Amante Político
A situação na Coléria¹ do Norte estava ficando complicada e Júlio e Cláudia decidiram que estava na hora de voltar para o Pernil. Fazia 16 anos que estavam morando na ilha e haviam passado por poucas e boas. Bem, na verdade, muitas e ruins. Júlio era advogado e não houve muito como exercer sua profissão ilha, porque ninguém tinha direito a defesa. Cláudia era professora universitária, mas tudo o que ela podia ensinar estava escrito em uma cartilha que ela tinha de seguir à risca, ou seria executada.
Além disso, todos olhavam torto para eles.
Não, não era porque eles não tinham olhos puxados; era porque eles eram uma cabeça mais altos que qualquer outro daquele país, então, todo mundo tinha de olhar para cima para falar com eles.
Mas, questões anatômicas à parte, depois de passar anos e anos limpando privadas para se sustentar, tudo por causa de uma desavença política, Júlio e Cláudia decidiram que estava na hora de voltar para o Pernil. Não só porque estavam cansados, ou porque os exercícios militares estavam cada vez mais perigosos na região da Atchina, uma vez que o presidente dos EUA², Joey Bidê (é, ele não curte papel higiênico), estava apoiando a Otarânia³ na guerra contra a Tróssia, e a Atchina decidiu apoiar a Tróssia, enquanto a Coléria do Norte fazia exercícios militares, e a Coléria do Sul, aliada dos EUA, porém inimiga da Atchina, que era amiga do governo anterior dos EUA, e do Tapão, que era amigo do governo atual dos EUA, e… Quer saber, eu me perdi. Resta saber que era tudo muito complicado na política externa de lá, e o povo estava querendo se explodir.
Como ninguém poderia sair com vida da Coléria do Norte, eles pegaram barco clandestino e fingiram que se afogaram nas águas do mar da Coléria, sendo resgatados na Coléria do Sul, de onde pegaram um avião para, graças a Deus, voltarem ao Pernil.
E, lá, minha gente, lá estava o verdadeiro motivo de eles finalmente poderem voltar para casa: Alquimista e Polvo haviam se juntado! Pois é, a briga que ocorrera 16 anos antes, que os fizera destruir a própria casa e parar de se falar por todo o período eleitoral terminara em casamento! Quem diria!
Eles voltaram no voo de mãos dadas, observando os cabelos brancos e as rugas que haviam surgido após tanto tempo.
Nos seus políticos, não neles mesmos.
– Se a gente soubesse… – comentou Cláudia.
– Pois é… Nem precisaria ter passado este tempo todo lá na Coléria, sofrendo… – comentou Júlio.
– Mas foi pelo bem do nosso casamento.
– Pois é.
– Eu só…
– O que foi?
– Não, nada.
– Fala.
– Não, eu não quero falar disso.
– Não, fale. Estamos voltando para a nossa vida de verdade, para o nosso país! Não quero que a gente tenha nenhuma desavença, especialmente política.
– Ah, é que… Puxa… Eu devo dizer que eu fiquei bem chateada com o Alquimista.
– Com o seu ídolo? – indagou ele, surpreso.
– É. Quer dizer… Ele passou tantos anos falando mal do Polvo, puxa vida… E aí se junta a ele?
– Acho que eles eram amantes desde sempre – comentou Júlio.
– Como é?
– É sério. Acho que o pessoal do partido dele sempre soube da superioridade do Polvo.
– Então, como você explica o fato que tantos ajudaram para derrubar o governo do TP⁴?
– Eu acho que eles estavam planejando isso desde o começo.
– O quê?
– É sério. Eles organizaram a derrubada da Vilmá, para, depois, entrar um palerma, que faria um governo tão ruim, mas tão ruim, que o Polvo voltaria, legitimado pelo povo.
– Mas, isso não é possível!
– Esse é o motivo da união deles! – exclamou Júlio. Ele passara todos aqueles anos na Coléria filosofando a respeito disso.
– E, eu não duvido nada que, como uma boa amante, na calada da noite…
– Que história é essa de amante?
– Calma, deixa eu contar! Na calada da noite, não duvido que o Alquimista dê um golpe para derrubar o nosso presidente.
– Não!
– Sim! – exclamou ele, dramaticamente. – Você vai ver.
Cláudia deu de ombros.
– Não seria tão ruim. Ao menos, finalmente quem merece seria presidente de verdade.
– Depois de um golpe????
– Que golpe, que nada! Ele foi eleito!
E os dois voltaram a discutir. A discussão foi, de fato, tão feia, com direito a jogar Udon um na cara do outro, que a aeromoça veio e ameaçou botar os dois para fora do avião se não se comportassem.
E, como eles estavam vindo da Coléria, nenhum deles duvidou que fariam isso mesmo, e não lhes dariam nem paraquedas, ou pior, nem amendoim.
Após algum tempo em silêncio, Cláudia finalmente se manifestou.
– Sabe, eu acho que só tem um jeito de a gente resolver isso.
Júlio a encarou. Será mesmo que, apesar de todos aqueles anos que passaram longe da política pernileira, seria ela quem acabaria com o casamento deles? Será que eles realmente não poderiam voltar ao Pernil, sem perder a sanidade por causa de uma coisa estúpida como aquela? Será que o casamento deles realmente só poderia se sustentar em um governo ditatorial, no qual não tinham direito a escolha alguma de presidente (ou ditador)?
– Precisamos votar no Embolsonada.
– Comequié?
Metade do avião se voltou para eles, quando ouviu isso, tão surpresa quanto Júlio.
– Se o Polvo não virar presidente – argumentou Cláudia, em sussurros –, não tem como o Alquimista dar um golpe.
– Mas, Cláudia! O país… O nosso país… Está em frangalhos! Não tem como a gente manter aquele cara lá! Polvo tem que voltar!
– Júlio! O que você valoriza mais? O nosso casamento… Ou o país que te expulsou por brigas políticas?
– Eu… Eu…
Era difícil; suas posições políticas eram como uma pedra fundamental! Sua vida inteira fora partidário dos trambiqueiros⁵! Enquanto estavam sempre viajando durante as eleições, ou vivendo sob uma ditadura, ele conseguira esconder e não pensar muito sobre isso, mas… Votar na oposição… Para sustentar seu casamento? Seria possível? Ainda que isso fosse o último prego no caixão do Pernil?
– Júlio, fala sério, você realmente vai votar no Polvo, depois de ele ter se aliado a seu maior inimigo?
– Eu… Eu…
– Lembra de todos aqueles anos, xingando aquele picolé de chuchu? Lembra que você me fez uma caçarola de chuchu, com direito a óculos? Que você envenenou o meu tucano de estimação? Que…
E ela seguiu, listando todos os motivos pelos quais era inconcebível que os dois se aliassem. Ao redor, o burburinho do avião seguia.
– Mas, e se a gente simplesmente… Argh, não acredito que vou falar isso… Votar em… Outra pessoa que não ele? – disse Júlio.
Ao redor do avião, as pessoas se alvoroçaram.
– Que votar em terceira via o quê! Aqui, o importante é voto útil! Vota no Polvo! Vamos ganhar no primeiro turno! – gritou um.
– Que nada! Vamos votar no Embolsonada! Repitam comigo! Sem vinagra! Sem vinagra⁶! – gritou outro.
E começou uma guerra no avião; o ping-pong de armas nucleares da Coléria se transformou em um ping-pong de comida, ideias e travesseiros de pescoço. O avião começou a se desequilibrar de tanto movimento, e os passageiros de primeira classe foram despertados de seu sono revigorante com máscaras de pepino e massagem Pailandesa. Revoltadíssimos, eles apertaram os botões, esperando que algum funcionário caridoso surgisse e lhes trouxesse uma dose de Whisky de 30 anos para os acalmar. Muito justo.
Um ganso surgiu à frente; os pilotos se desentenderam, especialmente porque um piloto quis puxar para a direita, outro, para a esquerda, e o piloto sênior era isentão e não quis se envolver. Conclusão: o ganso foi destruído pelas turbinas do avião, que falharam, e eles caíram vertiginosamente em direção à Afraca…
Alguns anos se passaram. Júlio e Cláudia não só sobreviveram ao acidente, como estão felizes vivendo em um dos países afracanos: eles moram com uma tribo, que ainda depende de fogão a lenha e de caça para se alimentar e não têm absolutamente nenhum contato com o mundo exterior; no último jornal a que têm acesso, o Pernil ainda era uma ditadura.
A tribo não tem líder, até porque nem tem gente suficiente para isso, nem tantas decisões a serem tomadas. Se alguém discorda, simplesmente vai embora. Os dois estão bem felizes, assim.
Mas Júlio não quer deixar Cláudia adotar um tucano de estimação de jeito nenhum…
¹ Coléria: uma ilha que fica ao leste da Azia (continente que tem este nome, por sinal, pela sua comida muito temperada, que causa azia nos despreparados), perto do Tapão e da Atchina. É dividida em dois territórios, do Norte e do Sul, e eles gostam muito de ping-pong. Com armas nucleares.
² EUA: Emirados Unidos da Arrogância.
³ Otarânia: pequeno país do leste pseudoropeu, faz fronteira com a Tróssia e por um longo período foi aliada dela. Continuam brigando por seus territórios, especialmente por causa do domínio de campos de girassol. É, eu sei, é estranho, mas o primeiro-ministro, Putinho, curte muito flores, apesar de toda a pose de macho que ele faz.
⁴ Cláudia aqui se refere ao famoso golpe que ocorreu no Pernil, durante o governo da Vilmá Duchef, uma política que havia sido habilmente colocada no governo para dar sequência ao governo do Polvo, mas que foi posta para fora em uma manobra arquitetada, entre tantos outros partidos, pelo PSDB (Partido Sou De Boa, o partido do Alquimista). Por quê? Bem, a teoria mais aceita no Pernil é que eles queriam surpreender os roteiristas de uma famosa série política cheia de golpes e reviravoltas, “House of Farts”. E, de fato, eles surpreenderam. O roteirista chefe, em entrevista, disse: “Por essa, nem o futuro esperava”. E o futuro ainda por cima respondeu, dizendo que não esperava, mesmo.
Mais surpreendente ainda foi o que veio depois: Polvo foi preso por corrupção, Jadiz Embolsonada foi eleito baseando sua campanha nesta oposição (e após ter sofrido um atentado com uma comida estragada que quase explodiu suas tripas), e, depois, em uma articulação com o STF (Sempre Te Ferrando, maior órgão legislativo do Pernil), eles conseguiram não só liberar o Polvo (que seria o principal adversário de Embolsonada nas próximas eleições), como culparam o juiz que o condenou e invalidaram todas as delações premiadas. House of Farts perdeu a audiência toda para a TV Câmara. A política do Pernil não é nada além de um roteiro cinematográfico.
Sério. Nem o futuro do futuro previu que o futuro não teria previsto isso.
⁵ TP, trambiqueiros partidários, é o partido do Polvo.
⁶ Vinagra é um medicamento muito utilizado para aumentar a potência sexual. O grande slogan é: “Com vinagra, não vinagra!”. É, eu sei, eles precisam de um slogan melhor… Agora, vamos aos fatos: não se sabe por quê, Jadiz Embolsonada gosta muito de compartilhar com o povo suas peripécias sexuais, ainda que não comprovadas. Os psicanalistas dizem que ele está tentando compensar alguma coisa…
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais