A Orelha Afinada
Hélio era um cara normal; não fazia absolutamente nada de excepcional de sua vida. Bom, mais ou menos. Ele era o responsável por fazer a transcrição simultânea do áudio da televisão, aqueles caras que fazem o chamado closedi quepitiom, que muitas vezes se vê por aí, e que não raramente tem diversos erros.
Bom, talvez aí houvesse uma diferença entre Hélio e os demais: ele não cometia erros. Era muito raro ver qualquer transcrição dele em que houvesse qualquer errinho, por mais simples que fosse. E não só isso; ele também transcrevia tudo, absolutamente tudo, até mesmo tossidas. Para isso, Hélio não contava com nenhum aparato excepcional, exceto pela sua boa audição e suas ágeis mãos.
Ele fez isso sua vida inteira e era muito bom, realmente muito bom. No entanto, certo dia, quando já estava com mais de 30 anos de carreira, o pior aconteceu.
Levantou pela manhã com os ouvidos zumbindo.
No início, achou que não era nada, que era somente uma coisa temporária, que logo iria embora; mas, ao contrário, foi apenas piorando, mais e mais. Logo, não conseguia escutar mais nada, apenas aquele zunido contínuo, ora mais forte à direita, ora mais forte à esquerda.
– QUERIDO!!!
– Oi, amor, o que foi?
– PARECE QUE ESTÁ SURDO! NÃO VÊ COMO ESTOU GRITANDO PARA VOCÊ ME ESCUTAR?
Ele respondeu de volta, mas sua voz parecia que não saía, então ele teve de falar ainda mais alto do que o zumbido.
– É QUE OS MEUS OUVIDOS ESTÃO ZUMBINDO! NÃO CONSIGO ESCUTAR NADA!
– EU PERCEBI! MAS QUEM ESTÁ SURDO É VOCÊ, NÃO EU! NÃO PRECISA GRITAR!
Foi aí que ele se tocou de sua triste realidade.
– Meu Deus do céu! Como vou conseguir trabalhar?
Era uma boa pergunta. Pela primeira vez, em trinta anos de carreira impecável, Hélio se sentou em sua cadeira, olhando para a tela e para os fones de ouvido com dúvidas nos dedos. O que escrever? Ele não conseguia escutar sequer os amigos o chamando para o café, como faria?
Mas não podia deixar o trabalho de lado; eram oito e vinte e cinco, logo começaria o jornal da manhã, e ele teria de entrar em ação por uma hora e meia. Colocou seus fones de ouvido, deixou-os no volume máximo, estalou as juntas das mãos e do pescoço e começou.
– Bom dia. Eu sou Chico Palmeira.
– E eu sou César Tralha.
– E este é o jornal da manhã de Santa Paula. Vamos começar com as notícias de hoje: a cratera mais conhecida como “Bert” engoliu, no meio da madrugada, um caminhão cegonha com dez Nervoset Cruzado…
Na sua cadeira, Hélio suava frio. Escutava apenas parcialmente o que eles estavam falando e, tirando a apresentação, que era lugar comum e ele não tinha como errar, não sabia o que escrever embaixo. Vendo as imagens, começou a inventar:
“E este é o jornal da manhã de Santa Paula. Vamos começar com as notícias de hoje: a cratera “Bert”, como é chamada, será finalmente tapada, afirma o novo prefeito, Adado. Depois de engolir um caminhão cegonha…”.
E assim foi. No lugar onde faziam a edição do jornal, rapidamente deram o alerta: tinha algo errado com a legendagem.
– Mas não é possível. Deve ser erro do computador, ou alguma coisa do gênero! Nunca vi o Hélio errar assim! – disse o chefe. – Manda ele trocar de máquina.
Mandaram a mensagem pelo computador, na tela do funcionário; ele imediatamente girou a cadeira para o computador ao lado e prosseguiu com a sua legendagem.
“Depois de suspender a alimentação de crianças em creche, o prefeito Adado promete que a comida será suprida por uma doação vitalícia do Back Gonald’s…”.
– Não, não é possível! Chamem o transcritor substituto.
– Não temos um substituto, chefe! Hélio nunca precisou – alguém respondeu.
– Santo Deus! E quem pode substituí-lo?
Todos se entreolharam; quem poderia?
Finalmente, uma alma caridosa se candidatou.
– Mas eu quero 15 segundos de dilei, e alguém para conferir o que eu escrevi!
– Está certo. Entrem lá! Rápido, rápido!
A equipe se juntou atrás da porta e, com uma precisão do BODE¹ (Batalhão de Operações Delicadas), enquanto um foi para o computador lateral, colocou o fone e iniciou a correção, outro removeu Hélio cuidadosamente, permitindo que um terceiro se sentasse, colocasse o fone e iniciasse a revisão do primeiro.
Hélio, que estava surdo, só percebeu o que estava acontecendo quando se sentiu sendo puxado e viu que o fone foi retirado de seu ouvido.
– Pelo amor de Deus, Hélio! Veja o volume disso! Você tá surdo?
– OI?
Em pouco tempo, ele estava na sala do chefe.
– EU NÃO SEI O QUE ACONTECEU, CHEFE! EU ACORDEI ASSIM, COM OS OUVIDOS ZUMBINDO!
– Não precisa gritar, Hélio.
– O QUÊ? FALE ALTO, NÃO ESTOU OUVINDO!
– NÃO PRECISA GRITAR, HÉLIO! TIRE O DIA PARA ACHAR UM MÉDICO, E RÁPIDO!
– SIM, SENHOR!
Ele nem pensou em recusar. Precisava da sua audição.
Naquele dia mesmo, foi ao hospital, onde, depois de horas e mais horas de filas, finalmente foi atendido.
– DOUTOR, MEUS OUVIDOS ESTÃO ZUMBINDO! – gritou. – E EU NÃO CONSIGO OUVIR E PRECISO DOS MEUS OUVIDOS PARA PODER TRABALHAR! EU FAÇO TRANSCRIÇÃO DE CLOSED QUEPITIOM!
– Tudo bem, senhor, não precisa gritar. Eu vou dar uma olhada nos seus ouvidos.
– O QUÊ?
– VOU VER SEUS OUVIDOS! – o médico gritou; pegou um otoscópio, olhou um, depois olhou o outro, voltou para o primeiro, foi para o segundo; e, em dúvida, fez um sinal para que esperasse e foi chamar um colega para opinar.
Logo, havia dezenas de médicos, enfermeiros, auxiliares, recepcionistas e faxineiros fazendo o maior zunzunzum.
– O QUE FOI? – ele gritava, mas ninguém ouvia.
Por fim, quando todos se aquietaram, ele ficou face a face com o médico.
– HÉLIO, O SENHOR TEM O MAIOR TAMPÃO DE CERA QUE EU JÁ VI NA MINHA VIDA!
– E TEM COMO TIRAR, DOUTOR?
– SÓ COM CIRURGIA!
– E DÁ PARA FAZER?
– ATÉ DÁ, MAS TEREMOS DE TIRAR SEUS OUVIDOS JUNTOS.
– SANTA MÃE DE DEUS! NÃO QUERO NÃO, DOUTOR!
E se foi, sem perguntar mais nada. Não iria perder suas orelhas, não, de jeito nenhum! Preferia morrer com os ouvidos zumbindo e semissurdo, do que nunca mais ouvir nada.
Nosso herói ficou desolado. Como iria trabalhar? Aquele trabalho era a sua vida! O que faria, agora? Como iria se sustentar?
Bom, esta história ficaria muito chata se eu lhes contasse aquelas coisas do dia a dia, como o fato de que Hélio foi ao médico do INSS, solicitar uma aposentadoria, que houve uma briga legal para provar que era uma consequência do seu trabalho e tudo mais. Vou pular para a parte interessante, quando ele, que ainda estava no litígio legal, foi à igreja (coisa que ele nunca fazia), desesperado.
Ajoelhou-se para pedir ajuda a Deus.
– Ó, senhor – ele disse, em pensamentos. – Por favor, me mande uma solução!
E ficou assim por uns quinze minutos, tremendo, sacudindo, chorando…
Quando se levantou, estava na hora de os músicos afinarem seus instrumentos. E, neste momento, ele percebeu uma coisa notável: o tom do zumbido e o tom dos músicos afinando seus instrumentos eram exatamente o mesmo!
E não só isso; quando começaram a tocar, ele percebeu que cada nota lhe dava um arrepio diferente no corpo.
– SANTO DEUS! – ele gritou; todos achavam que ele estava manifestando, mas na verdade só havia encontrado sua resposta.
Correu para casa antes mesmo de o culto acabar. Lá, entrou no computador e começou a buscar informações na internet; havia um programa especial que emitia o som das notas de qualquer instrumento que quisesse. Começou a testar; o Do fazia o cacho da direita da sua testa se retorcer; o Ré fazia o da esquerda; o Mi repuxava um cacho da têmpora esquerda; o Fá, da direita; o Sol puxava um cacho de trás de sua orelha direita; o Lá, da orelha esquerda; e o Si, por fim, bem do meio da nuca. E para saber se era bemol ou sustenido, era só questão de notar se era um pouco para cima ou um pouco para baixo.
– Olha só! – exclamou.
E começou a estudar; trancou-se em seu escritório por dias, semanas, e, quando sua esposa tinha certeza de que ele já estava ficando doido, pois tudo o que ouvia era sons de notas, o homem cantarolando, viu um piano ser içado pela janela para colocar no escritório, sem que ele tivesse lhe falado absolutamente nada a respeito.
– Hélio! O que está acontecendo?
Mas ele se fez de surdo.
Por fim, um mês depois, Hélio finalmente deu as caras para sua esposa e filha.
– Pelo amor de Deus, querido! O que é que está acontecendo, afinal de contas?
Ele apenas levantou os dedos e as fez esperar; em seguida, pediu que ela colocasse qualquer música para tocar no rádio.
– É melhor não contrariar… – murmurou a filha. – Vai que ele volta para o quarto e não sai nunca mais?
Eles colocaram algo de Morrarte² para tocar; Hélio sentou-se e, como louco, começou a escrever, escrever, escrever naquelas linhas, fazendo pontinhos, tracinhos, etc. E, por fim, acabou; tinha diversas folhas de partituras sobre a mesa. Ele as mostrou, sem falar nada – pois não conseguia escutar o que falava, mesmo, então, qual a diferença? –, para que todos aprovassem, colocou-as no piano, sentou-se e começou a tocar. E, que surpresa! Era exatamente a mesma música!
– Nossa, pai! Como você fez isso? – a filha perguntou.
Ele leu seus lábios e respondeu:
– EU DESCOBRI O QUE EU TENHO! UMA ORELHA AFINADA!
Filmaram Hélio fazendo aquilo e colocaram na internet; em questão de poucos dias, ele virou um sucesso nacional. No País Pernil, entretanto, a música, em especial a clássica, não recebe muito mais importância do que a educação além da alfabetização, então Hélio não teve muito mais do que 15 dias de fama.
Entretanto, logo ligaram de um conservatório Pseudovestido³, convidando-o para trabalhar lá; e Hélio, que não era bobo nem nada e ainda estava esperando a resposta do INSS (já fazia seis meses!), não hesitou e foi imediatamente.
Gostaria de dizer que ele viveu feliz por muitos anos lá na Pseudoropa, mas não é assim que as coisas acontecem no planeta Areia.
Certo dia, Hélio acordou sem o seu costumeiro zumbido em seu ouvido, o que foi tão estranho, que era como se o próprio silêncio fizesse barulho. Tentou cantar uma escalazinha de sol maior, mas, ora vejam só, nada de os cachos de sua cabeça se arrepiarem.
Olhou para os lados: de cada lado, o maior tampão de cera que ele já havia visto na vida.
– Nãooooooo!!!!
Iria começar tudo de novo…
Nota do autor, setembro de 2021: eu acho que tive a ideia desta crônica por uma combinação de dois motivos: primeiro, um zumbido no ouvido (claro!); segundo, um médico que puxava ferro na academia do meu clube em uns horários tão esdrúxulos quanto os meus e que dizia que trabalhava como tradução simultânea de congressos (o que eu achei uma loucura). O pior foi o dia em que ele disse que, se não sabia alguma palavra, bem, era só não traduzir. Coisa que Hélio nunca faria!
¹ O Batalhão de Operações Delicadas, sediado no Mar de Fevereiro, é responsável por todas as atividades mais delicadas da polícia do País Pernil, como, por exemplo, resgatar gatos das árvores. No alto do morro controlado pelos traficantes. Vestidos de bailarinas. Ao meio dia. Sem água. E munidos de tesouras infantis de pontas redondas. Com desenhos de bonecas.
² Músico famoso nascido na Páustria, começou a tocar e compor aos cinco anos de idade; aos seis entregou sua primeira ópera para o imperador Paustramíaco. É, eu também não acredito nisso, mas existe a teoria de que ele já tinha uns nove quando começou a tocar, e, na verdade, seu pai que só o registrou como nascido aos quatro anos, o que explica esta situação bizarra. Fanfarrão!
³ Termo utilizado para se referir a quem mora na Pseudoropa.
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais