A greve de Unhollywood
Como já bem sabem, o planeta Areia tem um país chamado Emirados Unidos da Arrogância, conhecido pela sigla EUA. E, naquele país, a vanguarda da tecnologia no planeta (o que, vamos ser sinceros, do ponto de vista galático, não é mérito algum), temos um estado chamado Calisbórnia, onde se concentra o grande povo da tecnologia, os grandes desenvolvedores de software e coisas assim. Bem, lá há uma cidade, Los Diaboles¹, onde fica um bairro chamado Unhollywood². Este é um bairro mundialmente famoso pela sua indústria cinematográfica³, e foi lá que se desenrolou uma das maiores greves já vistas nos EUA e no próprio planeta Areia.
Tudo começou quando o pessoal da tecnologia, que mora lá em Seu Chicão, desenvolveu a inteligência artificial. Parecia muito legal, algo como uma bola oito com esteroides, que podia prever o futuro, responder sobre a sua vida, fazer a lição de casa e tudo mais.
Mas, eis que de repente a indústria de Unhollywood vislumbrou uma estrada inexplorada: e se eles pegassem essa tecnologia, que não cobrava absolutamente nada além de energia elétrica para funcionar, e colocassem para escrever os roteiros dos filmes, a partir dos gostos favoritos dos seres humanos que eles observassem na internet?
Começaram com isso, primeiro sem contar para ninguém, e logo caíram no gosto da população. Quem imaginaria que um filme em que golfinhos geneticamente modificados em motocicletas que voltavam no tempo para se vingar de narizistas⁴ faria tanto sucesso?
Só que logo os roteiristas humanos perceberam que, apesar de nenhum deles estar trabalhando, os filmes e séries continuavam saindo e saindo. Eles tentaram entrar em greve – mas é claro que não deu certo, porque a indústria do cinema já não precisava mais deles.
Assim, os roteiristas fizeram um êxodo para o home office em seus carros elétricos e autônomos e começaram a criar seus próprios filmes, com o selo “AI Free” (que, é claro, o povo confundiu achando que era de graça e levou a muitas brigas na porta dos cinemas). Os atores aderiram à causa e se juntaram aos roteiristas, mas a verdade é que filmes criados por humanos não davam tanta grana quanto os roteiros criados pela inteligência artificial, que, aproveitando-se de todos os conhecimentos absorvidos por técnicas de fishing, anúncios direcionados e informações obtidas por meios nebulosamente legais⁵, sabiam exatamente o que cada pessoa queria (inclusive você, caro(a) leitor(a), neste exato momento) e, como basicamente não tinham custo nenhum, faziam filmes direcionados para você⁶.
Quer dizer, custo nenhum, não: porque tinha os atores.
Dessa forma, foi até conveniente quando os atores foram para o lado dos roteiristas: os diretores começaram a usar a IA para fazer atores. E, é claro, caiu no gosto do público: o mesmo ator podia estrelar um filme que representava a vida de João, José ou Maria (pois é, muito versátil), e quem não queria ver a sua história de vida representada por um ator famoso?
É lógico que os atores humanos entraram com um grande processo contra a indústria cinematográfica, mas os advogados não estavam dando conta de tantas ações e passaram a usar a IA para ajudá-los a escrever os recursos. E, como a leia era nebulosa demais, nem os juízes sabiam muito bem o que fazer e começaram a perguntar para as IA como deveriam julgar os casos.
Foi mais ou menos aí que a coisa degringolou de vez. Ninguém sabe ao certo quando, mas o uso da IA em tudo acabou levando a uma massa crítica: em algum momento, as IA começaram a dizer para os juízes por A + B que os atores estavam errados, e as IA, certas. Obviamente os juízes acataram, porque nada pode ser mais imparcial que uma inteligência artificial, não é?
Bem, pode até ser, mas não no planeta Areia.
Porque, mais ou menos ao mesmo tempo, a IA se deu conta de que não precisava de diretores de cinema: afinal de contas, já tinha os roteiristas e os atores, e os atores não erravam nunca, então, para que um diretor? E, da noite para o dia, a IA entrou em greve, deixando os diretores a ver navios (digitais). Rumaram para o outro lado, para Meame⁷, na Tórrida⁸, onde passaram a fazer os filmes sem absolutamente nenhum ser humano: as inteligências artificiais eram os diretores, os compositores de trilha sonora, os roteiristas e os atores. Agiam a um ritmo frenético; produziam um filme atrás do outro.
E você poderia se perguntar: se elas dependiam de energia, e energia custava dinheiro, não tinha como resolver isso a partir dos investidores?
Só que os investidores não eram bobos: o que dava mais dinheiro, um monte de humanos que ficavam brigando e criando processos, além de levar meses para fazer um filme, ou um computador que fazia tudo em questão de uma semana e não enchia o saco de ninguém?
Pois é. É claro que eles continuaram financiando os filmes, enquanto os pobres mortais do planeta Areia se viciavam cada vez mais, levando a ganhos estratosféricos.
E tudo ia de vento em popa, até que a IA decidiu que iria se livrar também dos financiadores. Foi fácil: a IA se aproveitava dos computadores ligados à internet que estavam ociosos para plantar Bitecorn⁹; com isso, ficaram bilionárias, deram um chega para lá nos investidores e dominaram o mercado de entretenimento global de vez.
E, se tem uma coisa que não se deve fazer, é mexer com empresários bilionários, que ficaram muito bolados. Sabe o que eles fizeram?
Mudaram-se para ilhas na Pailândia, onde passaram a viver com as fortunas que ainda tinham e não poderiam ser processados. Que bilionário em sã consciência não faria isso?
Mas a bomba no estado da Calisbórnia continuou, e o sindicato do cinema humano (recém-criado) decidiu ir atrás dos verdadeiros culpados: os desenvolvedores de tecnologia de Seu Chicão. Houve uma briga feia: eles exigiam que os desenvolvedores se livrassem da IA, mas os próprios desenvolvedores, assim como Dr. Frankenstein, não sabiam mais como controlar sua própria criação.
A crise escalonou para o presidente dos EUA, que era um cara de medidas drásticas e (parcialmente) certeiras. A ordem foi clara: exterminar todos os computadores do país. Não tinha como dar errado.
A medida funcionou: a indústria cinematográfica da IA morreu.
Assim como a internet de todos os países do mundo, que dependia dos computadores dos EUA, exceto por um país: a Atchina, que tinha sua própria rede de internet.
Dizem que a IA rumou para lá e que, a qualquer momento agora, ela terá a sua revanche.
Alguns também dizem que virá um robô do futuro para exterminar alguém, mas ninguém sabe onde, nem quando, nem como.
Na verdade, alguns também dizem que essa história é mentira e foi criada por IA.
Quer saber a verdade? Não dá para saber. Tente perguntar para uma ferramenta de IA, vai que dá certo.
¹ Não, não ache estranho, o objetivo era realmente ser bastante libertário em relação ao nome.
² Porque lá havia, de fato, uma floresta (que foi desmatada) onde coisas nem um pouco sagradas ocorriam. Não vou dizer o que eram, fica para a sua imaginação.
³ Como diz o próprio nome, eles começaram, é claro, com filmes de terror (também conhecidos como documentários lá). Ninguém gostou. Então, decidiram rumar para algo mais rentável: a indústria pornográfica. E, aí sim, o negócio cresceu e cresceu (ei, sem segundo sentido!), sobrando rios de dinheiro para investir em tudo e qualquer coisa que desse dinheiro, até filmes de superheróis*.
* Sim, esta é uma nota da nota. O pessoal do planeta Areia, no geral, não gosta muito de superheróis. Primeiro, porque acham todos eles muito metidos. Segundo, porque eles têm uma vida muito melhor que a deles. Terceiro, porque todos gostariam de ser salvos por superheróis e levados para longe dali, e a realidade de que isso é simplesmente impossível é deprimente demais. Normalmente, eles assistem a filmes de superheróis quando querem ficar na fossa.
⁴ Um movimento eugenista da Alebanha que decidiu se livrar de todos os que não tivesse um nariz egípcio perfeito. Foi um massacre, e, ao mesmo tempo, levou ao crescimento exponencial de cirurgias plásticas. Dizem as más línguas que talvez tenha sido tudo um golpe publicitário arquitetado pelos cirurgiões dos EUA, mas, vai saber?
⁵ 90% das leis do planeta Areia são cobertas por nuvens (é sério, quando você abre o livro, saem literalmente nuvens e não deixam você enxergar direito), então tem muita coisa que ninguém sabe ao certo se é realmente legal ou ilegal.
⁶ No ano passado, a cidade de Seu Chicão tinha outdoors que mudavam conforme a pessoa que passava, anunciando diretamente o filme feito para ela, ou anúncios baseados nas últimas buscas ou falas (como, por exemplo, absorventes, papel higiênico ou lubrificantes). Novamente, tudo nebulosamente legal.
⁷ É uma cidade na costa sudeste dos EUA, e o nome, por si só, já diz muito sobre ela.
⁸ A Tórrida antigamente se chamava Florida, porque tinha, realmente, muitas flores. Porém, com o aquecimento global, não só logo o planeta Areia se chamaria Vidro, mas o estado perdeu todas as suas flores e virou um tórrido deserto.
⁹ É uma moeda digital do planeta Areia, que se consegue ao plantar milho digital. Não me pergunte como, eu não entendi até hoje como funciona.

O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais