O incidente do caminhoneiro caído
Era terça-feira de manhã, e eu estava tomando café com Isabella em sua padaria preferida, Dona Deola, no bairro de Perdizes. Fazia já alguns meses que ela havia se mudado de volta para São Paulo e reassumido o seu posto do IML, além do cargo de professora de patologia na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Ela ainda reclamava do trânsito, do barulho e da poluição da cidade, mas o fato de ter conseguido um apartamento barato em um dos bairros mais agradáveis havia conseguido tornar o que deveria ser uma constante em apenas um comentário ocasional.
Foi ela quem me chamou a atenção para um caso que, até então, eu mesmo não havia dado qualquer importância.
– Você viu a história deste homem? – ela perguntou, me apontando para uma notícia no jornal.
– Não, acho que não…
– Dê uma olhada e me diga o que acha.
Eu peguei o jornal e li:
“Homem encontrado caído a 200 metros de caminhão abandonado”.
“Na manhã de ontem, um homem foi encontrado caído a 200 metros de seu caminhão, na Marginal Tietê, na altura da ponte do Piqueri. O homem, que foi identificado como Marcos Silva, 57 anos, apresentava escoriações nos braços e pernas e cortes profundos na cabeça. O seu caminhão, que transportava uma carga de arroz, estava algumas centenas de metros à frente, parado contra uma parede que foi parcialmente avariada. Passantes afirmam que o fato ocorreu às cinco horas da manhã, mas ninguém soube especificar exatamente o que aconteceu. A polícia suspeita que se trate de um caso de assalto seguido de sequestro, tendo o homem sido arremessado para fora do caminhão pelos assaltantes em plena avenida, e posteriormente atropelado por outro veículo, diante das lesões encontradas no corpo. Do caminhão, nada foi levado. O paciente foi resgatado pelo SAMU e não corre risco de morte”.
– É, hoje em dia não dá para confiar em nada, nem em ninguém. Imagine, nem os caminhoneiros, às cinco da manhã, escapam de assaltos!
– Você não achou nada estranho nesta história?
– O que tem de estranho? Isso acontece o tempo todo!
– Pense comigo: se assaltantes realmente tinham sequestrado o caminhoneiro e pretendiam cometer um assalto, por que não levaram nada do caminhão? E mais; por que o caminhão ficou parado logo adiante?
– É possível que, quando viram o que aconteceu, os assaltantes pararam o caminhão e desistiram do roubo. Acontece, também. Outro dia mostraram na televisão um caso parecido.
Isabella balançou a cabeça.
– Se tivessem parado o caminhão, ele não estaria ao lado de um muro parcialmente avariado. Estaria devidamente estacionado de alguma forma. Mais provavelmente, teriam deixado no meio da pista. Ou, então, o que seria mais provável, fugiriam o máximo que pudessem com o caminhão, uma vez que já estavam lá dentro. Sem mencionar que um caminhão com carga de arroz não é de interesse para nenhum ladrão.
– Poderiam usar o caminhão para levar maconha. Foi apreendido um carregamento de milho com meia tonelada de maconha escondida na semana passada.
Ela tomou mais um pouco de suco de laranja e terminou o seu mamão papaya, antes de falar novamente.
– Eu passei ontem pelo local. O trânsito estava um inferno, para variar, e eu tive um bom tempo para observar. Tinha várias marcas no chão, como se o caminhão estivesse acelerando e freando repetidamente. Como se estivesse tentando fugir de alguma coisa.
– Você acha que foi uma perseguição?
– Eu tenho algumas hipóteses. Mas não este tipo de perseguição que você está pensando. Especialmente porque, se fosse, por que ele pularia do caminhão? Ele ficaria em desvantagem. Não.
Ela terminou de tomar o suco, dobrou o jornal e o pôs debaixo do braço.
– Bom, o paciente está internado no Hospital das Clínicas. O que você acha de ir comigo falar com ele? Você pode se atrasar um pouco para o seu trabalho?
– Será um prazer – eu respondi. Não perderia aquilo por nada. Que tipo de perseguição seria aquela, que não uma perseguição comum? E o que ela estava vendo, que eu não estava? Seria possível que tudo aquilo havia ocorrido somente por uma causa médica?
Em pouco tempo estávamos na viatura, indo para o hospital. No caminho, ela colocou a rádio na Cultura FM, como era seu costume, e ficou um longo tempo discursando sobre os diversos tipos de piano, órgãos e até mesmo cravo, que eu, pessoalmente, até então nunca havia ouvido falar.
– Usavam muito o cravo em músicas do período barroco. Veja, por exemplo, nesta parte aqui: está escutando o cravo lá no fundo?
Eu disse que estava, só para não parecer desinformado, mas, na realidade, não conseguia perceber a menor diferença. Para mim era tudo um bando de violinos. Ou violoncelos, não sabia a diferença entre eles também.
O Hospital das Clínicas é o maior hospital de toda a América Latina; quando entrei lá pela primeira vez, fiquei totalmente perdido. Nas vezes seguintes, também, e passaram-se longos anos até que eu conseguisse me orientar de forma aceitável lá dentro. Eram tantos lugares, tantos andares e tantos quartos, que até hoje eu não sei como os médicos conseguem ir de um lugar ao outro sem se perder.
Isabella, contudo, parecia possuir um senso de direção nato; mais de uma vez, nas ruas, ela já havia me mostrado como ela conhecia todas as ruas e ruelas, todos os desvios e, especialmente, como, mesmo perdida, à noite, ela conseguia chegar sem ajuda nenhuma aonde ela queria.
Paramos no quarto do paciente quando eram oito e meia da manhã; ele estava deitado em uma cama, em um quarto coletivo, com o braço engessado e os ferimentos mais graves suturados. A patologista o observou por apenas alguns instantes, nos quais eu tentei absorver tudo o que havia no quarto: na cabeceira ao lado de sua cama, uma Bíblia, uma caixa de medicamentos e um rádio. No chão, o seu par de chinelos, ao lado da cama. E, quanto ao paciente em si, não aparentava ter nada de especial: gorducho, talvez beirando a obesidade, de rosto igualmente rechonchudo e relativamente pletórico. Havia alguns cortes no couro cabeludo, e a face estava inchada e escoriada em alguns pontos, de um lado só.
Isabella cumprimentou o paciente, nos apresentou e pegou a sua mão não engessada, olhando-a detalhadamente.
– Sua mão dói muito?
– Quase todos os dias, doutora.
Eu tentei observar; algumas juntas estavam inchadas, e os dedos pareciam levemente desviados para o lado.
– E há quanto tempo você está tomando aquele corticoide? – ela perguntou, apontando para a mesinha ao lado.
– Há uns par de meses.
– Tomou injeção de corticoide?
– Umas par de vez, também.
– Certo… E, me diga uma coisa, seu Marcos. O senhor começou a ver umas coisas estranhas quanto tempo depois de começar os corticoides?
O homem arregalou os olhos, sem acreditar no que havia acabado de ouvir, e depois lançou olhares para os lados, como se para se garantir de que os outros também não haviam ouvido. Eu mesmo encarei Isabella de forma relativamente indignada; sua pergunta me pegara de surpresa não somente pelo seu conteúdo, mas também pela sua subtaneidade. O que ela queria dizer com aquilo?
– Acho bom o senhor me falar, seu Marcos, porque isso tem tratamento. É só trocar o remédio que o senhor usa.
Ele suspirou um pouco mais aliviado depois desta frase.
– São demoniozinhos que o senhor vê?
Ele assentiu, meio sem jeito; ao lado, todos os pacientes o encaravam.
– Mas pode ficar tranquilo, seu Marcos. Eles não são de verdade. É tudo por culpa do remédio.
– Eu comecei a ver uns dias atrás… Mas eu achei que era coisa da cabeça, sabe? Mas foi ficando pior…
– Fique tranquilo – ela falou. – Aposto que ninguém tinha perguntado isso antes, não é?
Ele concordou novamente.
– Eu vou avisar o seu médico. Até logo, seu Marcos, e melhoras para o senhor.
Eu igualmente o cumprimentei e saí do quarto logo atrás dela, profundamente curioso. Sabia, contudo, que ela gostava bastante de fazer aquilo; não sei se a sua intenção era sempre me deixar mais e mais curioso, ou se ela apenas ficava esperando para ver se eu conseguia resolver o caso por mim mesmo. Só sei que, quanto mais complicado o caso, mais tempo ela levava para me contar.
Ela passou os próximos minutos procurando o médico responsável e, antes que o encontrasse, eu fui chamado pela central. Tive de sair e fiquei ocupado pelo resto do dia; só pude conversar novamente com ela no dia seguinte, no café da manhã.
– E então, chegou a alguma conclusão sobre o nosso caminhoneiro caído?
Eu balancei a cabeça; tinha até tentando procurar alguma relação entre corticoides e delírios no Google, mas havia sido vencido pelo cansaço e pela falta de tempo.
– Eu consegui entender mais ou menos o que aconteceu. Ele tinha alguma doença nas articulações das mãos, e por isso ele tomava corticoides. E os corticoides fizeram ele ter esses delírios, e, vendo os demoniozinhos, ele se assustou, tentou fugir e pulou do caminhão.
Ela assentia, enquanto tomava do seu suco.
– Agora, como você chegou a essa conclusão, eu não faço a menor ideia.
– Bom, vamos começar do começo. Primeiro, alguns conceitos; quando você disse delírio, você quis dizer alucinações. São coisas diferentes. Alucinações ocorrem quando seus sentidos sentem algo que não existe; como ver coisas, por exemplo. Delírios ocorrem quando sua mente imagina algo que não existe, como achar que está sendo perseguido, ou coisa parecida. Por fim, ilusões são quando você vê algo que é uma coisa, como se fosse outra, como os oásis no deserto.
Eu rabisquei rapidamente estes termos no meu bloquinho; logo iria fazer um glossário médico.
– E a doença da mão que você está se referindo é artrite reumatoide. Os dedos sofrem um desvio ulnar, que é contra o polegar. E ficam com aquela aparência de pescoço de cisne, que você sem dúvida observou. Mas vamos voltar para o início da história. Quando eu vi o caso, devo dizer que fiquei bastante interessada. Como eu falei para você, duvidava que fosse um caso de assalto, e fiquei bastante surpresa que esta tenha sido a principal suspeita da polícia. Para mim, parecia bastante óbvio que o homem tinha pulado por algum motivo. Restava saber qual.
Ela tomou mais um pouco de suco; eu a observava atentamente.
– Antes de ver as marcas no chão, eu pensei em algumas possibilidades. Catalepsia era uma delas; ele poderia ter dormido no volante, mas isso não explicaria como ele havia saído do caminhão. O mesmo seria válido para qualquer outra doença súbita, como infarto, derrame, hipoglicemia, epilepsia ou até mesmo uma enxaqueca com aura. Então, o que faria ele pular para fora da cabine com um caminhão em movimento? Bom, ele deveria estar com medo de alguma coisa. Estaria fugindo de algo? Mas, o quê? O que você pensaria?
– Minha primeira hipótese seriam ladrões.
– Sim, mas, como você viu, não roubaram nada e ainda deixaram o caminhão. Não teria lógica. Da mesma forma que alguma tentativa de homicídio; vamos supor que alguém encostou do lado direito do caminhão apontando uma arma. Do lado direito, porque, se fosse do esquerdo, ele não iria pular em cima do assaltante. Não havia nenhum tiro, nem nada que nos levasse a pensar nisso. Alguém que tentasse matar o caminhoneiro, com certeza teria ido checar se o serviço estava feito, ou o teria terminado ele mesmo. Portanto, podemos excluir homicídio.
Ela comeu mais um pouco de sua salada de frutas.
– Portanto, eu pensei em outras coisas. Por ser caminhoneiro, eu logo pensei em drogas. Estimulantes, como anfetaminas ou cocaína, ou talvez LSD. LSD e alguns alucinógenos têm um efeito que chama flashback.
– Que é quando você tem o efeito da droga de novo, mesmo sem ter usado, não é?
– Isso. Era uma das possibilidades. E devo dizer que fiquei bastante tentada a apostar todas as minhas fichas nela, achando que ele teve alguma alucinação por um flashback, ou talvez até mesmo pelo uso recente de drogas, até ver o paciente. Aí, surgiu uma nova hipótese: uso de corticoide. Como você viu, o nosso caminhoneiro é gordo e com o rosto bem vermelho. Isso são sinais característicos de uma síndrome que chamamos de Síndrome de Cushing. Chama-se fáscies cushingoide ou de lua cheia.
Eu ri; ele parecia mesmo uma lua cheia.
– Para confirmar, bastou olhar do lado da cama; aquela caixa de prednisona me disse tudo. Só me restou, assim, a curiosidade de por que ele tomava, e isso ficou óbvio pelas suas mãos. O melhor tratamento para artrite reumatoide não é corticoide, mas tem muita gente que usa na crise, para melhorar a dor. Como todo bom caminhoneiro, com certeza ele passou em algum pronto atendimento, e o médico receitou uma injeção de corticoide. Outro deve ter passado corticoide via oral, e logo ele começou a usar os dois sozinho. Não demorou muito para ter corticoide demais circulando no seu corpo e ter as alucinações, que são um dos efeitos colaterais.
Eu terminei de anotar mais algumas coisas no meu bloquinho e a observei, enquanto terminava o seu suco. Era impressionante como tudo ficava tão simples aos seus olhos. Contudo, ainda me restava uma dúvida.
– E como você descobriu que eram demônios que ele via?
– Bom, isso foi uma espécie de chute. Eu vi a Bíblia em cima da mesa e imaginei que ele era relativamente religioso. As alucinações para um caminhoneiro religioso poderiam ser de assaltantes, outros caminhões na estrada ou demônios. Considerando que o acidente foi ontem, e a Bíblia já estava lá, eu achei mais provável a hipótese religiosa e, chutando, acertei. É tudo uma questão de jogo de probabilidades.
Tudo para ela sempre era uma questão de jogo de probabilidades!
– Agora, vamos ver se o jornal de hoje tem algum caso mais interessante para nós pensarmos neste café da manhã. Ela abriu o jornal sobre a mesa, e nós começamos a procurar.
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais