A solução de todos os problemas
Felon Tusk¹, um bilionário da Áfraca do Sul², estava em um jantar em família comentando sobre as suas novas invenções tecnológicas e como um chip que pretendia implantar na cabeça das pessoas poderia permitir que aumentasse suas memórias e controlassem objetos somente com a mente, entre outras coisas, quando uma sobrinha impertinente, cheia das ideias reformistas, progressistas e talvez um tanto anarquistas da nova geração, disse:
– Acho um absurdo que a gente fique gastando tanto dinheiro criando essas coisas sem sentido, quando tem gente passando fome na Áfraca! Na própria Áfraca do Sul, a sua terra, tio Felon!
É claro que isso pegou Felon de jeito. Não que ele sentisse alguma coisa pela sua terra natal (além de desgosto), ou que achasse que deveria retribuir de alguma forma (não que tivessem feito algo por ele). Ele só não queria parar de pagar de tio legal para a sua única sobrinha.
– Já sei o que vou fazer. Sabe aqueles óculos de realidade virtual obsoletos da Pear³? Vou criar algo melhor, e vou resolver todos os problemas do mundo!
– Mas, tio…
É claro que ele não escutou mais nada; tudo o que ele queria era uma desculpa para sair daquela reunião chata de família, e ele foi e se trancou em seu laboratório por algo em torno de 73 horas e meia.
Após isso (e maratonar uma série de streaming), Felon surgiu com um protótipo melhorado dos óculos de realidade virtual, que ainda por cima iriam interagir com os seus chips implantados!
Na próxima reunião de família, ele apresentou, encantado:
– Vou distribuir esses óculos de realidade virtual por toda a Áfraca!
– Mas, por que, tio? – perguntou a sobrinha razoavelmente impertinente.
– Com eles, todo mundo vai poder ler e aprender!
– Mas, tio… Tem regiões da Áfraca que nem energia tem! Como eles vão fazer para carregar e usar isso?
Vinte duas horas e mais outra série de streaming depois, ele retornou com a solução.
– Estes óculos vão se conectar com os meus satélites⁴! E os satélites vão mandar um feixe de energia e recarregá-los sempre que preciso! – disse ele.
– Tudo bem, tio, mas você está se esquecendo do principal! A grande maioria está desnutrida, como acha que eles vão conseguir sustentar esse peso todo na cabeça?
– Não diga mais nada!
Trinta e sete horas e um filme vencedor de Toscar⁵ depois…
– Aqui está! Não teremos mais este problema! Está vendo? Agora, ele conta com flutuadores. Essas pequenas hélices farão os óculos flutuarem, e eles não vão mais pesar na cabeça dos nossos afracos.
– Mas, tio, você não está entendendo a raiz do problema! Eles passam fome, lá! Como eles vão conseguir estudar, se concentrar, aprender qualquer coisa, se não têm nem onde morar, nem o que comer…
– Não diga mais nada!
Uma semana depois (e mais três filmes maratonados), Felon retornou, triunfantemente.
– Veja só!
Entrou uma criança da Áfraca do Sul, magrela, claramente desnutrida, mas barriguda, pequena demais para a idade, e Felon, com os óculos, aquele trambolhão em forma de rosquinha, nas mãos.
– Veja o que eu criei!
A criança colocou os óculos na cabeça, que pendeu perigosamente para frente, e a sobrinha teve medo de que seu pescoço quebrasse. O flutuador ativou, e os óculos ficaram mais leve, basicamente sustentando a criança; na sequência, uma agulha saiu da parte de trás dos óculos e se fincou na nuca da criança.
– Ele acaba de implantar um dos meus chips! Vamos, garoto, repita todos os números do Pi!
– 3,1415…
– Um gênio!
– Mas, tio…
– Calma, calma! Me diga, você está com fome?
– Não sinto fome!
– Frio?
– Não sinto frio!
– Mas, tio…
– Calma, calma que tem mais! Ativar cobertura!
De cima dos óculos se projetou um pequeno telhado, com lona que caiu ao lado e cobriu a criança.
– Muito bem! Protegido do sol e da chuva!
– Pelo amor de Deus, tio! E o calor? E a água? E a comida? Ele não pode só ser enganado o dia todo, achando que não está passando fome e…
– É claro que pode! – disse ele, que adorava ouvir a própria voz. – Imagine! A Áfraca inteira usando isso, todos distraídos da vida horrorosa que levam, todos à disposição, com meus aparelhos, em contato direto com os seus cérebros e…
– Tio! Isso é terrível!
– Chega, Sofia, chega! – exclamou Felon. – Jarbas, leve ela daqui. Tenho muito a trabalhar. Tem alguns países cujos exércitos vão gostar muito da minha tecnologia…
O aparelho continuou preso à criança, sendo energizado pelos satélites. Ela morreu alguns dias depois, mas Felon não percebeu, porque ela estava totalmente coberta pelo seu telhadinho. Não que fizesse diferença; tudo estava seguindo conforme os planos. Tinha três países muito interessados naquela tecnologia e… Quer saber? Por que não vender para os três? Que diferença faria? Logo ele estaria em sua estação lunar particular, mesmo…
¹ Felon Tusk é um inventor muito famoso em todo o planeta Areia, que conseguiu bilhões e bilhões de forma relativamente duvidosa. Você talvez já tenha visto algo sobre ele na crônica “A Bela e a Fera”, mas não vou dizer qual delas é a crônica verdadeira sobre Felon.
² O país mais ao sul da Áfraca e também o mais desenvolvido, o que é algo engraçado, quando se pensa, porque, no Areia, quanto mais ao Norte, mais desenvolvido, exceto pela Áfraca do Sul e pela Ausgralha. Bem, talvez, pensando bem, a regra seja: quanto mais longe do centro, mais desenvolvido. Exceto quando falamos das periferias da cidade e… Ah, quer saber, desisto. Não tem regra que resista ao Areia.
³ Empresa de tecnologia responsável pela criação do Youphone, um telefone celular que custa o preço de um carro, mas que, ainda assim, as pessoas estão dispostas a pagar, só porque o símbolo é uma pêra meio comida.
⁴ Ninguém sabe exatamente a utilidade dos satélites de Felon. Espionagem, internet banda larga, guerra espacial, ou simplesmente a possibilidade de tirar fotos dele mesmo em todos os ângulos e distâncias possíveis? Com Felon, qualquer coisa era possível.
⁵ Toscar é a premiação do planeta Areia para os melhores filmes. Ela é realizada todos os anos nos EUA, Emirados Unidos da Arrogância, e, é claro, sempre somente os filmes deles ganham. O negócio é literalmente tão tosco, que a única chance de um filme que não seja de lá ganhar se baseia na categoria “Melhor filme estrangeiro”. É quase como uma mãe criar uma premiação para os próprios filhos e ter uma categoria especial para os primos. Haja arrogância!

O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais