A Moda da Camisa Manchada
Com a crise no país Pernil, Jonas estava desesperado. Era mais um dos milhões que haviam sido demitidos. Olhava para o seu celular, em um dos 37 aplicativos e meio (um havia travado o daunloudi no meio, por causa da franquia da internet do celular), em busca de emprego e salvação, pensando como a vida era realmente uma roda gigante, em que, até pouco, as notícias diziam que milhões, quiçá bilhões, haviam saído da pobreza e desemprego, e agora, milhões, bilhões, trilhões, quiçá, entravam de novo no desemprego e pobreza, nesta ordem.
Segurava seu copo de café frio na mão, que havia comprado em uma padaria de esquina por 50 centavos, pensando no que fazer, quando uma pessoa apressada trombou com ele, e todo o seu café voou na sua camisa.
E o pior! Sequer pediu desculpas, enquanto avançava freneticamente pela rua, sem tirar os olhos do celular.
Maldito mundo em que todo mundo fica olhando só para os celulares, murmurou ele, sem tirar os olhos do próprio, procurando empregos.
Porém, conforme ele andava pelas ruas, percebeu que todos estavam olhando fixamente para ele.
Também, essa mancha gigante poderia muito bem estar exposta no MASP¹ e pessoas estariam pagando milhões achando que é uma obra de arte moderna e…
De repente, seu tino comercial, seu pequeno sentido aranha dos negócios, explodiu.
Arte!
Para sua sorte, Jonas não era qualquer um: ele até havia duas horas era um publicitário importante (mas não insubstituível) de uma empresa importante. Era a sua hora de brilhar!
Reuniu mais um sócio para ajudá-lo a pôr em prática o plano:
– Fase Um – ele disse. – Vamos criar uma camiseta manchada com café. Tudo o que precisamos fazer é comprar uma camiseta bem barata no Trás², carimbar atrás com a nossa marca, e manchar com café.
– Au, au.
É, seu sócio era o seu cachorro. Ele não confiava em mais ninguém.
– A marca? Spotted. Não só em homenagem a você, meu dálmata querido, mas pelo significado: pode dizer tanto “marcado”, como “pego no flagra” ou coisa parecida. Grande golpe publicitário!
Ele estreou a sua marca com a própria camisa, que seria o marco zero de uma grande empresa.
– A fase número Dois é ter um mercado negro alternativo de camisetas manchadas.
O cachorro torceu a cabeça, tentando entender.
– É simples, meu amigo: logo as camisetas Spotted serão tão requisitadas e ridiculamente caras, que alguém irá desenvolver um mercado negro de camisetas de qualidade inferior, porém igualmente manchadas. Nós iremos dominar este mercado desde o início. Além disso, assim que o público souber que existe um mercado negro destas camisetas, perceberão que é um negócio de qualidade. Afinal, quem iria querer imitar uma camiseta sem valor?
O cachorro latiu em concordância.
– Só que a graça da camiseta está no fato de que a mancha é efêmera. Cada mancha é única, e a pessoa terá de tomar muito cuidado para não gastá-la… Puxa, vou escrever isso na etiqueta! Me passe aquele papel!
Cantarolou enquanto escrevia, e depois:
– Fase número três: colocar um pessoal na rua encarando e comentando o quão legal é a camiseta e como eles gostariam de ter uma igual. Vamos pagar aquelas equipes de instanti-móbi e colocar algumas pessoas bonitas andando com as camisetas manchadas por aí. Ao mesmo tempo, propaganda massiva no Instagratificam e no Facebutt. Em questão de dias, será viral. Você vai ver.
Usando de todo o dinheiro de que dispunha, Jonas iniciou sua ideia mirabolante. Era tudo tão miraculosamente simples, que não demorou muito para começar a fazer sucesso. Na internet, aquilo dividia opiniões: uns achavam que era o ápice da moda, uma mistura de arte moderna, urbanismo e roupas; outros, geralmente avós, que era coisa de gente desleixada.
– Onde já se viu? Primeiro roupas rasgadas, depois, amassadas, e agora, manchadas? Daqui a pouco vão andar sem lavar mais!
E esta avó, em particular, estava certa. Enquanto Jonas nadava em rios de dinheiro da sua marca Spotted Shirts, as pessoas evitavam lavar as camisetas pelas quais haviam pagado centenas de falsos.
O que ele não imaginava, porém, é que isso causaria uma crise no setor de venda de sabão em pó e tira-manchas, porque ninguém mais queria lavar roupas. As grandes marcas se reuniram (AMO, Mon Abaju, Lindo, Sebastião e Upy) e decidiram que teriam de intervir, antes que todo um colapso da economia mundial de produtos de lavar roupas ocorresse.
– Imagine, já estão falando que as camisas manchadas serão destaque no desfile em Milão, daqui a duas semanas! Será o fim!
Era quase como o apocalipse.
Iniciaram, assim, uma tática de espionagem e contrainteligência, disseminando propagandas enganosas e absurdas que diziam como a roupa era melhor limpa, perfumada e sem manchas. Não preciso dizer que os principais representantes eram as avós – porque, se querem saber a verdade, as donas de casa estavam achando ótimo não terem mais de lavar roupas.
Tudo iria eclodir em uma guerra civil (dos farrapos) entre roupas sujas e limpas, se Jonas não houvesse previsto isso, do alto de sua montanha de dinheiro.
– Fase 57 – ele disse para seu cachorro, que mordiscava um osso de ouro. – Depois que a indústria de produtos de limpeza descobrir que não adianta eles tentarem vencer a arte, e muito menos me derrubar, eu vou fazer a eles uma proposta que não podem recusar.
Encontraram-se na sede do governo, no palácio do Tajuru, mas Jonas se certificou de que não havia escutas, antes de entrar e fazer sua proposta.
Saiu com um sorriso no rosto e, na sua casa, contou ao seu cachorro, que latiu como quem diz: “Geniau!”.
– Fase 57: lançar com a indústria uma técnica de limpeza a seco que deixe as manchas, mas tire o cheiro e, especialmente, o suor impregnado. Mas não tão bem… Porque a fase 58 é: investir pesado na indústria de perfumes e desodorizador de roupas manchadas.
O sucesso foi fenomenal.
E, assim, tudo, como sempre no país Pernil, terminou em pizza. Ou, pelo menos, manchas de pizza, que sempre davam um toque especial à arte das camisetas.
Nota do autor, outubro de 2021: pois é, esta aqui eu também me lembro bem de como ocorreu. Estava já no meu R4, morava longe do hospital, e derrubei café na camisa, porque um desavisado saindo de um táxi simplesmente saiu com tudo sem ver, e nem para pedir desculpa. Não tenho certeza se fiquei o resto do dia com a camisa manchada, se voltei para casa, atrasando-me, lógico, para trocar, ou se fui ao conforto e tentei tirar a mancha da camisa. Tudo o que sei é que, enquanto fazia fosse lá o que fosse, a crônica foi se desenrolando em minha cabeça.
¹ Mausoléu Artístico Só de Porqueiras. Alguns poderiam pensar que é o Museu de Arte de Santa Paula, mas não se engane.
² Bairro barato de vendas de produtos que acidentalmente caíram dos caminhões no transporte
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais