O incidente do homem desacordado
Isabella e eu estávamos voltando de Sorocaba certo dia pela manhã, quando, na rodovia que interliga a cidade e a Rodovia Castelo Branco, ela me mandou que parasse no acostamento.
– O quê? Por quê? – indaguei.
– Eu acho que tem algum homem caído do lado do acostamento – ela disse. – Vamos, pare e volte um pouco.
Eu parei no acostamento e lentamente comecei a retornar, a todo tempo olhando pelo retrovisor para não acertar nenhum outro automóvel. Quando tinha retornado algo ao redor de duzentos metros, ela me indicou que parasse e desceu; eu liguei o pisca-alerta e fui logo atrás.
Para a minha surpresa, de fato havia um homem caído em uma vala logo ao lado da estrada; ela devia tê-lo visto por apenas uma fração de segundos, pois estava quase escondido.
Parecia ter ao redor de cinquenta anos; tinha cabelos pretos, mas com diversos fios brancos, uma barba que parecia ter sido feita pela última vez havia pelo menos uma ou duas semanas, e estava com a roupa imunda e cheirando a fezes e urina. A primeira coisa que Isabella fez foi checar se o homem estava vivo, colocando a mão em seu pescoço, e, pela sua expressão, ele estava.
Nós o viramos de barriga para cima; curiosamente, estava sem o cinto de sua calça e, olhando ao redor, pude ver o objeto caído perto de sua mão direita. Ela o observava em todos os detalhes, desde o pé até a cabeça e, quando percebi, estava procurando algo em seus bolsos. Como esperado, não havia nada; entretanto, olhando mais à frente, ela andou rapidamente pelo acostamento, como se voltasse para a cidade, buscando o chão. Neste meio tempo, eu tentei de todas as formas acordá-lo.
– Senhor! Senhor! Acorde! – chamava eu, sacudindo-o, mas não obtive resposta.
Utilizando-me do que havia aprendido com os socorristas para avaliar o nível de consciência do paciente, esfreguei meus nós dos dedos contra o esterno do homem, que logo pareceu tornar a si, ainda que com dificuldade. Ele murmurou alguma coisa, e tive de me aproximar para escutar.
– Me deixe morrer – ele suspirou, e seu hálito era atroz.
Pouco depois, Isabella retornava com alguns papéis nas mãos.
– Como imaginei. Ele deve estar aqui há algum tempo, porque algum espertinho já veio e roubou sua carteira. Mas ao menos teve o bom senso de jogar os documentos no chão – ela comentou. – Só não roubaram os sapatos porque já estão gastos demais. Se não, tenho certeza de que ele estaria só de meias agora.
– E o que você achou aí?
– Só a carteira de identidade e alguns recibos do cartão de crédito. Parece que este é o seu Roque Almeida de Barros, quarenta e sete anos, natural do Rio Grande do Sul. E, pelo jeito, ele já foi roubado ao menos outra vez, porque esta é uma segunda via, e recente.
– Puxa… O que será que aconteceu com ele?
– Não está claro para você?
– Nem um pouco – respondi, francamente.
– Bom, talvez seja mais claro só para mim mesma…
– Geralmente, é assim – comentei. – Mas acho que ele tentou se matar. Ele fica repetindo continuamente que quer que nós o deixemos morrer. E está vendo o cinto na sua mão?
– Ele pode ter pensado em se matar, mas ele sequer tentou. Foi interrompido antes – ela respondeu, soltando as pálpebras que mantinha até então abertas para observar os seus olhos. – Precisamos levar este homem ao hospital. Ele precisa de uma tomografia de crânio, e rápido.
– Certo, eu…
Olhei para o homem e depois para o meu carro; colocá-lo lá iria empesteá-lo por uma eternidade e meia.
– Também acho que vai ficar cheirando – ela comentou, lendo minha mente, como era seu costume. Aposto que tinha observado minhas narinas se contraindo, conforme eu sentia aquele terrível odor. – E o certo é chamar o resgate.
– Ok, então.
Peguei meu celular e liguei para o serviço de emergência; em alguns minutos, uma ambulância surgiu no horizonte e parou para colocar o homem em uma maca. O hospital de referência era o Conjunto Hospitalar de Sorocaba, e, curiosos com o desfecho, nós seguimos logo atrás.
– Ele não tem nenhum dado pessoal com ele. Acho que está sumido há pelo menos duas semanas. Você não consegue perguntar para algum de seus amigos da polícia se eles têm informações sobre desaparecidos do Rio Grande do Sul nos últimos dias?
– Eu posso tentar – falei.
Pelo celular, liguei para a central e passei as informações sobre o homem. Pedi para que me avisassem assim que tivessem alguma notícia.
Quando chegamos ao hospital, o resgate deixou o paciente no serviço de emergência cirúrgica; quando foram passar o caso para o médico responsável, Isabella se interpôs.
– É um homem com transtorno bipolar, veio caminhando desde Porto Alegre até aqui. Nos últimos dias ele ciclou para depressão e está com ideação suicida. Mas não tentou nada efetivamente. Acho bom, também, vocês pedirem uma tomografia de crânio, porque ele…
– Bom, não tem sinais nem história de trauma, ele tem de ir para a clínica médica e, depois, para a psiquiatria.
Dito isto, o médico escreveu na ficha de atendimento do paciente e mandou que o levassem pelo corredor até o fim, onde ficava a clínica médica. Lá, após algum tempo fomos atendidos, e Isabella repetiu toda a história.
– A senhora é o que dele?
– Nada. Nós o encontramos na rodovia.
– E como você sabe tudo isso?
Quando ela começou a explicar, meu celular tocou, e eu saí da sala para atender; era o pessoal da central. Havia, de fato, um homem chamado Roque, de Porto Alegre, que estava desaparecido havia quase vinte dias. Ela me passou o telefone da família, e eu liguei para o seu filho. Seu nome era Paulo, e ele não só confirmou o fato do desaparecimento do pai, como ficou extremamente feliz em nós o termos encontrado.
– Muito obrigado, Dr. André…
– Eu não sou doutor, sou investigador. Eu só encontrei seu pai na rua.
– Mesmo assim, muito obrigado. Nós estamos que nem doidos atrás dele faz dias! É a segunda vez que ele faz isso. Da outra vez que ele surtou, ele foi parado na fronteira com a Argentina.
– Seu pai sofre de algum problema? – perguntei, sem resistir.
– Sim, ele tem transtorno bipolar.
Ela havia acertado de novo!
– E ele tem mais algum problema? Algum problema cerebral?
– Não que eu saiba. Por quê?
– Nada, só para saber – respondi.
O homem combinou que tomaria o primeiro voo disponível para a cidade, e que deveria chegar entre aquele dia e o seguinte. Quando terminei de falar, Isabella saiu da sala.
– Consegui falar com o filho. Ele está vindo lá de Porto Alegre.
– Ótimo! Vamos levar ele para fazer a tomografia, agora? Estou curiosa com o que vamos encontrar.
Eu concordei, e fomos os dois empurrando a maca pelos corredores e elevadores.
– Isa, agora me conte… Como foi que você descobriu tudo isso?
– Ah, foi fácil… Pela identidade eu descobri que ele era do Rio Grande do Sul, e pelos papéis do cartão de crédito, por onde ele passou nos últimos dias, até que a empresa cancelasse o seu cartão. Não sei se foi por causa dos filhos, ou se eles acharam que foi roubado, ou ainda se a família tem uma daquelas técnicas de prevenção para pacientes bipolares.
– Como assim?
– As empresas de cartão de crédito cancelam o uso dele, tão logo percebem que os gastos são muito exagerados.
– Que coisa inteligente!
– Exatamente. Bom, mas antes de pensar nos gastos, eu pensei em que tipo de pessoa teria vindo caminhando de lá até aqui, já que ele não guardou nenhum comprovante de rodoviária, embora tenha diligentemente guardado todos os recibos do cartão. Poderia ser um bêbado, um pagador de promessa, ou um homem com transtornos psiquiátricos. Um bêbado não teria chegado tão longe, um pagador de promessa teria outras coisas; digamos, no mínimo, uma cruz, algum papel, alguma coisa parecida a respeito. E dificilmente estaria caído em uma vala dizendo que queria se matar. Por fim, sobrava um transtorno psiquiátrico. Seria um esquizofrênico? Ou, o que era mais provável, um bipolar? Só um bipolar teria energia suficiente para caminhar os mil quilômetros de lá até aqui em tão pouco tempo. E, como você pode ver, seu cabelo, apesar de bagunçado, está bem cortado, e a barba está crescida porque ele está caminhando há dias, mas a sua roupa, apesar de imunda, é bem garbosa. Bipolares em crise de mania geralmente se vestem assim; esse não é o tipo de roupa que uma pessoa sã usaria para ir de uma cidade a outra. É só olhar para os sapatos, que algumas semanas atrás deveriam ser novos, mas agora estão destruídos com o uso. E, para confirmar minha hipótese, bastou olhar os gastos do cartão de crédito. Bipolares em surto costumam gastar somas exorbitantes de uma só vez. E foi nessa vez, cinco dias atrás, que seu cartão foi cancelado.
Eu olhei para o pequeno papel; ele havia comprado alguma coisa no supermercado, sabe-se lá o quê, que havia saído dois mil reais. Entreguei-o de volta conforme nos postávamos dentro da sala de comando da tomografia, onde poderíamos ver as imagens do exame. Dois técnicos o transportaram para o aparelho, e ele havia passado de responsivo para praticamente inconsciente; sua respiração parecia mais ruidosa e profunda do que o normal.
– Acredito que, depois disso, ele ficou desesperado, sem ter o que fazer, e ciclou para depressão. E, da depressão para pensar em se matar, é um passo.
– Mas você disse que ele não conseguiu se matar, que foi interrompido no meio.
– Exatamente. Porque, se ele tivesse tentado, haveria marcas no seu pescoço, mas não havia nenhuma. Assim, alguma coisa o fez parar. Não foi alguém, porque não tem marcas de violência, e não foi nenhuma desistência pessoal, porque ele não pôs o cinto de volta. Foi algo que literalmente o fez parar no meio e cair no chão. Poderia ser o coração? Eu inicialmente pensei nisso, mas, quando eu vi seus olhos… Ah, já vai começar a tomografia? Então, vamos ver as imagens.
Ela ficou quieta por alguns segundos, apenas vendo os desenhos pretos, cinzas e brancos. Para mim, era tudo a mesma, mas ela exclamava de satisfação, conforme os observava.
– Está vendo aqui? Esta coisa disforme bem aqui no meio? Deve ser um tumor ou alguma malformação importante de vasos. Ele deve ter aumentado um pouco mais do que o corpo aguentou, ou inflamado mais, comprimiu a ponte, que é a estrutura responsável por manter as pessoas conscientes, e ele deve ter desmaiado. E está comprimindo também este aqueduto aqui, por onde passa o líquido do cérebro. Ele está com um edema importante, por isso seu olho estava vesgo e com a pupila dilatada.
Eu olhei preocupado para o homem.
– E agora?
– Bom, agora é com a neurocirurgia. Acho que eles ainda têm algum tempo para intervir. Vamos ver… Vou avisar o plantonista. Se quer saber, foi realmente uma sorte que fomos nós quem passamos por lá, não?
Pouco tempo depois, estávamos no carro, voltando definitivamente para São Paulo; eu dirigia olhando para a estrada, sem falar muito. Continuava pensando sobre seu Roque e Paulo, o pobre filho que viria encontrar um pai quase vegetando.
– O prognóstico não é nem um pouco bom, mas, pelo menos, o filho vai saber o que aconteceu com o pai. De outra forma, ele provavelmente teria sido encontrado depois de morto, e, para o filho, continuaria desaparecido por todo o resto de sua vida. De certa forma, é um alívio, não? Eu fui obrigado a concordar, mas não pude deixar de me sentir como se derrotado por um longo tempo. Aquela sensação de impotência era terrível; como os médicos conseguiam lidar com aquilo todos os dias?
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais