos-luz à frente das minhas. De qualquer forma, tentei observar o homem que eu tinha diante de mim: parecia ter em torno de quarenta anos de idade e usava uma roupa social de uma marca cara, daquelas que eu nunca poderia sonhar em comprar. Seus sapatos eram também finos, de couro, daquelas marcas italianas. Tinha os cabelos pretos, porém um pouco grisalhos, e algumas raízes brancas mostravam que pintava, ou seja, era uma pessoa que se preocupava com a aparência.
As sobrancelhas eram também feitas e tinha pouquíssimas marcas de expressão ou rugas, o que me fazia pensar que era uma pessoa que aplicava toxina botulínica. Tudo me levava a crer que era, assim, uma pessoa rica, com algum cargo importante, para o qual a aparência importava, e muito. Como não o reconheci de imediato, cri que não trabalhava para a televisão, muito embora eu tivesse tão pouco tempo para assistir que seria possível que fosse âncora do jornal mais famoso do país e eu, ainda assim, não o reconhecesse.
Os olhos estavam fechados, por convenção (os policiais e expectadores adoram fechar os olhos dos cadáveres, como se isso desse um fim ao caso ou à sua função na Terra), mas eu os abri: eram verdes e, no momento, inexpressivos, mas me traziam muitas informações: pequenos vasos estourados, pequenos sangramentos, que se juntavam à pletora do rosto, assim como os pequenos vasos da face.
Tinha um bigode escuro, muito bem aparado, porém com alguns pequenos fios brancos que ele não conseguia pintar, claramente. Não usava barba, e a pele era bronzeada. Aparentemente, costumava tomar sol em ambientes abertos e com óculos escuros, pois tinha as claras marcas dos óculos de sol ao redor dos olhos, enquanto o bronzeamento se restringia às áreas expostas, ou seja, não era alguém que fazia bronzeamento artificial.
Não era gordo, mas não era terrivelmente magro e não tinha as marcas de estrias ou a pele flácida de alguém que era gordo e emagrecera; isso me fazia pensar que era alguém que praticava atividade física com regularidade, fosse para a saúde, fosse para controle de peso.
Tínhamos, portanto, um homem de meia-idade, abastado, com algum hobby que praticava ao ar livre; observando seu corpo e vendo as pernas fortes e torneadas, supus que se tratasse de um triatleta, o que não era de todo incomum nesta idade, em que os homens entram em crise e, especialmente os ricos que têm dinheiro sobrando, decidem praticar algum esporte de maior intensidade para se sentirem mais vivos.
Isabella me dissera que ele havia falecido em um acidente de automóvel; contudo, havia pouquíssimos sinais de trauma em todo o seu corpo. Sem hematomas, sem equimoses, sem arranhões, sem nada. A única evidência que nos indicaria a sua causa de morte era a marca, longa e fina, de algo semelhante a uma corda em seu pescoço. Isso, associado às sufusões sanguíneas no rosto, faziam-me pensar que o nosso rico paciente foi estrangulado e, posteriormente, bateu o carro.
Apresentei minhas ponderações para Isabella, que assentiu.
– Muito bem, André, muito bem! Mas, temos mais algumas considerações: primeiramente, este é um homem que pratica não somente o triátlon, mas, especificamente, nada no mar aos finais de semana. É muito rico e trabalha em uma firma de investimentos, como acionista, tendo um cargo importante, fazendo principalmente trabalho burocrático em seu escritório. Está com quarenta e dois anos de idade, usa óculos para enxergar à distância e tem uma amante, que provavelmente encontra aos finais de semana, quando vai treinar para o seu triátlon.
– Isabella! – exclamei, surpreso. – Como pode saber tudo isso?
– Ah, não é difícil. Hoje é segunda-feira; veja seu cabelo, ainda tem um pouco de areia. A areia da praia é difícil de sair e pode levar dias para sair de todo do cabelo, por mais cuidadoso que ele seja. Portanto, ele foi à praia recentemente, e a pele vermelha indica que ele não usou muito protetor neste fim de semana. Um descuido para um homem tão metódico? Ou estaria acompanhado? Para corroborar esta ideia, vejamos sua mão: a aliança na mão esquerda. Agora, isso é um achado clássico.
Ela puxou a aliança da mão dele, que saiu com facilidade; a marca da aliança era evidente, em um tom muito mais claro do que a mão.
– Não me ajudou muito.
– Olhe com mais atenção.
Comparei cuidadosamente com uma parte menos exposta do seu copo, como a pele da virilha, e descobri: a pele da região da aliança era um pouco mais bronzeada, como se ele, de fato, removesse a aliança para algumas atividades ao ar livre. Mas, mais do que isso! Estava levemente vermelha, como se ele tivesse removido a aliança neste “descuido” e tomado sol. Expliquei tudo para ela e fiquei surpreso com como ela conseguia ver os detalhes com tanta facilidade.
– Exatamente. Assim, temos que nosso paciente provavelmente se encontrou na praia com sua amante. Ou seu amante, não sei.
– E como sabe dos óculos? – indaguei.
– Ah, simples. Está vendo as marcas na ponte nasal? Ele estava de óculos na hora do acidente, que ocorreu de manhã, quando sol ainda estava nascendo, ou seja, eram óculos de grau, não de sol.
– E sobre seu trabalho?
– O fato de ser burocrático é bem claro. O solado de seu sapato está pouco gasto, embora o sapato, em si, esteja mais gasto. Ao mesmo tempo, não parece que ele trocou o solado, nem nada assim; ele realmente anda pouco em suas roupas sociais. Agora, quanto ao seu trabalho, especificamente…
Ela puxou uma carteira e, dela, um cartão, que indicava que nosso paciente era, de fato, um funcionário de alta patente de uma empresa de investimentos.
– Mas isso não vale!
Isabella riu.
– Deixei esta por último, para confirmar o que achava. Mas tudo apontava para isso.
– Tudo bem, Isa, mas isso aqui ainda não explica para nós como raios esse homem morreu estrangulado em seu próprio carro!
– Ah, esse é o achado mais peculiar de todos! Uma esposa vingativa, que o pegou por trás na hora em que se sentou no carro, ou durante o trajeto? O que lhe chama a atenção, aqui?
Olhei demoradamente para o homem, mas, afora a marca do cinto de três pontas, bem evidente no tórax depilado, não encontrei nada.
– Sabemos que o homem não morreu do trauma, pois não temos nenhuma lesão forte o suficiente para causar sua morte. Sabemos que o cinto de segurança funcionou apropriadamente, até porque, se não fosse isso, ele teria saído voando pelo vidro. Sabemos, também, que o airbag inflou na hora do acidente, como você pode ver pelas pequenas lesões na face, aqui e aqui e, especialmente, este hematoma na sobrancelha, onde o airbag empurrou o aro dos seus óculos. O problema todo aqui, na verdade, é de que o cinto de segurança talvez tenha funcionado bem demais.
Eu a encarei, sem compreender.
– Como assim?
– Eu acho que você precisa fazer um trabalho de campo para concluir a nossa investigação – ela falou. – Vá ao pátio de veículos onde está o carro deste homem e você vai encontrar a arma do crime.
Não era minha investigação, já que outra equipe estava cuidando disso, mas as afirmações e a história de Isabella deixaram-me, como de costume, muito curioso com o que havia de fato acontecido com o nosso executivo. Assim, entrei em contato com a central e descobri para qual pátio o carro havia sido direcionado e, em torno de uma hora depois, eu o estava vistoriando.
A polícia não estava tratando o caso como um homicídio, ao menos, não até então; consideravam como um simples acidente de carro. Entretanto, o laudo que Isabella faria poderia mudar consideravelmente o caso, e eles teriam um grande problema com provas arruinadas, quando fossem investigar o automóvel.
Mesmo sabendo que não faria diferença alguma para a perícia (já haveria uma quantidade incalculável de digitais naquele carro), eu calcei luvas de látex e me pus a avaliar o seu interior. De fato, os airbags haviam aberto e estavam murchos, naquele momento. O automóvel, uma bela Mercedes, comprovando a distinção social do nosso paciente, estava totalmente amassado; fora um acidente, ao que parecia, em alta velocidade. O interior do carro, porém, não tinha basicamente nenhuma evidência de nada. Não havia nenhuma gota de sangue, era impossível abrir o porta-luvas e, para não dizer que não achei nada, afora uma garrafa de água, um copo de café, uma nota fiscal daquele café, o mais incriminador que achei foram dois fios de cabelo lisos, longos e pintados de loiro. Certamente, não eram dele.
Observei o cinto de segurança; a presilha ainda estava em seu encaixe, mas o cinto em si havia retrocedido e desaparecido, como se tivesse se rompido. Vasculhei mais um pouco em volta dos bancos e perto de freio de mão e…
– Arrá! – exclamei, empolgadíssimo.
Uma pequena corda, da largura de um dedo e não mais que dez centímetros de comprimento, compatível com a marca do pescoço do nosso paciente!
A arma do crime! Isabella tinha acertado!
Poderia ser que a amante havia estrangulado o homem? Se encontrássemos digitais dela na corda, juntando ao cabelo…
Tirei fotos do objeto e dos fios de cabelo, para não contaminar ainda mais as provas, e voltei todo empolgado para o IML, onde Isabella estava se arrumando para almoçar.
– E aí, encontrou a arma do crime? – perguntou ela.
– Sim! E suspeito que quem o matou foi a amante!
Ela riu.
– Coitadas, sempre as mulheres são as primeiras acusadas de tudo! Vamos discutir sobre isso enquanto comemos e você me mostra o que encontrou.
Assim, fomos a um restaurante lá próximo, onde ela costumava comer, e, após o garçom pegar nossos pedidos, mostrei-lhe as fotos que tirei.
– Está vendo esses fios? Aposto que são da amante.
– É possível, mas acho que você está sendo precipitado. Esse cabelo deve ser da esposa dele.
– Com você sabe?
– Você encontrou algum grão de areia no carro? – ela indagou.
– Grão de areia? Não.
– Ele tinha algum suporte para bicicleta ou coisa do tipo?
– O quê? Também não.
– Isso aponta para o fato de que ele provavelmente foi à praia com outro carro. Faz sentido. Se estamos trabalhando com a hipótese de que ele pratica algum esporte na praia, considerando a sujeira que a praia faz, a ideia de que ele tem uma amante em outra cidade e de que precisa de material para poder fazer esportes… Tudo isso aponta para usar um segundo carro. Que, convenhamos, não deve ser problema para alguém com tanto dinheiro quanto ele.
– Tudo bem, então! – falei, sem desanimar. – A culpada é a esposa!
– Pobres mulheres, novamente culpadas por tudo!
– Mas, Isa! Temos provas! Dois fios de cabelo, uma tira de tecido não elástico que pode ter sido usada para o estrangulamento…
– Você encontrou o fio de cabelo onde?
– No banco do carona.
– Não acha estranho que a mulher o tenha estrangulado pelo lado? Correndo o risco de morrer em um acidente de carro? E, caso tenha sido isso mesmo, ela saiu antes de os bombeiros chegarem e ninguém viu? Pela foto que me mostrou, o carro ficou muito amassado… E ela sequer se machucou?
– Mas, Isabella… O homem não pode ter se estrangulado sozinho, pode?
Ela deu de ombros, enquanto aproveitava o seu risoto que acabara de chegar.
– Pense um pouco! Use esta estrutura notável, tão mal utilizada pela maioria dos Homo sapiens!
Enquanto atacava meu virado à paulista, revirava paulistanamente o caso em minha mente. Não era possível. Como uma pessoa poderia ter se estrangulado? Ainda mais, antes de se acidentar?
Olhei cuidadosamente para a tira de tecido que havia encontrado. Ela era azul e me parecia ter algo escrito… Algumas letras, provavelmente o fim de um nome.
– Era uma tira de crachá! Da empresa dele!
– Exatamente! – exclamou minha amiga, empolgada.
– Mas, por que está cortada?
Eu parei para pensar sobre o carro; o cinto de segurança, com sua presilha ainda no plugue, mas todo retraído… Ele teria estourado? Não, não era possível, não de um carro tão bom e seguro como aquele… Mas, e se ele tivesse sido cortado? Mas, por quem? E por quê?
A solução me veio à tona quando cortava o último pedaço de meu bife.
– Os bombeiros! – exclamei.
– Exatamente – disse ela, sorrindo.
Não, não quero dizer que os bombeiros estrangularam o nosso paciente; longe disso! Mas, sim, foram os bombeiros que cortaram o cinto de segurança e, com isso, cortaram também o crachá. Mas, por que precisaram cortar? Porque, de alguma forma, o cinto estava atrapalhando para extricar a vítima. E a única explicação para isso era que…
– O crachá se enrolou no cinto!
– Muito bem! – disse ela, erguendo a mão para pedir um café. – Caso interessante, não? Dois cafés, por favor. Obrigada.
Eu repensei o caso; sim, fazia todo sentido!
– Temos o nosso grande executivo, todo vestido e indo para o trabalho. Sabemos que ele era muito metódico e, provavelmente, para não esquecer, já saía de casa com o seu crachá pendurado no pescoço. Durante o trajeto, por algum motivo, ele perde o controle e bate o carro. O seu sistema de segurança é excelente e ele sairia totalmente ileso, não fosse por um único problema: o crachá enrolado no cinto de segurança. O cinto funcionou tão bem, mas tão bem, que podemos ver as suas marcas no corpo do paciente. E, ao mesmo tempo, ele travou com tanta intensidade, que o crachá acabou por estrangulá-lo! Quando os bombeiros foram resgatá-lo, não conseguiam soltar o cinto, de tão travado que estava. Assim, cortaram-no e puxaram o corpo, já sem vida, do nosso executivo. O resto do cinto e do crachá provavelmente caíram no chão da pista e foram relegados ao esquecimento, enquanto nosso paciente veio para cá, com este interessante mistério!
E, assim, foi solucionado o incrível caso do motorista estrangulado. Nada de um assassino em série saído de filme de terror, nada de esposas ou amantes vingativas. Apenas o mais puro azar. Portanto, você que me lê, lembre-se sempre: nada de andar com um crachá pendurado no pescoço!
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais