A Troca de Casas
A cidade de Santa Paula havia chegado ao seu limite. Lá moravam, pelo menos, 12 milhões de habitantes, mas aqueles que vinham de cidades satélites ao seu redor se juntavam como uma verdadeira chuva de meteoros, de forma que a cidade, vista de cima, parecia um enorme formigueiro com 17 milhões de formigas. Pegando fogo em diversas partes.
O prefeito de Santa Paula não teve outra escolha, no dia em que a cidade simplesmente parou – exatamente, parou. Geralmente as pessoas já estavam saindo quatro, cinco horas mais cedo para chegar ao trabalho a tempo, e demorando mais quatro a cinco para voltar para casa, mas, neste dia, o trânsito foi tanto, que a cidade simplesmente travou, da mesma forma que o seu computador costuma fazer quase sempre. Pessoas pelas ruas desligaram os carros e saíram e, como era uma sexta-feira, e não havia solução mesmo, logo vendedores ambulantes fizeram fortunas vendendo cerveja.
Mas, voltando ao prefeito, não só ele não teve outra escolha, se não abrir uma cerveja ele mesmo, já que seu chofer também estava preso no trânsito, como também ele foi obrigado a tomar uma decisão drástica. Iria chamar todos os seus conselheiros, inclusive o Subsecretário de Esmaltes da Lulu (Lulu era a poodle da sua esposa), para uma reunião extraordinária e emergencial. Às dez da noite, que seria o único momento em que chegaria à prefeitura, da forma como as coisas estavam andando. Digo, parando.
Logicamente, como todo bom Paulário (aquele que mora em Santa Paula), não passou, em nenhum momento, pela cabeça de nenhum deles a possibilidade de deixar o carro em casa e ir andando para o serviço. Afinal de contas, todos moravam a pelo menos vinte quilômetros de lá.
Quando todos os conselheiros, inclusive o Subsecretário de Esmaltes da Lulu, conseguiram afinal se reunir, já na hora do Répi Auer, o prefeito só não estava mais estressado, porque havia consumido seis latas de cerveja no longo trajeto.
– Eu chamei todos aqui porque precisamos dar um jeito, definitivamente, no problema deste trânsito insano de Santa Paula. Quero suas ideias.
Começaram a discutir acaloradamente sobre o quanto haviam sofrido no trânsito aquele dia e, depois de meia hora, alguém teve o bom senso de perceber que estavam apenas contornando o problema, sem atacá-lo diretamente, e o Subsecretário de Esmaltes da Lulu sugeriu com alguma veemência (ou tanta quanto alguém responsável por escolher esmaltes de um cachorro poderia ter) que deveriam focar em soluções.
– Mas, para encontrar soluços… Digo, soluções… Precisamos identificar o problema – alguém filosofou.
Poderíamos ficar aqui por horas vendo exatamente o que ocorreu com aquela reunião, mas vamos resumir: ao final de cinco horas, eles chegaram a duas sugestões.
A primeira delas, logicamente ridícula e absurda, sugeria que eles deveriam criar, nos bairros mais periféricos da cidade, minicidades, completas por si só, para que as pessoas raramente precisassem sair de lá, e que os empresários que lá montassem suas empresas ganhariam isenções fiscais e, ainda mais, se empregassem moradores destas zonas, teriam ainda mais isenções fiscais. Muitas palavras bonitas, mas a verdade é que não tinha o menor sentido.
A segunda delas, que foi sem dúvida muito mais inteligente e rapidamente aceita por todos, desenvolveria um sistema online (“Coisa digital, isso sim é futuro!”, diria alguém) que permitiria aos Paulários trocarem entre si.
O que, exatamente? Bem, não é lógico? As casas. Afinal, se faziam isso em Riáliti Chous, por que não na vida real?
Foi tudo muito rápido. No sábado, mesmo, já estavam fazendo lindas propagandas com belos atores mostrando como funcionaria o sistema. Em um mês, haviam desenvolvido o sistema, que na verdade era uma cópia barata de um site de relacionamentos já existente, que alguém desenvolveu nas últimas horas do prazo e embolsou milhões de falsos por isso. Em poucos dias, a rede travou, de tantos que tentaram se inscrever ao mesmo tempo. Mas logo destravou e tudo começou a funcionar.
Era assim o sistema: a pessoa se cadastrava e especificava onde trabalhava, onde morava, quais as suas outras atividades, róbis, etc. O site usava outro site, com seu sistema de mapas, para calcular as rotas; depois, buscava outras pessoas disponíveis pela cidade, que moravam perto do trabalho ou vice-versa; e, por fim, identificava as melhores opções. Assim, um pai de família que morava na Zona Sul e trabalhava na Zona Oeste poderia trocar de moradia com um jovem que morava na Zona Oeste e trabalhava na Zona Sul.
E, se você imaginaria que isto é muito estranho, porque uma família poderia ser desfeita já que cada um iria morar em um lugar, só é estranho para você, porque, se tem uma coisa de que os Paulários gostam é de bagunça. Assim, logo a cidade inteira aderiu a esta nova técnica de evitar o trânsito.
De fato, no começo foi relativamente esquisito, afinal, pessoas que moravam em bairros ricos, mas trabalhavam em locais mais pobres, acabaram tendo de morar em locais nem um pouco… Bem… Mas, como eles eram ricos, e ricos gostam de economizar dinheiro, por isso mesmo que eles são ricos, eles ficaram muito felizes com a economia do aluguel. E os pobres que eventualmente foram para os bairros mais ricos… Estavam realizando um sonho!
Mas o mais esquisito era com as famílias. Quer dizer, para os mais jovens, não tinha problema algum – afinal de contas, eles iriam para casas de famílias, conseguiriam basicamente novos pais, às vezes até mesada e coisas do tipo –, mas, para os casados, era um pouco estranho. Afinal, ficariam a semana inteira separados dos seus cônjuges e só os veriam aos finais de semana – o que, por sinal, solucionou boa parte dos problemas do prefeito. Como as pessoas, durante a semana, ficavam logo ao lado dos seus locais de trabalho, o trânsito na cidade basicamente acabou. Entretanto, aos fins de semana, era uma verdadeira epopeia – a cidade travava de pessoas indo de um lado ao outro para rever suas famílias verdadeiras. Inicialmente, as sextas-feiras à noite e os domingos à noite ficaram superlotados. Porém, como vamos explicar agora, logo o trânsito foi diminuindo…
Porque os novos maridos e as novas esposas, dispondo agora de tempo que antes não tinham, começaram a conversar e a se conhecer – e logo, a se apaixonar. Casos e amantes surgiram; casamentos foram arruinados – mas não só por isso, pois até mesmo aqueles poucos que não trocaram de casa, mas que aproveitaram o trânsito livre da cidade para continuar morando no mesmo lugar, agora com mais tempo para conversar com seus cônjuges, logo perceberam que não havia nada de tão interessante assim para conversarem, e suas vidas a dois foram pelo cano. Como dizem, ignorância é uma benção.
E, os novos casais, mais interessados em suas novas famílias, acabaram ficando por lá mesmo e parando de voltar para suas casas originais aos fins de semana.
Santa Paula viveu por alguns poucos anos na mais bela paz. Nunca antes na história daquela cidade o trânsito fora tão bom.
Porém…
Logo, os pobres não conseguiam mais arcar com os custos das casas dos ricos, e os ricos não aguentavam mais viver naqueles lugares tão… Bem, pobres. E decidiram se mudar.
Criaram até um novo site, agora, que escolhe a casa perfeita para você, sem nem ligar para onde você trabalha. Aliás, quanto mais longe, melhor.
Ah, e o prefeito? Bem, ele foi reeleito e, ao término dos seus oitos anos de mandato, mudou de cidade, junto com o subsecretário. Santa Paula era coisa de louco!
Nota do autor, outubro de 2021: qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência! Mas, de fato, a ideia desta crônica veio, além do trânsito absurdo de São Paulo, de um programa de realidade em que as pessoas realmente trocam de casas. Se não me engano, foi mais uma daquelas crônicas que escrevi na padaria, esperando o horário de entrar para trabalhar.
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais