O Incidente da Classe Executiva
Complicações médicas durante voos não são acontecimentos comuns, mas, ao mesmo tempo, também não são ocorrências de todo raras. Contudo, é de concordância geral entre médicos que basta haver um desta classe no avião, e as chances de ocorrer alguma complicação aumentam substancialmente. Sendo Isabella uma médica de tão grande qualidade, a partir desta regra não seria de todo improvável que algo realmente ocorresse no voo em que ela estava presente.
E, para ser mais preciso, na nossa viagem de ida para a nossa lua-de-mel.
Estávamos ambos em assentos na classe executiva, ela do lado da janela, eu do lado do corredor, e nada de excepcional havia ocorrido no voo; era apertado como de costume, a alimentação era insuficiente, os filmes eram ruins e, depois de um tempo, todos estavam cansados demais para qualquer coisa. Contudo, enquanto a maioria dormia – eu inclusive, ainda cansado dos eventos do dia anterior –, a minha esposa estava com o rosto afundado em um livro sobre a vida de pintores da Renascença e Idade Média, escrito por um contemporâneo de Michelangelo, Da Vinci ou qualquer um que o valha.
Antes de aterrissarmos, serviram-nos um novo lanche, de grande sustância – um pacote de salgadinhos, um copo de suco e um guardanapo – e logo começamos a tomar as posições e fazer as medidas para parar no aeroporto, na França.
O avião pousou, começou a taxiar, e logo começou o rebuliço por todo o avião, com pessoas levantando, falando em diversas línguas, pegando suas bagagens nos compartimentos logo acima. Isabella, contudo, permanecia inexorável em seu livro e continuou desta forma até as portas serem abertas, e as pessoas começarem a sair.
Eu mesmo estava levantando para pegar as nossas bagagens de mão, quando percebi um alvoroço algumas poltronas à frente; ouvi os gemidos de um homem, os gritos de uma mulher, vi pessoas se afastando, ele sendo colocado no chão, e logo gritos por todo o avião, nas mais diversas línguas, perguntando se havia um médico a bordo.
Eu olhei para ela, que permanecia tão concentrada no livro como se estivesse trancada em um quarto à prova de som; sabia que ela geralmente ficava assim quando estava entretida e igualmente me lembrava que, antes de sairmos, ela havia prometido que não pensaria em nada de medicina, até que estivesse de volta ao trabalho, na semana seguinte.
Perguntaram novamente, desesperados, e eu tive de chamá-la, tocando em seu ombro. Porém, no momento em que me olhou, indagando o que havia acontecido, alguém se levantou do outro lado do avião e saiu derrubando pessoas de volta para suas poltronas, afirmando em francês que era médico.
Eu sabia um inglês mediano e, de francês, não sabia dizer nada além de Au revoir e escargot, de modo que compreendi apenas parcialmente os diálogos, e Isabella teve de me traduzir tudo, fala por fala, antes de poder pôr no papel. Vou, contudo, descrever como ocorreu, ignorando as minhas dificuldades de tradução.
Ela pareceu desperta pelo homem gritando sua profissão e logo se pôs de pé, também, guardando o livro na mala de mão que estava comigo. Em seguida, caminhou pelo corredor em direção ao homem, igualmente dizendo que era médica, e chegou quando o outro já estava ajoelhado, examinando o homem deitado.
Ele estava se tornando progressivamente roxo, esforçando-se loucamente para respirar, suando desesperadamente e levando a mão à garganta. Era moreno, de meia idade, com diversas mechas brancas nos cabelos lisos e curtos. Alto, era de porte astênico e possuía uma pequena barriga.
– É TEP! – o médico gritou, referindo-se a tromboembolismo pulmonar. – Preciso de uma máscara de oxigênio e remover este paciente daqui o mais rápido possível.
Isabella parecia o oposto do homem; enquanto ele se desesperava diante dela e pessoas corriam por todos os lados, ela se abaixou, observou algo no piso do avião, pegou um pacote de salgadinhos que estava aberto e parcialmente comido, cheirou um deles, provou seu gosto e, em seguida, enquanto todos a encaravam com curiosidade, levantou-se.
– Preciso de uma faca ou um estilete e um canudo duro ou uma tampa de caneta. Agora! – disse, em francês e, em seguida, em inglês. Uma aeromoça correu estabanadamente, enquanto máscaras de oxigênio caíam sobre todas as poltronas. – Todos os passageiros, sentem-se! E ninguém sai deste avião. Não deixem ninguém desembarcar!
Dito isto, ela se virou para a mulher que o acompanhava; era uma senhora de meia idade, magra, com os cabelos ruivos em um corte chanel, os olhos azuis e o rosto com pouca expressão, mostrando aplicações recentes de Botox.
– Ele usa alguma coisa para asma?
– Ele… Tem uma bombinha.
– Pegue para mim, agora.
Indecisa, a mulher se levantou e, pegando a mala de mão mais próxima, rapidamente a abriu e entregou para a médica o pequeno aparelho. Ela, por sua vez, agitou-o, colocou na boca do homem e mandou que aspirasse com força, conforme apertava. Fez isso repetidas vezes, enquanto o estilete não chegava.
– Ele tem alguma outra?
– Tem essa aqui.
Ela tomou a outra em mãos, girou, no que se ouviu um barulho, como se um comprimido se quebrasse, e mandou que o outro aspirasse novamente. O homem não parecia estar melhorando, mas, ao mesmo tempo, não estava piorando. Roxo como uma berinjela, respirava rápida e superficialmente e parecia que logo não aguentaria mais.
Ela puxou a máscara de oxigênio para perto, colocou-a no rosto do homem, olhando ao redor na expectativa da aeromoça que não voltava.
– Olhe, madame, eu acho realmente que este homem deve ser removido para um hospital…
– Que ele deve, sem dúvida.
– E tratado imediatamente para TEP.
– Isso, não. O que ele precisa… Ah, sim, conseguiram o estilete? Ótimo. E o canudo? Ah, obrigada. Senhor… Isso vai doer um pouquinho, mas garanto que o senhor vai se sentir melhor. Fique tranquilo.
Respirando com muita dificuldade, ele parecia disposto a qualquer coisa, contanto que voltasse ao normal. Isabella me pediu que segurasse a cabeça dele esticada, palpou o seu pomo de Adão e, ignorando totalmente a surpresa das pessoas ao redor, passou o estilete transversalmente a ele.
Para minha surpresa, não saiu muito sangue, só um pouco que logo escorreu pelas laterais do pescoço do homem. Ela continuou a passar o estilete, e eu pude ouvir o homem tossindo e tentando se remexer, em vão; o médico, apesar de não concordar com a conduta, segurava suas duas mãos. Observando se já estava bom, ela introduziu o canudo perpendicularmente à incisão e, em seguida, inclinou-o, para que ficasse preso dentro da traqueia. Em poucos segundos pude ouvir o ruído de uma respiração normal, e o homem se tornou menos aflito. Em menos de um minuto, recobrou sua cor, e logo já estava bem o suficiente para se sentar.
– O senhor trabalha para a Microsoft? – indagou, observando a mala de mão da esposa.
Foi ela quem respondeu por ele.
– Sim.
– Tem mais alguém da firma neste voo?
– Tem alguns colegas de trabalho dele…
– Tem algum colega que seja bastante próximo da família? Que tenha algum cargo semelhante, ou seja subordinado?
– Tem o Leopold, é um grande amigo nosso… – ela se levantou, buscando, com os olhos, o colega. – Leopold?
Do outro lado, alguns responderam que ele já havia desembarcado com os outros. Isabella se virou para a aeromoça que lhe trouxera o estilete e a encarava, aflita.
– Avise o aeroporto para segurar este Leopold e todos os outros que já desembarcaram. Devem ser todos interrogados. Tivemos uma tentativa de homicídio, aqui.
As pessoas no avião a encaravam com surpresa.
– Ah, e a senhorita também – ela falou, apontando para uma aeromoça nova, loira, que estava na outra ponta do avião, observando-os à distância. – Afinal, foi você quem entregou os lanches deste lado, não?
Ela empalideceu.
– E quanto a você, doutor… Sabe conduzir um caso de reação anafilática a frutos do mar?
– Sei – ele respondeu, prontamente.
– Então, o paciente é seu, já que, creio, eu não posso exercer medicina neste país.
Os socorristas entraram pouco depois e levaram o homem em uma maca, o médico ao seu lado, ditando ordens dos medicamentos a serem injetados; todos os outros, enquanto isso, encaravam a minha esposa, que teria voltado para o seu livro, como se nada houvesse ocorrido, se a outra não lhe perguntasse:
– Como você sabia?
– O quê?
– Tudo! – exclamou. Pelo avião, outras pessoas concordaram com a pergunta, e ela olhou ao redor.
– Bom… Quando eu vi o seu marido passando mal, a primeira ideia que eu tive foi obviamente de um TEP, que é a afecção mais comum em pessoas que ficam muito tempo sentadas em um avião. No entanto, a apresentação do seu marido era mais compatível com uma reação alérgica. As vias aéreas na reação alérgica podem se fechar, e ele fica sem respirar. Daí a importância de fazer a cricotomia, que é aquele corte que eu fiz na garganta dele.
– E essa história de tentativa de assassinato? – alguém da empresa indagou.
– Bom, vejam este pacotinho de salgado – ela disse, tomando-o em mãos. – Do lado de fora, está escrito Bacon, mas, do lado de dentro… – ela tirou um e o balançou à sua frente. – Camarão. Por que razão haveriam entregado para um homem alérgico a camarão um salgadinho de sabor camarão com embalagem de outro sabor? Ora, muito mais provável que uma grande coincidência, eu imaginaria uma tentativa de homicídio.
– E por que o Leopold? – outro perguntou, injuriado; deveria ser amigo dele.
– Bom, teria de ser alguém próximo o suficiente da família para saber que ele era alérgico a camarão. Alguém aqui sabia disso?
Todos balançaram as cabeças.
– E, além disso, alguém que estivesse em um cargo equivalente, competindo com ele para ascensão, ou em um cargo inferior, querendo tomar o seu lugar.
– Os dois têm o mesmo cargo na empresa e estão disputando para tomar o lugar do CEO… – a esposa murmurou.
– Quanto à aeromoça, que deve ser a próxima pergunta de vocês, era óbvio; deveria estar mancomunada com o Leopold para lhe entregar o salgadinho específico. O que, contudo, dada a sua expressão, conforme explico toda esta história, provavelmente não era esperado. O que ele falou para você?
Todos os olhares se viraram para a aeromoça, que estava branca como leite, na outra ponta.
– Ele pegou um salgadinho para si, me deu um de bacon e falou para dar para o passageiro deste assento, porque ele preferia esse sabor… – ela respondeu. – Nunca imaginei que fosse acontecer isso! Eu não sabia! Não sabia!
E começou a chorar de desespero; dentre os passageiros, alguns se compadeceram, outros não puderam deixar de imaginar uma cumplicidade entre os dois, informação que, quando chegou ao fundo do avião, já os havia transformado em amantes.
Repentinamente, o piloto soltou uma notícia pelo alto-falante:
– A polícia mandou avisar que o senhor Leopold foi capturado ao entregar o seu passaporte para entrar no país e está sendo levado para interrogatório.
Por toda a classe executiva, pessoas deram vivas e bateram palmas. Isabella sorriu, aceitou os cumprimentos e parabenizações e, vendo que ainda teria de ficar um bom tempo esperando no avião, até que tudo se resolvesse, tomou seu livro novamente e voltou a ler.
As informações sobre o que acontecera foram passadas adiante e, menos de uma hora depois, com a confissão de Leopold, todos foram liberados. Saímos do avião sob uma nova salva de palmas, com a notícia de que o paciente passava bem e já estava fora de perigo.
Enquanto pegávamos nossas malas, observei minha esposa, que estava tranquila como se nada houvesse ocorrido. Ela percebeu a curiosidade em meus olhos e logo me perguntou:
– O que você tá pensando?
– Eu queria saber… Como que você sabia que ele tinha asma?
– Foi um chute de sorte – ela respondeu, rindo; tentou pegar sua mala da esteira, mas era pesada demais e eu a ajudei, colocando-a no carrinho. – Ele teve uma reação muito grave para tão pouca exposição a frutos do mar. Eu imaginei que ele fosse, então, uma daquelas pessoas atópicas, propensas a alergias. E, sendo propenso a alergia, grandes chances de ter asma e ter uma bombinha de bolso.
– E isso ajudou?
– Com certeza. Não era o melhor medicamento, mas foi a melhor coisa que pudemos fazer, na hora. Bom, agora que estamos com tudo aqui, que tal aproveitarmos a nossa semana em Paris? Tenho uma lista de coisas para fazer e eu tinha prometido para você e para mim mesma que eu não ia pensar em medicina até voltar ao Brasil. Eu sorri e a abracei, dando-lhe um beijo na cabeça. Fomos juntos, caminhando vagarosamente pelo enorme aeroporto, totalmente alheios ao que acontecia ao nosso redor, com as centenas de pessoas de diversos países a circular, com seus carrinhos, malas e máquinas fotográficas.

O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais