A Falência dos Correios
Na cidade de Santa Paula, maior cidade da Emérdica Patina¹, existia um sistema de correios formado por dois subsistemas: o tradicional de entregas e o de entregas rápidas, chamado Xerex. Certo dia, porém, os correios encontraram uma séria dificuldade: estavam à beira da falência.
Em uma reunião extraordinária, João Malote, chefe supremo dos correios, chegou até mesmo a bater o punho, dizendo que tinham de fazer alguma coisa, ou teriam de fechar as portas, e que não sairia dali enquanto não tivessem encontrado uma solução.
– Nós podemos fazer uma nova coleção de selos! – opinou um, o mais velho do recinto, para o qual o correio nunca sairia de seus tempos áureos e era tudo uma falsificação de informações governamentais.
– Já tentamos isso, Matusa – o líder respondeu; Matusa, diminutivo de Matusalém, era um apelido carinhoso que haviam lhe dado. – Ano passado fizemos até mesmo uma coleção pornográfica. Não conseguimos nada além de embargos e de membros do FiUdEL² vindo às escondidas adquirir a coleção.
A discussão continuou por horas; os correios funcionavam a partir de selos. Se não podiam investir nos selos, o que poderiam fazer?
– O problema é que as pessoas e as empresas não utilizam mais nem os correios, nem o Xerex. Preferem mandar tudo por email, ou chamar motobóis, ou ainda têm o seu próprio sistema de entregas! – falou Malote.
– Precisamos achar um sistema que compense financeiramente! – alguém comentou.
– Ou então… – falou outro, soturnamente. – Eu conheço um cara, que conhece um cara, que tem um vizinho que pode se livrar facilmente destes empecilhos.
– Como, exatamente?
– Ora, não seria conveniente se os motobóis e estes outros sistemas de entrega não existissem…?
– Estou vendo aonde quer chegar…
– Nada disso! – exclamou João. – Nada de envolvimento com máfia ou assassinato de pessoas!
– Mas quem aqui está falando isso? – indagou o homem misterioso, ressabiado. – Estou apenas comentando de uma possibilidade totalmente plausível!
O líder balançou a cabeça.
– Ninguém tem nenhuma ideia melhor?
– Eu tenho! – falou Agnaldo, finalmente. – Conheço o dono da principal fábrica de gelatina do Pernil, a Dr. Oético. Posso conversar com ele para fazer uma superpromoção, daquelas que dão carros ou coisa parecida! E, para poder participar, as pessoas terão de cortar as caixas de gelatina e enviá-las, uma a uma, por correio. O que vocês acham?
– Excelente ideia! – exclamaram.
– É só um método paliativo – comentou algum pessimista, mas foi logo encoberto pela horda, que estava feliz por finalmente ter uma ideia que encerraria aquela longuíssima reunião.
– Rola ele conseguir um carro para nós, ou dizer quais são as caixas sorteadas?
– Não posso prometer nada, mas vou falar com ele – respondeu Agnaldo.
No dia seguinte, ele estava em uma entrevista com o dono da Dr. Oético, que imediatamente aceitou a proposta. Entretanto, como prêmio, de onde tirariam um carro?
– Só se conseguirmos uma parceria com alguma montadora.
– Puxa vida… Vai ser difícil!
– É, você acha que é fácil assim fazer uma promoção grande destas, Agnaldo?
Mas ele não desistiu; foi a todas as montadoras da cidade, incluindo aquelas novas, Atchinesas, cujos carros custavam muito barato e eram descartáveis após os trinta mil quilômetros rodados, mas nem eles quiseram participar. Era muito dinheiro, para pouco resultado. Afinal, o mercado de gelatina não era lá dos maiores.
– Mas, e se colocássemos a promoção em todos os produtos da Dr. Oético? – ele arriscou.
Nem assim.
No final, tudo o que ele conseguiu foi um patrocínio de uma empresa de pantufas. E a promoção ficou: você poderia ganhar com caixas premiadas, imediatamente, ou ir enviando caixas pelo correio para a sede da Dr. Oético, para o sorteio final de 150 pantufas, que seriam enviadas por Xerex (logicamente, a Dr. Oético se isentaria de pagar este envio para os correios, mas isto era parte do acordo).
Bem, a promoção não deu tão certo quanto esperavam; simplesmente não valia a pena enviar cartas e mais cartas com caixas de gelatina para concorrer ao sorteio de pantufas! Era mais fácil comprar a sua. No final, só os membros dos correios participaram, e cada um deles acabou por receber uma pantufa. Mas, por amor ao serviço, foram buscar na fábrica, se não, o Xerex teria um grande prejuízo.
Houve uma nova reunião extraordinária convocada por Malote.
– Eu tenho uma ideia! Posso levar a um senador em Pernília a proposta de o governo só aceitar documentos oficiais. Assim, eles terão de enviar tudo por correio! – falou Joaquim.
– Mas, e se o governo quiser usar meios próprios de envio? – o mesmo pessimista da última vez opinou.
– Não, vamos fazer questão que o projeto de lei exija que o transporte oficial seja por correio!
– Mas, até conseguirmos isto – retrucou o mesmo – vai demorar muito! Às vezes, anos!
– Tudo depende…
– Do quê?
– Prefiro não comentar. Mas vamos conseguir rápido, garanto.
E, de fato, eles conseguiram rápido, talvez rápido até demais, para os padrões do governo do País Pernil: não levou mais do que três meses para estar tudo aprovado!
E, uma vez aprovado, realmente houve uma avalanche de entregas pelo correio.
Entretanto, o governo do País Pernil é muito esperto; ele dá com uma mão, para tirar com a outra. Em pouco tempo, toda a culpa por todo o atraso do governo – que nunca antes na história daquele país havia sido tão grande, embora não tivesse mudado em absolutamente nada, historicamente – era dos correios: não conseguiam aprovar medidas, pois o correio havia atrasado entregas dos documentos oficiais; não conseguiam fazer leis, pois o furgão dos correios havia sido furtado; sequer podiam renovar a entrega dos camarões pseudovestidos e do vinho Trançado, pois os correios não haviam entregados as licitações a tempo.
Lógico, era tudo mentira, mas era isso o que acontecia quando se metia com o governo. E Malote ficou louco da vida! Como podiam estar arruinando a sua imagem desta forma?
– Precisamos fazer esta medida cair! – exclamou ele, numa nova reunião, desta vez sem Joaquim, que havia sido despedido, apesar de a culpa não ser sua.
– Não se preocupe, é uma questão de tempo. E, daqui a pouco, vão dizer que não caiu antes, porque nós demoramos para entregar os documentos…
– E mais alguém tem alguma outra sugestão?
Depois de Joaquim, estava todos com medo de perderem as cabeças à toa.
– Eu tenho uma ideia – disse Mariana. – Se não podemos vencê-los, vamos nos juntar a eles!
– Ir todos para Pernília?
– Não! Vamos fazer o mesmo que as outras empresas. Contratar motobóis para entregas rápidas, fazer acordos com as empresas, para cobrar mais barato de caminhões…
Logo, eles tentaram adotar a ideia; entretanto, os motobóis foram vencidos por subempregados, que faziam o serviço a preço de banana, e os caminhões de entrega, pelos custos: para manter os preços baixos, o correio basicamente pagava, em vez de receber, para fazer a entrega das cartas por caminhões.
– Precisamos de algo que seja mais rápido do que os motobóis! Aí, não vão pensar em usar mais os dos concorrentes!
– E que tal se usarmos helicópteros? – ideou Gisela.
– Vai sair absurdamente caro!
– Não, helicópteros de controle remoto!
– Uhm…
Logo, os correios compraram uma frota de helicópteros de controle remoto que, de fato, faziam as entregas muito mais rápido que os motobóis. O que não contaram, porém, foi com as chuvas de Santa Paula, que tornaram a entrega por eles impraticável em longos períodos de mais de um terço do ano (pois lá chove muito e com frequência).
– Mais uma ideia, mais um investimento que foi pelo cano! – exclamou Malote, quase chorando. – Eu não sei mais o que fazer!
– Pelo cano! É esta a solução! – disse Alexandre.
Todos olharam para ele.
– Não, não quero dizer isso! O que quero dizer é: e se instalássemos uma série de tubos, que levariam cartas de forma praticamente instantânea, de um lado ao outro da cidade, 24 horas por dia?
Alexandre era um faxineiro totalmente lunático, e ninguém teria lhe dado bola, não estivessem em uma situação tão desesperadora como aquela.
– Vamos tentar a ideia de Alexandre, o Grande! – exclamou Malote, animadíssimo, e todos deram urras.
O sistema foi projetado, aperfeiçoado e montado; consistiria em canos que sairiam de todos os prédios, iriam pelos subterrâneos, ao lado dos canos de água e esgoto, para pontos estratégicos de distribuição da sociedade, de onde seriam reenviados para os devidos locais. Todos pagariam uma cota mensal, baixíssima, para usar o serviço quantas vezes quisesse.
Eu gostaria muito de dizer que deu tudo certo, que isto foi a salvação dos correios, e que Alexandre, o Grande, acabou sendo elevado ao posto de vice, ficando lado a lado com Malote. Entretanto, não foi bem isso o que aconteceu… Os canos de esgoto e água em todo o País Pernil, infelizmente, nunca foram muito bem vedados, estouraram em diversos lugares, levando cartas misturadas a água, fezes e urina, entre outras coisas, diretamente para as casas e para as centrais de redistribuição das cidades. Depois de milhões de investimento, foi tudo realmente pelo cano e tiveram de desmontar tudo e ainda pagar uma grande indenização ao povo.
Malote foi destituído de seu posto e acabou sua carreira sustentado por uma aposentadoria de salário mínimo, sem nunca mais ser recontratado. Outra pessoa assumiu, o Caixote, mas este também não conseguiu resolver os problemas insolucionáveis que o progresso tecnológico trouxe aos correios e, no final da década, os correios fecharam suas portas. Nunca mais haveria correio.
Nota do autor, setembro de 2021: esta é uma das poucas histórias de Pernil que não acaba em pitsa. Bem, acho que os Correios no mundo real também estão um pouco obsoletos… Não?
¹ Emérdica Patina: conjunto dos países que ficam abaixo (geograficamente ou não) do Canãodá e dos Emirados Unidos da Arrogância. Por que fizeram a separação? Bem, os países do norte se acham tão superiores, que fizeram uma separação entre Emérdica não tão mérdica e Emérdica Patina, sob a alegação de que, do Fléxico para baixo, todos haviam sido colonizados pelos mesmos povos (Exbanhóis e Potrogueses), o que gerou uma grande diferença de desenvolvimento e… Ok, não consigo achar uma explicação melhor do que o simples fato de que estes países não passaram de patos do processo de colonização e ficam hoje a patinar no seu desenvolvimento. Daí, Patina.
² FiUdEL: Filastelistas Unidos da Emérdica – Local. Organização local de filastelistas, hoje em vias de extinção. Existe também a FiUdER (Regional), FiUdEN (Nacional) e FiUdEU (Universal). Quanto a essa, vem há anos pedindo um acordo com algumas nações para tentar mandar ao espaço uma sonda com os seus selos, mas ninguém até hoje achou viável gastar dinheiro com algo tão inútil, preferindo mandar as meias do astronauta que pisou pela primeira vez na lua. Com certeza traria mais retorno!

O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais