A mancha
Ele só percebeu efetivamente quando chegou à sua casa, no final do dia. Na verdade, não à sua casa, mas sim, ao elevador, um daqueles com espelho grande, no qual as pessoas ficam se olhando e olhando durante todo o trajeto, alguns espremem espinhas, outros arrumam as roupas, retocam maquiagem e coisas do gênero.
– Meu Deus! Uma mancha!
Isso mesmo; uma mancha. Lá estava ela: preta, gosmenta, com cara daquelas manchas de graxa, que não iriam sair de forma alguma, não importava o que ele fizesse.
– E justo na minha camisa favorita!
Era uma camisa que sua esposa havia lhe dado no aniversário de casamento de dois anos antes; era feita de algodão egípcio, ou alguma coisa assim, e tinha um caimento perfeito, uma cor que combinava com o seu tom de pele e os seus olhos, enfim, era a melhor camisa que ele já tivera na vida e da qual ele cuidava com todo amor e carinho. No primeiro dia em que a vestiu, a todo momento tirava qualquer mínimo grão de poeira que lhe caía nos ombros.
E, apesar de já com dois anos, parecia nova. Quer dizer, era isso o que ele achava; a esposa vivia dizendo que estava velha e que ele deveria se livrar dela.
– É a lei de Murphy! Com certeza!
Pois era óbvio: se ele estivesse com uma camisa da qual não gostasse, poderia ter passado por baixo de uma construção, por pintores com baldes de tinta sobre sua cabeça, almoçado em um restaurante italiano repleto de molhos e ainda terminado o dia trocando o pneu e o carburador do carro, que não a teria manchado. Entretanto, como era a sua camisa favorita…
– Onde será que eu manchei?
Nunca iria saber. A localização era estranha; se fosse no braço ou nas costas, entenderia, tinha se encostado em algum lugar, provavelmente uma porta, algum daqueles trilhos de metal para fechar as portas de ferro de lojas, coisa do gênero. Mas, no local onde estava…
– Bem na barriga?
Pois é. Mistério. Era mais fácil ter vindo de dentro do seu corpo, do que ter surgido de qualquer outro lugar.
Entrou em casa macambúzio, colocando a mala e o paletó sobre a cadeira, e se sentou desanimado no sofá.
– O que foi, querido? – sua esposa perguntou. – Aconteceu alguma coisa no trabalho?
– A pior de todas! A pior! – ele exclamou, passando as mãos pelos cabelos em uma expressão de desespero indescritível. – Veja! Veja isso!
E se levantou, puxando a camisa para mostrar a prova de sua desgraça.
– E como que você fez isso? – ela perguntou, olhando para a mancha.
– Isso que é o pior! Eu não sei! Simplesmente não sei! Repensei o meu dia inteiro, de ponta a ponta, mas não faço a menor ideia de onde surgiu esta mancha!
– Não se desespere, amor, eu vou dar um jeito.
– Sério? Você acha que tem salvação? Você acha que consegue?
– Eu vou ver o que eu posso fazer. Tire a camisa.
Com toda a velocidade que sua reverência pela peça de roupa lhe permitiu, ele tirou a camisa e a entregou para a esposa, tremendo da cabeça aos pés. Conseguiria, mesmo? E se a mancha só aumentasse?
Ela levou a peça de roupa para a área de serviço, pegou o detergente, um pouco de água e tentou removê-la. O marido ficou no seu cangote, fungando para cá e para lá, tentando conseguir a melhor visão, observando a todo momento se estava tendo sucesso ou não, estremecendo a cada vez em que a mancha aparentemente sobrevivia, apesar de todos os esforços, ou vibrando quando ela parecia se tornar mais fina, mais espumosa, ou, talvez, mais cinza.
– Você vai parar com isso, ou eu vou ter de te pôr pra fora? – ela indagou.
– Desculpe, desculpe, não faço mais isso.
E foi se sentar à mesa da cozinha. Ouviu ela pegar uma escova; com o som do objeto sendo passado sobre o delicado tecido de sua camisa, ele se retorceu de dor, deu um salto agonizante e um grito pululante e quase se prostrou no chão, implorando que sua esposa não fizesse a camisa sofrer tanto.
– Fora! Espere do lado de fora! Eu não consigo me concentrar com você fazendo isso!
E ela o chutou para fora da cozinha, trancando a porta por dentro. Ele ficou no sofá, jogado, de calça e sem camisa, imaginando como deveria proceder, como seria sua vida sem a sua camisa favorita. Compraria outra? Ora, isso seria traição! Substituir sua camisa amada assim, tão rápido? Que horror! Não se pode confiar em ninguém hoje em dia, não mesmo, nem em si mesmo… Mas e… Quando o tempo passasse? Sei lá, um ano, dois, o suficiente para esquecer? Seria errado comprar outra?
Ora, que bobagem, nunca nenhuma iria substituí-la! Nunca! Ninguém! Quero dizer, nenhuma!
O tempo passou, passou, e nada. Quando o homem já havia roído todas as unhas, acabado com meia garrafa de uísque e ultrapassado até a fase chorona da bebedeira, sua mulher saiu da cozinha.
– Finalmente! E então? Ela vai ficar bem? Vai sobreviver? Voltará a ser a mesma?
– Ora, Agenor, pare de bobagem! Não consegui tirar toda a mancha. Vou levar na lavanderia amanhã.
– Não! – ele gritou. – Amanhã pode ser tarde demais! A mancha pode ter grudado, aumentado ou… Ou pior… – Ele engoliu em seco, e falou, com os olhos esbugalhados e segurando a mulher pelos ombros com tanta força, que parecia querer quebrar seus braços. – Se espalhado!
Ela estava aterrorizada.
– Não faça isso comigo! Não desista!
Ela respirou fundo, contou até dez, como seu terapeuta lhe mandara fazer nestas ocasiões, e respondeu que levaria a camisa imediatamente.
– Isso! É por isso que eu te amo, querida! Vamos, vamos agora!
– Vá se vestir antes!
– O quê? Pôr outra camisa agora, quando estamos tentando salvar esta? Isso seria o mesmo que… – Ela o encarou com aquele olhar. – Tá bom, já ponho.
Pouco depois, estavam na lavanderia mais próxima de casa. A esposa apresentou a peça de roupa para o tintureiro, que a olhou, olhou, pôs uma lente especial nos óculos, olhou mais um pouco, passou o dedo, lambeu e…
– Sinto muito, mas não posso remover esta mancha. Na verdade, nem sei do que ela é.
– Por favor, não diga isso, doutor! Quero dizer, senhor. Tem que ter um jeito de salvá-la!
– Temos duas opções. Aliás, três. Pintá-la de outra cor…
– Nunca!
– Pintá-la com outras manchas pretas…
– Só sobre o meu cadáver!
– Ou alvejá-la.
– !!!
Ele caiu duro no chão. Precisaram lhe trazer sais – pois é, sais aromáticos, aqueles usados no século passado para reanimar os espíritos – para ver se despertava.
– Eu exijo uma segunda opinião! Não vou desistir de você! – ele exclamou, pegando sua camisa no colo e a carregando como se fosse um ser humano. – Vou até os confins da Areia¹, vou pagar o tratamento mais caro, mas vou fazer você se recuperar!
E saiu triunfante pela porta.
Na lavanderia, ficaram todos olhando.
– Me desculpem, ele está sem os seus remédios… – a esposa falou e saiu, vermelha de vergonha.
– Rápido, vamos para aquela lavanderia lá, aquela caríssima! Eles vão conseguir consertá-la!
E lá se foram. Ao apresentarem para o tintureiro, ele pegou uma pequena espátula, raspou um pedacinho do tecido da camisa e colocou a amostra em um microscópio.
– Como suspeitei! Manchus carvorum petroleum!
Ele arregalou os olhos.
– É grave?
– O pior que poderia acontecer com a sua camisa.
– Senhor! Mas tem salvação?
– Depende. Qual o limite do seu cartão de crédito?
– Alto.
– Então tem.
A esposa só balançava a cabeça.
– Quanto demora?
– Não posso dizer ao certo. Três semanas. Duas, se formos muito sortudos.
– Faça o que precisar! – ele exclamou.
E assim se foram.
As semanas passaram de forma angustiante. Os dias nasciam e morriam, e nada de o homem ligar, falando que estava pronto. Até que, certo dia…
– Querido… Veja só o que eu trouxe para você!
– Não acredito! – ele exclamou.
Era a sua camisa! Limpa, passada, pendurada em um cabide, nova em folha, até mesmo engomada! Não podia acreditar. Nem sinal da mancha! Estava totalmente curada!
– Não se preocupe! – ele falou, acariciando-a de uma forma realmente estranha. – Eu nunca mais vou deixar isto acontecer. Vou deixá-la assim, no plástico, para sempre!
E a levou para guardar no armário.
Na sala, a esposa balançou a cabeça, sorrindo, e, abrindo a bolsa, pegou a nota fiscal da loja onde havia comprado a camisa a primeira vez. Sorte que não havia saído de linha. Rasgou o papel e o jogou no fundo do lixo; seria melhor assim, que ele nunca soubesse a verdade, e nunca mais a usasse; estava cansada dela.
Nota do autor, setembro de 2021: tudo isso aconteceu porque eu manchei uma das minhas camisas favoritas com uma mancha de graxa, sei lá de onde, de forma irremediável.
Adoro essas crônicas exageradas!
¹ Planeta Areia, é onde fica o País Pernil.
![](https://otrancarimas.drdavidnordon.com.br/wp-content/uploads/2021/09/Dr.-David-Nordon-Ortopedista-Infantil.jpg)
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais