A Revista THQ
A ideia começou em uma conversa de bar, bastante despretensiosa no começo.
– Eu gostaria de ser um repórter. Tenho certeza de que repórteres têm o direito de comer de graça em restaurantes e coisas do gênero. Vida de repórter deve ser muito boa.
Mais algumas bebidas, e a ideia efetivamente tomou forma.
– Sabe, nós poderíamos fazer isso – Adalberto comentou.
– Como? Da onde que a gente vai tirar o dinheiro pra imprimir uma revista? E de onde que a gente tira os assuntos?
– Mas não precisa fazer as coisas de verdade, Cleyton.
– Como assim?
– A gente monta uma revista online, que não gasta praticamente nada pra manter. E, quanto aos artigos, a gente inventa qualquer baboseira, só pra dizer que tem alguma coisa. Atualiza de vez em quando, coisa e tal…
– Tá, e daí?
– Ué, a gente faz uma carteirinha de repórter da revista, vai no restaurante, mostra a revista no celular, fala que vai fazer uma avaliação do restaurante para postar lá, e pronto.
– E eles vão deixar de boa?
– Lógico! A gente falsifica, coloca lá uns dados que milhares e milhares de pessoas entram no site. Vão achar que é uma revista de sucesso!
– Parece interessante…
Ideia de bêbado, porém, geralmente parece maravilhosa no começo e se mostra terrível na ressaca. Uma semana depois, contudo, conforme eles pagavam a conta exorbitante de um restaurante, na qual ainda tiveram de pagar o cuver artístico de um pianista com tremedeira, a ideia pareceu realmente maravilhosa.
– Vamos pôr em prática, Beto!
– E como vamos chamá-la?
– Que tal… THQ? Tudo o que um Homem Quer?
– Beleza! Vai ser um sucesso!
E assim foi. Adalberto era bom com a internet, Cleyton era bom com textos. A exemplo de Fernando Pessoa, passou-se por 10 repórteres diferentes para fazer as notícias falsas da revista. Logo, a THQ dizia estar havia 3 anos no mercado, em plena ascensão, com mais de 10 mil fiéis leitores e ações da bolsa de valores que não paravam de crescer.
– Tá, acho que a gente exagerou um pouco.
– Ok, ano que vem a gente põe a bolsa, então.
E assim foi. Fizeram crachás com suas fotos e identificações (falsas, obviamente; usaram os codinomes de Jorge e Miguel) e saíram para arriscar a sorte pela primeira vez.
– Mas… Pra qual restaurante a gente vai? – indagou Cleyton/Jorge.
– Boa pergunta – respondeu Adalberto/Miguel.
Ele era da opinião de que deveriam ir logo de uma vez a um chique; o outro, de que deveriam começar devagar e em lugares menos movimentados, nos quais, caso não aceitassem dar a refeição, eles ao menos conseguissem pagar com os parcos salários.
Arriscaram um de comida brasileira, não muito famoso. Nervosos, Adalberto Miguel foi o primeiro a se apresentar, mostrando a identidade e o exemplar online na tela do seu celular, onde já haviam falsificado a avaliação de restaurantes famosíssimos de Santa Paula, como o Fasmese’s.
– Claro, senhores, me acompanhem, por favor.
Atendimento VIP, com direito a bebidas chiques e tudo do bom e do melhor. O que servir?
– O que o chef sugere?
E assim comeram bem. Registraram com expressões sérias em suas cadernetas (que abriram no meio para dizer que já haviam visitado um monte de restaurantes), usaram de toda pompa e circunstância, pediram licença para fotografar o local, para colocarem no site.
– E aí, o que acharam? – perguntou o maître, curiosíssimo.
Cleyton Jorge quase respondeu; mas Adalberto Miguel manteve o mistério.
– Veja a nossa resenha no nosso site. Aqui está meu cartão.
Entraram no carro e viraram a esquina comemorando; sucesso! Haviam conseguido.
– Mas, agora não tem jeito, Beto. A gente vai ter de fazer o artigo.
– Não tem problema, ué. Quanto tempo você leva pra escrever? Vai fazer rapidinho e, se quer saber, eu acho que compensa. Pensa só em quantos falsos a gente não vai economizar?
Os seus olhos brilharam. E, assim, começou a revista. Uma empreitada que inicialmente parecia uma bobagem, mas que logo tornou a THQ a revista mais famosa de toda Santa Paula.
Pouco a pouco, eles foram se tornando mais e mais conhecidos, e suas agendas ficaram entupidas. Não havia um dia em que não saíam para fazer avaliações; restaurantes aguardavam na fila pelo crivo da revista com milhares de falsos leitores, mas que logo passou a ter centenas de milhares de leitores reais.
Com espírito empreendedor, Adalberto Jorge começou a oferecer o espaço para propagandas de empresas na revista; com o patrocínio, passou a investir mais e mais. No ano seguinte, eles realmente abriram as ações na bolsa de valores – e foi um sucesso. Sucesso em cima de sucesso, certa vez os dois receberam uma proposta na redação da revista – que passara do quarto de solteiro sublocado de Cleyton para uma sala gigantesca no Trooklin.
– Cleyton, cê num vai acreditá!!! – o colega entrou gritando na redação, carregando uma carta.
– O que foi, o que foi?
– Chamaram a gente pra avaliar uma Torsche Parrera nas estradas da Alebanha!!! A 250 por hora!
E a THQ expandiu ainda mais os seus horizontes; começou a cobrir efetivamente tudo o que os homens gostam. Tiveram de contratar mais gente para dar conta de todas as avaliações, viagens, shows, teatro, filmes que queriam que avaliassem e recomendassem para o público masculino. Em questão de dois anos, a palavra da THQ era ordem. Não havia quem a contrariasse.
Em histórias comuns, haveria tentativas mafiosas de corrupção, revistas competidoras e coisas do gênero. Em histórias comuns, Cleyton, que estava com medo de que descobrissem a origem nem um pouco louvável da revista, poderia ser assassinado por Adalberto, para garantir que a revista permanecesse com sua história imaculada.
Mas este é o País Pernil, e nele tudo acaba em pizza. Cleyton realmente ficou com um pé atrás a respeito da revista, com medo que logo descobrissem o que eles haviam armado. No entanto, em vez de arriscar sua vida compartilhando seu medo com Adalberto, ele foi mais esperto; vendeu sua parte da sociedade, comprou algumas ações da revista, mudou-se para outra cidade e passou a viver como um empresário milionário.
E Adalberto Miguel, ainda mantendo seu condinome, levou a revista à frente, mas nunca perdeu uma noite de sono com a história da origem da sua revista. Para ele, ela sempre fora, desde o começo, uma revista de verdade. Vocês podem conferi-la online.
Afinal, se está na internet, é verdade, não é?
Nota do autor, setembro de 2021: a história da revista THQ foi baseada na Revista El Hombre, da qual eu era colunista, na época. Lógico que El Hombre não começou de forma tão desonrosa rsrsrsrs, mas foi uma elucubração a partir desta ideia.
Eu gosto bastante do fato de que tudo no País Pernil acaba em pizza. Os pilantras se dão bem, os bonzinhos podem se dar mal, mas podem se dar bem, enfim, tudo dá certo e, se você organizar direitinho, todos comem uma fatia da pizza.
Ah, parece tanto com algum lugar que eu conheço…
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais