O Caso do Pelúcio
Certo dia, um senhor apareceu à minha porta, pedindo auxílio para um caso aparentemente bastante complicado. Seu nome era Marcos, e ele morava em um condomínio famoso nas cercanias da cidade de São Paulo, com muitas casas, senão de alto padrão, ao menos, de bom padrão.
Ele estava bastante ansioso ao bater à nossa porta e tivemos de lhe oferecer um copo de água para que se acalmasse. Como de costume, eu me senti à mesa diante dele, enquanto Isabella ficou a um canto, apenas observando.
– Por favor, seu Marcos, conte o que está acontecendo – falei, preparando-me para tomar notas.
Após algumas incertezas, ele respirou fundo e franziu a testa, de olhos fechados, com as mãos apoiadas sobre as pernas, parecendo profundamente concentrado; manteve esta postura e as suas respirações por alguns momentos, antes de, finalmente, abrir os olhos e, com os pensamentos organizados, começar.
– Eu fui roubado no meu próprio condomínio.
Eu o incentivei, apontando a mão e erguendo as sobrancelhas, mas o homem parecia ansioso demais para conseguir formular sua história, mesmo com toda a sua respiração profunda.
– O que, exatamente, foi roubado?
– Minhas joias. Na verdade, da minha esposa. E alguns dólares que deixava guardados, de reserva.
– Certo. Quando foi isso?
– Cerca de três semanas atrás.
– Três semanas! Faz bastante tempo.
– Sim. Eu informei à polícia, mas eles não conseguiram descobrir absolutamente nada.
– Como não?
– Eles não encontraram sinais de arrombamento, nem de terem vasculhado a casa, nem nada.
– Quando o senhor deu pela falta das joias?
– Minha esposa percebeu uma segunda-feira à noite, quando íamos sair.
– Mas, antes disso, quando tinham visto pela última vez?
– Não tenho certeza… Coisa de uma semana?
– Então, temos um longo período no qual suas joias podem ter desaparecido.
– Sim! Mas, o grande problema, doutor André, é que… Sem nada conclusivo da polícia, eu não consigo solicitar o pagamento do seguro das joias.
– Não precisa me chamar de doutor, por favor. Elas tinham seguro, é?
– Sim! Eram joias muito valiosas, tesouro de família da minha esposa. Passadas de geração em geração.
Fiz algumas perguntas básicas, sobre quem mais sabia das joias – basicamente qualquer um que conhecesse a família, porque era sempre motivo de conversa da sua esposa –, quem mais trabalhava na casa e estivera lá neste período (uma faxineira, um jardineiro), como eles mantinham joias tão valiosas guardadas…
– Certamente, dentro de um cofre, correto?
– Ah, não. Mantemos em uma caixa na primeira gaveta do closet. Minha esposa gosta de as ter bem acessíveis.
– Mas… Isso não faz muito sentido. Não são valiosas?
– Sim, mas nós temos seguro, não é? É para isso que o seguro serve.
Aquilo me cheirava a trapaça.
– Além disso, confiamos no nosso condomínio, doutor André. Todos os nossos vizinhos são bastante confiáveis, nos conhecemos há anos. Nossos filhos vivem indo um à casa do outro. Só que…
Ele estancou; eu troquei olhares com Isabella, depois o encarei.
– Só que o quê?
Ele permanecia em silêncio.
– Por favor, seu Marcos, qualquer informação que o senhor tiver pode ser importante para nós, por mais boba que pareça.
– Bem… Nessas últimas semanas, outros vizinhos reclamaram de roubos.
Isabella se remexeu na sua poltrona.
– Foi isso que me trouxe aqui – ele prosseguiu. – A polícia não conseguiu descobrir absolutamente nada e, neste meio tempo, mais pessoas foram roubadas.
– Quantas pessoas, você acredita?
– Ah, pelo menos cinco, sete famílias.
– Quando o senhor diz roubo… Não quer dizer furto?
– Não sei a diferença, doutor!
– Roubo envolve violência, furto, não.
– Ah, sim. Furtos, então. Ninguém nunca conseguiu ver o ladrão. Acredito que eles estejam atuando no meio da noite.
– Eles? Por que eles?
– Ora! Para roubar tantas pessoas de uma vez? Só pode ser uma quadrilha!
– Imagino que seu condomínio tenha um bom sistema de segurança, não?
– Ah, sim. Excelente. Nunca tivemos nenhum roubo, nem invasão, nem nada. Quer dizer, até agora.
– Existe alguém no seu condomínio que poderia ter acesso a todas as casas?
– Não sei… – respondeu ele, pensativo. – Quer dizer, as pessoas podem circular livremente, as casas não têm cercas… Mas, cada um fecha a sua porta, eu imagino.
– O senhor mantinha a sua porta trancada?
– Não… – respondeu ele, vexado.
– Não? – retruquei, exasperado. – Nem mesmo para dormir?
– Não…
Deve ser bom morar em um lugar desses, com esse nível de tranquilidade, pensei.
– Mas, agora estou deixando – adicionou Marcos. – Afinal, se alguém pode entrar na minha casa com tanta facilidade e roubar minhas joias…
– Bem, partindo deste princípio, então, seu Marcos, se todos os outros vizinhos pensarem como o senhor e deixarem as portas destrancadas…
– Não sei se todos, mas acredito que boa parte deles. Somos uma comunidade civilizada!
– …Isso significa que absolutamente qualquer pessoa do condomínio pode ter entrado na sua casa e pegado as joias!
Ele apoiou os cotovelos sobre as pernas, desanimado.
– Sim…
Eu suspirei; parecia um caso complicado. Bem, era destes que eu mais gostava! Assim, tomei mais algumas notas e, pouco tempo depois, dispensamos o senhor Marcos, com a promessa de que iria fazer uma visita de reconhecimento. O caso parecia fadado ao fracasso, mas, como seu Marcos estava disposto a arcar com todos os custos da investigação e, pensando em um ladrão em série, tínhamos a possibilidade de que outros furtos acontecessem e me trouxessem mais informações, eu não tinha por que não o recusar.
– E então, Isa? O que achou?
– Um caso interessante para você – ela disse, erguendo-se da poltrona.
– Não vai querer participar? – questionei.
– Talvez queira conhecer o condomínio, mais para frente. Mas, por enquanto, já tenho minhas suspeitas. Vamos ver o desenrolar dos acontecimentos.
– Suspeitas? – questionei; do que ela podia suspeitar, diante do que o homem tinha nos falado? Ele não trouxera basicamente nada que prestasse! – Você acha que ele falsificou o furto?
– Ah, não, acho que o furto foi bem real.
– Mas, quem foi, então?
– Isso eu não tenho certeza ainda. Mas, mantenha-me a par do que descobrir – ela falou, indo para a sala, onde aproveitaria para tocar um pouco de piano.
Pensativo com o que a entrevista trouxera de informações para ela, que não trouxera para mim, organizei-me para uma visita ao condomínio do seu Marcos.
Dois dias depois, pela manhã, encontrávamo-nos na sua casa. O condomínio parecia ter um sistema de segurança bastante satisfatório; uma portaria com cancelas, portões que só abriam se o segurança permitisse, e três funcionários de segurança por turno. Os moradores entravam por reconhecimento facial, e os visitantes tinham de ser autorizados após ligarem para as casas. Funcionários poderiam entrar, também, por reconhecimento facial, por um portão específico de acesso de pedestres.
O condomínio era enorme, com mais de duzentas casas. Sim, eram todas casas, de dois ou três andares, muito bonitas e bem conservadas. Cada terreno era separado do outro no seu jardim por basicamente uma cerca viva; os muros apareciam apenas lá no fundo, nos quintais. Não havia, também, cercas, ou seja: o jardim das casas dava diretamente para a calçada, como naquelas que vemos em outros países.
Uma coisa interessante, também: não havia postes elétricos. Toda a fiação era passada por baixo da terra, de forma que as lâmpadas dos postes acendiam quase como se por mágica, dando um aspecto mais bucólico, daqueles postes antigos que precisavam ser acesos à noite por um funcionário. Além disso, a vista era maravilhosa, e o condomínio, repleto de árvores. Havia, em um ponto, o “clube” do condomínio: piscina aquecida, piscina aberta, academia, brinquedoteca, playground, salão de festas, salão comunitário, churrasqueira, quadra, sauna, sala de yoga… Tinha até mesmo um bosque, com direito a, como seu Marcos me mostrou, saguis, tucanos, araras, saruês, outros tipos de macacos e mamíferos que eu sequer sabia o nome… No meio do bosque, havia um pequeno rio, alimentado não sei exatamente como nem de onde, que movia uma roda d’água, usada principalmente para enfeite. Enfim, algo impressionante. Se isso era de bom padrão, não queria nem imaginar o que haveria em um condomínio de alto padrão!
Mas, a confiança era tão grande dos vizinhos, que havia até mesmo uma loja de conveniência, que funcionava sem funcionário nenhum. Exatamente! Havia apenas uma câmera, os produtos e um caixa, onde a pessoa passava as próprias compras!
E isso se refletia nas câmeras de segurança, também; colocadas em pontos estratégicos, basicamente filmava os locais por onde pessoas poderiam invadir, mas não cobriam todos os pontos do condomínio.
– Será que podemos ter acesso às fitas de segurança?
– Acredito que sim.
Meu plano inicial tinha sido de conversar com os funcionários de Marcos, que eram, claro, os principais suspeitos; contudo, depois de me contar que houvera outros roubos no condomínio, minhas suspeitas contra eles baixaram. No máximo, poderia pensar no jardineiro, que certamente atendia outras famílias – bastaria bater com quais famílias ele atendia e eu veria se havia um padrão.
No entanto, progressivamente minha teoria mudara para alguém de dentro se aproveitando da confiança dos outros para invadir suas casas. Ou durante o dia, quando não houvesse ninguém, ou, mais provável, durante a noite. Um morador poderia, com facilidade, observar os hábitos de todos eles e aproveitar o momento em que saíssem para jantar, ou viajassem, ou qualquer coisa do tipo. Até mesmo durante o dia, poderia aproveitar para entrar enquanto os moradores estavam fora, trabalhando. Eram tantas as possibilidades! Cada um perdido em sua vida, as casas separadas e com os barulhos abafados pelas plantas e obscurecidos pelos barulhos próprios dos animais selvagens que perambulavam por todos os cantos, seria fácil se esconder e conseguir agir sem que ninguém visse. Era o local perfeito para cometer um crime desses.
Suspirei; eu teria trabalho. Muito trabalho.
– Vamos começar!
Não vou enfadá-los com o passo a passo da minha investigação, que foi bastante demorada. Em resumo:
O jardineiro que atendia a casa do seu Marcos atendia também diversas outras casas do condomínio, algumas que haviam sido furtadas, e outras, não. Nem todas as casas furtadas eram atendidas pelo jardineiro, então, seu nível de suspeição caiu consideravelmente.
Eu estava trabalhando com a hipótese de que era um trabalho interno, ou seja, a pessoa que cometera os furtos conhecia muito bem suas vítimas, seus hábitos e onde guardava as suas joias. Bem, estava inferindo isso pelo caso do seu Marcos; ainda precisaria conversar com outros vizinhos para compreender bem o que estava acontecendo.
A faxineira, por sua vez, tinha uma rotina impecável: chegava às sete horas da manhã, às segundas, quartas e sextas-feiras, e saía às quatro horas da tarde. Era possível vê-la passando pelas câmeras de segurança em determinados momentos, e o registro de suas entradas e saídas era tão perfeito quanto um relógio suíço. Cronometrei o tempo de caminhada da câmera de segurança mais próxima da cassa dele até a guarita e, de fato, não havia como ela sair da casa dos patrões e cometer um furto em tão pouco tempo. Sim, ela poderia ter saído mais cedo da casa do patrão e invadido outra, mas, para isso, teria de sair bem mais cedo, ou ter muito mais contato com os outros vizinhos.
Outra opção, pensei comigo mesmo, seria que fosse uma rede de funcionários, que praticava furtos em conjunto. Mas, neste caso, a atitude mais inteligente seria ter furtado todas as casas ao mesmo tempo, o que certamente desnortearia a polícia e diminuiria a chance de serem descobertos. Enfim, era um caso complicado.
Fiz questão de checar todas as câmeras de segurança, buscando algum acontecimento na semana anterior à descoberta do furto: nada. Não havia absolutamente nada de anormal acontecendo, nem de dia, nem de noite. O que não significava de todo que o furto não ocorrera, mas, simplesmente, que quem o cometera sabia muito bem o que estava fazendo. Mais indicativo, ainda, de um trabalho interno.
Assustei-me algumas vezes com seres perambulando durante a noite, pegos pelas câmeras, e descobri que eram saruês, um bicho semelhante ao gambá, que passeavam pelo condomínio inteiro em busca de comida, revirando latas de lixo. Alguns deles eram bem grandes, e eu poderia facilmente confundi-los com cachorros! Só que, como me explicaram, todos os animais de estimação ficavam presos dentro de casa, era uma regra.
Ao longo daquela semana e da seguinte, conversei com todas as famílias que haviam sido furtadas, assim como seus funcionários; absolutamente nada a acrescentar. Todos os furtos haviam acontecido exatamente da mesma forma: sorrateiramente, sem sinais de arrombamento.
O que não era surpresa, porque grande parte dos moradores não deixava suas portas trancadas, nem mesmo durante a noite. Seria a coisa mais fácil do mundo invadirem as casas e roubarem suas joias.
No entanto, depois da notícia dos furtos e de que eu estava investigando, os moradores começaram a trancar as suas casas, até mesmo durante o dia. Isso, porém, não impediu que mais um roubo acontecesse. Foi na casa do seu Eduardo, de número 137, bastante longe, portanto, da casa de Marcos, que era de número 174.
– Estou checando minhas joias e dinheiro todos os dias – disse Eduardo. – Quando fui dormir, ontem, estava tudo lá. Agora, hoje da manhã… Sumiu! Tudo sumiu!
Busquei pela casa inteira; não havia, de fato, qualquer sinal de arrombamento. As janelas permaneciam todas trancadas, exatamente como o homem as deixara à noite, para provar a mim que estavam em uma fortaleza impenetrável. Nenhuma janela quebrada; nenhuma forma de acesso pelo telhado ou chaminé. A única coisa aberta era a porta da frente, que havia sido destrancada pela manhã.
Era um caso realmente muito misterioso; quem estava conseguindo fazer aquelas joias desaparecerem de forma tão mágica?
– Pode ser que seja um Pelúcio – comentou Isabella.
– Pê o quê?
– Pelúcio. Aquele bichinho do “Animais fantásticos”, que rouba coisas brilhantes.
– Isa! Não acredito que você acredite nessas coisas! – respondi, no que ela riu.
– Estou brincando, André. É claro que esses bichos não existem.
Eu já tinha compartilhado com ela todas as informações que tinha obtido – ou seja, praticamente nada – e mostrado o mapa do condomínio que tinha traçado.
– Você já leu algo de Arsène Lupin?
– Quem?
Ela revirou os olhos.
– Sabe o cara da série a que estávamos assistindo?
– Ah, sim! Tem um livro?
– Vários. Talvez, você devesse ler. Quem sabe te ajudaria a resolver esse mistério…
– Tem resumo na internet?
Ela simplesmente não me respondeu.
O que Isabella queria dizer com aquilo? Como um livro de um ladrão de casaca, escrito na França para competir com Sherlock Holmes um século atrás, poderia me ajudar a solucionar este mistério do século XXI? Eles certamente não tinham portões eletrônicos e câmeras naquela época.
Para minha sorte, ela tinha a coleção completa na sua estante de livros, e lá fui eu me pôr a ler. Estava, de fato, entretido e me divertindo, ainda mais na parte em que ele vence Herlock Sholmes, quando o meu interfone tocou.
– Parece que é uma tal de Daiane – disse Isabella. – Diz que tem informações importantes para a investigação.
– Vamos ver! – exclamei.
Estava tentando me manter positivo, mas, que informação ela poderia realmente nos trazer? O que haveria que poderia nos trazer uma verdadeira reviravolta? Se ela fosse relatar mais um furto que eu também não conseguiria solucionar…
– Doutor André – ela disse, logo que se sentou à cadeira diante de mim. – Acho que sei quem é o ladrão que está roubando as casas do condomínio!
A senhora Daiane era uma moça de meia idade, com os fios brancos habilmente escondidos pela pintura dos cabelos. Usava um vestido e um bolero e trazia uma bolsa de uma marca cara. Tudo muito elegante.
Ao mesmo tempo em que não conseguia conter minha excitação – será que ela realmente havia conseguido descobrir o culpado? –, minha parte lógica me dizia que isso era impossível e que, como tanto acontece em investigações, ela estava apenas me trazendo informações que nada agregariam ao caso. De qualquer forma, comecei a tomar notas.
– Certo, dona Daiane. Explique para nós.
– A minha casa também foi roubada, uns dias atrás, mesmo com tudo trancado. Então, comecei a pensar quem poderia ser que conseguiria entrar na casa de todo mundo, roubar as coisas sem ser percebido e sair de fininho.
– Uns dias atrás… A sua casa é a 137? Do seu Eduardo?
– Isso! Ele é meu marido.
– Sim, realmente estive lá, não tinha nenhum sinal de arrombamento, nem nada.
– Pois então. Estava pensando como isso era possível e, daí, me veio essa conclusão. Só pode ser uma coisa!
Nós a encaramos, Isabella com um pequeno sorriso no rosto, eu ansiosamente avançando pela mesa em direção à mulher.
– Por favor, diga!
Ela estava aproveitando cada segundo daquela nossa atenção. Empertigando-se na cadeira, o pescoço e as orelhas sem joia alguma – afinal, haviam sido furtadas! –, ela ergueu o dedo.
– Acho que cada pessoa está roubando a própria casa!
Pude ver, pelo canto do olho, Isabella se movendo para conter o riso.
– Cada pessoa está roubando a própria casa? A senhora quer dizer que o Eduardo roubou suas joias e dinheiro?
– Sim!
– Mas, dona Daiane, eu não estou entendendo.
– Cada um está roubando sua própria casa, mas eles não são os culpados. O culpado verdadeiro é Henrique, o hipnólogo.
– Hipnólogo?
– Vou fazer um café – anunciou Isabella; conhecendo-a, sei que estava tentando sair do cômodo por não conseguir mais controlar a risada.
– Exatamente. O Henrique mora na casa 77, lá no fundo do condomínio. Ele atende várias pessoas do condomínio.
– Mas… Com hipnose?
– Sim.
– Para quê, exatamente? – indaguei, na minha ignorância.
Meu conhecimento de hipnose se restringia aos mágicos que se apresentam em palcos, fazendo as pessoas ficarem duras como pontes ou acreditarem que estão nadando, voando, seja o que for.
– Para o tratamento das mais diversas coisas. Não sei exatamente o que cada um trata, mas, Eduardo, por exemplo, trata de ansiedade, e a hipnose o tem ajudado muito no trabalho, nas reuniões com os chefes; ele sempre faz uma sessão antes de uma reunião importante. E, bom, eu estava vendo e… De todas as pessoas roubadas… Todas fazem hipnose com o Henrique.
– Certo… – respondi, pensativo, enquanto tomava notas. – Você acha que o Henrique hipnotiza as pessoas, para que elas possam… Furtar suas próprias casas?
– Exatamente! No meio da noite, quando ninguém vê… Quando estão dormindo… Elas levantam, pegam as suas coisas, saem de casa e levam para algum lugar!
Eu imaginei a cena; um exército de sonâmbulos hipnotizados, cada um pegando uma coisa em sua casa e levando para um determinado lugar. Não poderia ser a portaria, ou eu teria visto todos eles nas filmagens. Eles tinham de ir por dentro passando por locais não visualizados nas câmeras, em direção a outro lugar. Se fosse como ela tinha dito, faria mais sentido que todos levassem para a casa do hipnólogo. Assim que ela saísse, eu iria pegar meu mapa e dar uma checada se isso era factível.
– Muito bem, obrigado pela sua ajuda, dona Daiane.
– Você vai prender ele?
– Não, não é assim – respondi. – Eu não sou mais policial. Sou um detetive particular. Se realmente eu comprovar que há algum crime, aí, sim, devo notificar a polícia.
– Somente se comprovar? Uma suspeita muito grande não basta?
– Basta, mas, para isso, preciso no mínimo conversar com o sujeito, não é?
Ela insistiu ainda mais um pouco, eu deixei meu cartão, despedimo-nos e pouco depois Isabella apareceu com um bule de café e três xícaras.
– Oh, ela já se foi?
– Já. Obrigado – respondi, servindo-me de café. – O que você achou dela? Por que estava rindo?
– Ora, é tão óbvio! Você não percebeu?
– Não… Ainda não. Percebi o quê?
– Bem, tudo bem. Acho que talvez você deva conversar com este seu amigo, o hipnólogo.
– Você não acredita nele?
– Muito pelo contrário, eu acredito, sim. Hipnose funciona muito bem e tem sido um excelente método de tratamento para muitas doenças psiquiátricas e de difícil controle.
– Então, Isa!
– Mas, daí para hipnotizar os vizinhos tem um grande passo.
– Eu sei que é bizarro, mas nós já vimos tantas coisas bizarras na vida! – respondi, lembrando-me de todos os casos pelos quais já havíamos passado, sendo o do Frankenstein o pior deles. – Além disso, já excluí todas as outras possibilidades e não cheguei a conclusão alguma. Por mais implausível que seja, talvez esta seja a resposta!
– Você não considerou todas as possibilidades.
– Verdade, não. Pode ser que, como Dorothy, alguém tenha um chapéu que convoque macacos alados, e eles roubaram as joias!
– Você realmente citou o Mágico de Oz?
– Você citou um Pelúcio! – exclamei, exasperado.
Ela começou a rir.
– Talvez você devesse realmente conversar com o tal do hipnólogo e ver o que ele tem a dizer.
Apesar de ser uma pessoa ocupada, Henrique, o hipnólogo, conseguiu arranjar um horário para me receber e parecia mais do que disposto a me ajudar com o misterioso caso que tinha em mãos.
Entendi a parte que Isabella tinha falado sobre o uso de hipnose para o tratamento de doenças e tudo mais. Porém, Henrique parecia fazer o trabalho contrário, enchendo a casa de cristais, fontes, incenso, mandalas e catadores de sonhos. Era difícil chegar lá e não acreditar que seríamos encantados por ele de alguma forma.
– Vamos, sente-se, por favor, doutor André – disse ele. Ele se parecia muito com um monge budista: tinha a cabeça raspada, usava uma bata branca de linho, ou talvez algodão cru, não sei, e realmente parecia um guru vindo de alguma montanha indiana.
– Não precisa do doutor, pelo amor de Deus.
– Tudo bem, então. Gostaria de tomar um chá ou um café?
Fiquei seriamente preocupado de que houvesse alguma substância alucinógena nas bebidas e recusei.
– Na verdade, eu vim aqui apenas para uma conversa rápida. Tenho certeza de que você está ciente dos furtos que têm acontecido no condomínio.
– Sim – ele respondeu. Sua voz era calma e parecia que, se ele falasse por muito mais tempo, eu entraria em transe. – Mas que coisa, não? Você esperaria que fosse um lugar seguro…
– Me chamaram a atenção para um fato curioso. Parece que todas as famílias que foram furtadas têm ao menos um membro que é seu cliente.
Henrique me respondeu com um sorriso apaziguador.
– Bem, devem ser, mesmo. Afinal, eu atendo praticamente todo mundo deste condomínio.
– Como é?
– Não todo mundo, claro. Tem gente que ainda tem muito preconceito com a hipnologia. Mas, eu diria que ao menos 70% das casas já passaram ou passam em tratamento comigo. Talvez, até mais. Nunca me dei ao trabalho de checar.
Eu o encarei, surpreso.
– É, o marketing faz milagres. As pessoas ficam sabendo dos grandes efeitos da hipnose e logo vêm me procurar para os mais diversos tratamentos.
Eu permaneci o observando, sem saber o que dizer.
– Vejo que você ainda tem alguma resistência à hipnose. Eu lhe garanto, não tem absolutamente nada a ver com o que você viu no cinema. Nada de ficar balançando um disco preso em uma corda falando para você comprar Batom.
Eu não aguentei e ri; aquela era uma propaganda muito antiga!
– O que acha de fazer uma sessão teste, André?
– Como assim?
Ele olhou para o relógio que tinha na parede, um velho relógio cuco.
– Temos bastante tempo, antes do meu próximo cliente. Vamos, me diga: tem alguma coisa, algum trauma que você gostaria de trabalhar?
Eu parei para pensar por alguns segundos. Trauma?
– O que você vai fazer, exatamente?
– Só ajudá-lo com isso. Bem, uma sessão pode ser insuficiente, mas, quem sabe? Talvez, você goste, sinta algum efeito benéfico e queira continuar com o tratamento. Por que não?
Aquela reunião estava seguindo por caminhos estranhos; mas, de qualquer forma, Henrique não parecia suspeitar de forma alguma que alguém tivesse sugerido que ele hipnotizava pessoas para roubar joias.
Mas, e se ele realmente estivesse fazendo isso e conseguisse me hipnotizar para fazer algo do tipo?
A melhor forma de descobrir isso é tentar.
– Bom, eu… Perdi uma pessoa muito querida há alguns anos. Ela foi queimada em um… Incêndio. Foi algo intencional. Desde então, eu tenho muito problema com o cheiro de gasolina e com o clique de isqueiros.
Só de pensar nisso, eu senti calafrios; tinha de ficar nos postos de combustível sempre com os vidros fechados e não podia nem chegar perto de pessoas que fumavam.
– Ok, muito bem. Gostaria de me contar um pouco mais sobre isso? Vamos ver se conseguimos amenizar um pouco mais esse seu trauma.
Conversamos mais um pouco; depois de um tempo, ele recomendou que eu me deitasse em um divã e relaxasse.
– Ao contrário do que fazem nos filmes, não, você não vai dormir. Vai ficar acordado o tempo todo. Agora, vamos imaginar que você está em um lugar relaxante… Tem algum lugar que você gosta?
Eu imediatamente me lembrei de um chalé nas montanhas em que fiquei com Isabella, havia alguns anos.
– Muito bem, imagine-se neste chalé…
E assim foi a sessão de hipnose. Primeiro, ele trabalhou boas lembranças; depois, fez-me pensar no que me trazia trauma – especificamente, o barulho do isqueiro. E fomos trabalhando aos poucos, apenas com a mente, de uma forma que eu conseguisse controlar a ansiedade e o efeito que aquele barulho causava em mim. A hora passou em um piscar de olhos; e, quando dei por mim, Henrique falou que tinha concluído a sessão. Eu não tinha dormido em nenhum momento, e ele também não deu nenhuma daquelas ordens clássicas de filme. O relógio cuco me garantiu que o tempo passou de forma usual. E, por garantia, também, eu tinha deixado meu celular gravando o som, então, eu ainda pude conferir depois: tudo tinha corrido nos conformes.
– Como está se sentindo, agora?
– Mais relaxado – respondi. Era verdade.
– E sua ansiedade com relação ao barulho do isqueiro?
– Acho que diminuiu… Não me parece algo tão horrível.
– Vamos testar.
Em uma gaveta, ele pegou um isqueiro, do mesmo tipo que eu vira ser aceso, tantos anos atrás; inicialmente, eu senti a boca seca e um certo frio na espinha. Porém, no momento em que ele girou a rodela e a faísca saiu, acendendo a chama… Não foi tão horrível. Não, muito melhor do que isso; eu me senti muito, muito menos incomodado.
– Nossa! Isso foi inacreditável! – eu falei. – Diminuiu uns 60… Não, 70%!
– Impressionante, não é? E não é nenhum truque barato, não. Isso tudo é baseado em evidências científicas.
Ele olhou para o relógio cuco, que já estava para dar seis horas da tarde.
– Agora, André, fico à sua disposição, caso esteja interessado em continuar. Acho que podemos melhorar muito seu trauma com relação ao isqueiro e à gasolina. Podemos deixar sua vida mais normal.
Mais normal? Isso é impossível.
– Mas, infelizmente, preciso atender um cliente, agora.
– Ah, sim, claro! – respondi, levantando-me do divã.
– Se precisar de mais algo para a sua investigação… Sabe onde me encontrar.
Eu apertei a sua mão, genuinamente feliz.
– Obrigado, Henrique.
– Não há de quê.
Sai andando pelo condomínio com as mãos nos bolsos, olhando ao redor. Henrique morava relativamente longe de todos os outros; eu já tinha decorado o mapa. Os furtos haviam começado com as casas mais próximas da portaria e depois foram seguindo, sempre apontando para a casa dele. Ela, porém, ficava no fundo do condomínio, bem centralizada, então, qualquer coisa que viesse da portaria apontaria para lá. E, caminhando pelas ruas, fui observando as câmeras; era praticamente impossível que alguém conseguisse realmente pegar todas as joias e passar por todo o caminho até lá, sem aparecer em nenhuma câmera.
Pus-me a olhar as casas que haviam sido furtadas novamente; nada de especial, apenas aquelas casas características dos condomínios fechados: carros estacionados, brinquedos e bicicletas jogados. Àquele horário, o condomínio estava movimentado; enquanto as luzes se acendiam, carros chegavam do serviço, vans escolares deixavam as crianças, e alguns pequenos voltavam para casa com seus skates, bicicletas e patins, ou carregando bolas. Era hora de tomar banho, jantar e descansar para o dia seguinte.
O mistério, porém, continuava. Se o hipnólogo realmente era incapaz de enfeitiçar as pessoas daquela forma, quem poderia ter cometido aqueles roubos?
Cheguei à minha casa tarde, devido ao trânsito, ainda muito pensativo, ouvindo toda a sessão de hipnose sem encontrar absolutamente nada de errado.
– E aí? Como foi a sua reunião com o hipnólogo? – perguntou Isabella.
– Foi bem e mal ao mesmo tempo. Mal, porque, realmente, a hipótese de que ele enfeitiçou pessoas não faz o menor sentido.
– De fato – comentou ela.
– Por outro lado, eu testei a técnica.
– Ah, é?
– Sim, ele fez uma sessão experimental.
– E o que achou?
– Foi ótimo. Sério mesmo. Melhorou minha sensibilidade ao barulho do isqueiro.
– Que bom! – disse ela, dando-me um abraço. – E quanto ao culpado? Algum sucesso?
– Não… Sem ideias.
Ela sorriu.
– Estava checando seu mapa… E a minha teoria realmente se encaixa.
– Você sabe quem é o culpado?
– Ah, mas é claro. Aquela tal de Daiane… Ela matou a charada.
Revirei os olhos; para variar, Isabella estava vários passos à minha frente. O que naquela mulher entregara o culpado?
– Foi ela? – perguntei, ansioso.
– Acho que o hipnólogo podia ter trabalhado essa sua ansiedade! – ela falou, rindo. – E, talvez, essa sua preocupação de achar que eu estou sempre à sua frente – ela tinha lido minha mente? – André, você é um detetive genial. Só precisa prestar um pouco mais de atenção aos detalhes. Se confiasse um pouquinho mais em si mesmo…
Eu dei de ombros; nunca fui muito bom nisso. Uma má relação com um pai, um casamento frustrado, essas coisas acabam com você e sua autoestima.
– Acho que gostaria de ver esse seu condomínio amanhã… – ela disse. – Para confirmar minha teoria. Poderia me mostrar?
– Tudo bem! Amanhã de manhã?
– Seria perfeito – ela falou. – Agora, o que acha de sair para jantar e espairecer um pouco a cabeça?
No dia seguinte, fomos logo cedo ao condomínio. Caminhamos pelas suas ruas, observando cada uma das casas, ao que Isabella não faziam nada além de “Uhm” ou sinais de assentimento com a cabeça. Chegamos a uma casa que ela parou e olhou demoradamente.
– Esta é a casa 137, da Daiane e do Eduardo, certo?
– Exatamente.
Era impressionante que ela havia decorado o mapa e todas as 12 casas que já haviam sido furtadas.
– Isso é muito interessante – ela comentou.
Eu observei; não havia absolutamente nada de excepcional. O que parecia ser um carro novo, bicicletas de criança na garagem, um skate… Enfim, aquela bagunça usual de casas de família.
De repente, ela bateu à porta; não foi sem surpresa que a dona Daiane, destrancando-a, encontrou-nos à soleira.
– Bom dia! – ela disse. – Precisam… Precisam de alguma coisa?
– Bom dia, dona Daiane. Será que de repente eu poderia ver o seu quintal?
– Meu quintal?
– Sim. Para ajudar na investigação.
– Ahm… Ok.
Seguimos por um corredor lateral até o quintal da casa dela, que terminava em um grande muro, com um barranco de terra, que cercava todo o condomínio. A impressão que dava é que, durante a construção, haviam escavado ali para nivelar o terreno, e o muro permitia separar de algo que havia mais acima, as construções do outro lado. Era uma faixa estreita, de dois metros, acidentada, com mato crescendo e algumas árvores. Este pequeno pedaço de terra era geralmente fechado pelos moradores com cercas ou grades, por questão de segurança ou para evitar que as crianças ficassem se sujando na terra. No caso da casa 137, havia uma grade da altura de uma pessoa, com um pequeno portão de ferro. Neste espacinho, a dona Daiane cultivava uma pequena horta, no pequeno corredor nivelado.
Este pedaço era separado da casa ao lado não por um muro, mas por uma cerca viva.
Surpreendendo a todos, Isabella subiu na pequena mureta e, apoiando-se no portão, ergueu-se no muro, olhando em volta.
– Ei! – exclamou Daiane, surpresa.
– Isa, cuidado – eu falei.
Ela desceu momentos depois, raspando as mãos sujas de terra.
– Muito bonita a sua horta – comentou, por fim.
– Obrigada – disse a dona da casa, surpresa.
Por que raios ela estava se pendurando no muro?
– Mas, parece que alguma coisa passou por cima dela aqui, não?
– Ah, foram os saruês! Cretinos! Passam a noite inteira para cima e para baixo, procurando comida. De vez em quando, estragam tudo o que plantei! Já tive que refazer a horta várias vezes. Fechar com a cerca ajudou, mas eles conseguem andar por tudo!
Ela assentiu.
– Que coisa, né! Até parece que a terra originalmente era deles! – comentou, não sem conter um sarcasmo, que Daiane não conseguiu entender.
– E então? Meu quintal conseguiu ajudar em alguma coisa?
Ela encarou a minha esposa com os braços cruzados e aquele ar petulante.
– Ah, sim, com certeza – ela respondeu, tranquilamente. – Ajudou muito, na verdade.
Eu a observei com surpresa.
– Acho que podemos ir, André. Muito obrigado, dona Daiane.
Eu agradeci, também, e a anfitriã nos encaminhou porta afora. Alguns momentos depois, quando estávamos longe o suficiente, ela se virou para mim:
– Quer pegar o seu culpado?
– Claro que quero! – respondi.
– Então, vamos fazer o seguinte…
No dia seguinte, à noite, eu me sentei cuidadosamente na varanda do quintal da casa 136, após ter pedido permissão ao seu dono, um idoso que foi muito gentil. Com as luzes apagadas, enrolado em uma coberta, eu estava praticamente invisível. E, de fato, quando era algo em torno de meia noite, eu vi alguma coisa passando, saindo da casa 137 e seguindo pela encosta do muro da casa 136. Na escuridão, pareceu-me mais um daqueles enormes saruês que viviam passeando por lá. Será que Isabella estava certa e se tratava, de fato, do Pelúcio, aquele animal fantástico que vivia roubando coisas preciosas?
Mas, seguindo a recomendação dela, eu permaneci onde estava; pouco tempo depois, um novo movimento nos arbustos da cerca viva, e o mesmo ser passou de volta, pela encosta.
Eu já estava preparado; quando ele passou por mim, de volta à casa 137, eu me levantei e subi em uma pequena escada, que havia deixado preparada no muro. E, olhando por cima dela, com uma câmera acoplada à minha cabeça, eu consegui filmar o nosso pequeno Pelúcio passando pelo portão.
Eu acendi uma lanterna, sem falar absolutamente nada, e o serzinho parou, assustado. De súbito, pulei da escada pelo muro, de volta para o quintal da casa 137.
– Eu…
Eu não falei absolutamente nada; não queria chamar a atenção de mais ninguém na casa.
– Shh! Fique quietinho – murmurei para ele. – Venha aqui.
Puxei-o para um canto da cerca, com a lanterna apagada, e lá ficamos sentados, esperando, esperando, até que…
Quando era em torno de uma hora da manhã, Eduardo saiu na escuridão.
– Derek! – chamou. – Derek! Cadê você, filho?
Eu soltei o menino para que ele fosse em direção ao pai, e lá se foi ele, vestindo a sua capa de pelos brancos, parecendo ainda um saruê gigante.
– Por que se atrasou? Aconteceu alguma coisa?
Ele, ainda sem conseguir falar, apenas apontou para onde eu estava; Eduardo apontou a lanterna para mim, e eu apontei de volta.
– Chega, Eduardo! – anunciei. – Descobrimos seu plano!
– Como é?
Segurando a lanterna com uma mão, comecei a esvaziar meus bolsos, repletos de joias e dinheiro da casa 134.
– Isso aqui estava tudo com o seu filho, Derek. Que está indo periodicamente, à noite, furtar as casas dos seus vizinhos!
– O quê? Isso é loucura! Até onde me consta, estava tudo no seu bolso!
– Sim, depois que eu confisquei dele.
– O senhor está armando para mim, detetive?
– Fique tranquilo, está tudo filmado aqui. E, na verdade… Estava passando também lá no salão de festas do condomínio, o que quer dizer que, já, já…
Eu tinha avisado a um amigo policial sobre o que estava tramando, e ele, com toda a boa vontade, havia concordado em participar.
Como meu cliente era o seu Marcos, eu lhe devia uma satisfação sobre o caso e havia colocado a minha câmera passando na televisão, no salão de festas, onde ele e dois policiais assistiam a tudo. Assim, pouco depois de eu ter terminado minha frase, alguém tocava a campainha da casa; meu amigo, pedindo para falar com Eduardo. Dona Daiane não teve outra opção, a não ser deixá-lo entrar, junto com seu colega. Marcos permanecera no salão de festas, assistindo a tudo, pelo que ele me contou depois.
– Aqui está – falei, entregando os produtos do furto para meu amigo. – E, bom… Já está tudo filmado. Mas, se precisar de mais algum esclarecimento, estou à disposição. Até mais, Rogério.
Voltei para casa pouco depois, onde fui me deitar, satisfeito.
– Conseguiu? – perguntou Isabella, quando eu cheguei; ela tinha ficado me esperando, lendo um livro, como de costume.
– Consegui, exatamente como você previu.
Ela riu, dando de ombros.
– Me ajuda a explicar as coisas para o Marcos, amanhã?
– Claro.
– Então, doutor André, como foi que você descobriu que eles eram os culpados?
Eu sorri; já tinha desistido de pedir a ele que não me chamasse de doutor.
– Vou dizer, se fosse só por mim, acho que não teria descoberto. Isabella me ajudou muito.
Ele a observou, surpreso.
– Realmente, já ouvi falar muito bem da doutora. O Anatomista, O Artista e tantos outros…
Ela aquiesceu com a cabeça, como se fizesse uma mesura.
– O que chamou a atenção na verdade foi a dona Daiane vindo com aquela teoria estapafúrdia do hipnólogo – ela comentou.
Abriu um mapa sobre a minha mesa e mostrou para nós.
– Veja aqui. Na rua da casa 137, nós temos em torno de 50 casas. A casa 77, do Henrique, fica bem aqui, no final de outra rua paralela, bem encostada ao muro. É como se fosse uma casa bem central e todas levassem até ela. Os furtos estavam acontecendo em casas aparentemente aleatórias, mas elas tinham algo em comum: estavam todas no mesmo lado da rua da casa 137. Ou seja: eram todas conectadas pelo muro e pelas cercas vivas.
– A rota perfeita para fugir com os furtos, sem chamar a atenção das câmeras! – exclamou Marcos.
– Exatamente – respondi. – Daiane nos disse que todas as casas furtadas tinham pessoas que eram atendidas por Henrique. Só que, na verdade, a grande maioria das casas em algum momento já foi atendida por ele.
– Sim, ele é meio que uma celebridade, aqui. Todos gostam muito dele. Até eu trato minha ansiedade com ele!
Ele parou por alguns instantes.
– Algum motivo para Daiane ter tentado incriminar justamente o Henrique?
– Não – falei. – A ideia surgiu, acredito, após ela fazer uma sessão. Depois, ele me deu algumas informações: ela estava fazendo tratamento para ansiedade e estava particularmente nervosa naquelas semanas, segundo ela, pelos roubos. Ela veio falar comigo no dia seguinte à sua última sessão. Foi fácil fingir que tinha sido roubada.
– Certo, está fazendo sentido… Agora, como vocês sabiam quando seria o próximo roubo e qual seria a próxima casa?
Eu apontei o mapa para ele.
– Se estava vindo de lá para cá, e a última casa era a 137, sabíamos que ele teria de seguir diminuindo os números.
– Mas, como você sabia que ele não ia entrar na 136? Porque foi genial o que você fez! – exclamou Marcos.
– Isso é tudo mérito da minha esposa. Ela que é o verdadeiro gênio! – comentei.
Ela abanou a mão.
– Não foi nada. Eu simplesmente notei uma coisa que vocês não tinham notado: todas as casas furtadas tinham crianças. As outras eram relativamente protegidas. Como o morador da casa 136 era um idoso, ele estava a salvo, assim como o da 135, mas não o da 134, que tinha duas crianças. Além disso, os roubos aconteciam com uma regularidade que indicava algo como um horário específico, talvez por uma agenda, como os horários de atividades extracurriculares, ou algo do gênero. Todas segundas, quartas ou sextas.
– Mas, por que crianças?
– Bem, o nosso Pelúcio era uma criança – comentou Isabella. Marcos claramente não entendeu a referência. – Crianças fazem amizade e vão uma à casa da outra, especialmente nestes condomínios que ficam com as portas sempre abertas. Assim, nosso Pelúcio conseguia entrar na casa dos outros com facilidade e observar suas posses. Acho que eles vêm planejando isso há muito tempo.
– Gente, isso é inacreditável! Imaginem… Envolver os filhos…
Isabella deu de ombros.
– Eles estavam realmente precisando de dinheiro. Sua casa estava caindo aos pedaços… Mas tinham um carro novo na garagem.
– Que compraram com dinheiro roubado!
– Muito provavelmente. E, como descobrimos depois, com o síndico, também estavam devendo muitas parcelas do condomínio. Acho que foi a grande oportunidade de resolverem suas dívidas.
– Pena que tinha um André no meio do caminho! – exclamou ele, feliz. – Bem, muito obrigado, doutor André! Com isso, eu agora consigo solicitar o pagamento do seguro.
– Não conseguiram reaver as suas joias?
– Não, nenhuma delas. Eu fui um dos primeiros a ser roubado… Provavelmente, está tudo investido naquele carro! Não sei se algum dia vou conseguir reaver…
Acertamos um ou outro detalhe, ele fez o pagamento pelo nosso serviço e se foi. Isabella e eu ficamos sozinhos novamente, e eu a olhei, sorrindo.
– O que foi? – perguntou.
– Não sei o que seria de mim sem você.
– Minha pista do Lupin não ajudou?
– Realmente, não.
Ela puxou um dos livros da estante e me apresentou um conto em que Lupin contava de seu primeiro roubo, quando criança.
– A única pessoa que poderia passear livremente, sem chamar a atenção, conseguiria passar por lugares apertados, frestas de janelas destrancadas e, ao mesmo tempo, tinha o potencial de conhecer intimamente a casa de outras pessoas. Exatamente como mostrado neste conto. Você vê, as crianças chamam tão pouco a atenção que, em todos esses dias que você passou lá, você nem se deu conta delas!
– Mas, quem iria pensar que uma criança poderia fazer algo assim?
Ela ergueu as sobrancelhas.
– Alguém que tenha lido os contos de Arsène Lupin! Afinal, nem só de animais fantásticos é feita a vida… Às vezes, são apenas crianças fingindo ser saruês para enganar as câmeras!
![](https://otrancarimas.drdavidnordon.com.br/wp-content/uploads/2021/09/Dr.-David-Nordon-Ortopedista-Infantil.jpg)
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais