Aniki.dev Ou Como assistir a todos os canais por um preço bem em conta
Foi um colega de trabalho de Maicon quem lhe contou sobre aquele sistema.
– É muito bom – ele dissera. – Você pode fazer pelo site ou ao vivo, o cara te passa um aplicativo e uma senha. Você instala no seu celular ou na sua smart TV, e aí você pode assistir a tudo que você quiser. Eles têm bilhões de canais.
– Bilhões? – Maicon questionou, cabreiro.
– Sim, bilhões! Parece que tem um canal para cada pessoa do mundo!
Ele mostrou a lista na tela do celular; realmente, parecia interminável. Maicon ficou tonto só de olhar.
– Tá, e quanto sai essa brincadeira?
– Trintão no plano mensal. Trezentos no plano família vitalício.
– E você fez qual?
– Lógico que o vitalício! Trezentos é o que eu pagava antes, para manter a TV a cabo!
– E você não achou isso estranho, não? Tipo ilegal?
– Cara, eu estou pagando para um fornecedor. Ele pega até meu CPF e conta bancária para fazer pagamento em débito automático. Isso me parece certinho demais para ser ilegal.
Maicon continuou meio cabreiro, mas, depois de gastar meia hora do seu almoço sendo apresentado ao programa, que se chamava Aniki.dev, ele foi totalmente convencido de que era a melhor coisa para se fazer. Especialmente em tempos de pandemia.
– Cara, você não vai mais precisar pagar Webflix e Amaston e HBO¹ Go e todas essas coisas! Tem tudo em um só!
Seu colega estava realmente empolgado, mas Maicon era desconfiado e, apesar da possibilidade de fazer tudo online, ele considerou que valia a pena se arriscar fora de casa e dar uma passada lá na Santa Ingênua, uma rua de Santa Paula onde se localizava este vendedor de facilidades, um oriental conhecido como Lee San.
Foi à Santa Ingênua em um sábado de manhã; algumas lojas estavam abertas, outras, não, todo mundo de máscara, respeitando o isolamento². Lee estava lá, em uma lojinha no piso inferior, de canto, em um daqueles vários chópins. Ele se apresentou e falou que tinha sido indicado por um amigo, para assinar o tal de Aniki.dev.
– Sim, sim, claro! Muito bom o programa, muito bom.
Maicon confirmou as informações e, de fato, o seu amigo havia lhe contado tudo direitinho.
– Mas, e se eu tiver algum problema?
– Só ligar neste celular aqui – disse o homem, entregando-lhe um cartão que não tinha nada além de um número de telefone.
Maicon concordou, pegando o cartão e passando álcool em gel até a alma. Na sequência, passou os seus dados e, como era uma conta família, o CPF da esposa e dos filhos, para todos terem acesso. Na sequência, o oriental lhe enviou, daquele telefone, um login e senha para o aplicativo. Em poucos momentos, o aplicativo estava instalado e funcionando. Ambos sorriram, mas não deu para ver, por causa da máscara; inclusive, os olhos do oriental estavam de uma forma que não era discernível se estavam fechados ou abertos.
– Muito bom! Muito bom! – exclamou o vendedor. – Agora, preciso da sua conta, para o débito.
Maicon passou a conta, o homem registrou em sua tabela.
– Fique tranquilo, hoje é sábado, cobrança só na segunda. É bom ter sua conta. O senhor vai ganhar bastante também.
O homem não entendeu muito bem, então deu de ombros e seguiu para casa, com o cartão do homem e um papel com instruções em um potroguês muito macarrônico de como instalar na sua televisão inteligente.
À tarde, lá estavam ele e toda a sua família, sentados no sofá, surfando pelos 2.137.759.801 de possibilidades de entretenimento disponíveis na televisão.
– Isso é inacreditável! – ele exclamou, contentíssimo. Era barato demais! Ia ligar imediatamente para cancelar a sua assinatura da televisão a cabo.
…
Alguns meses depois, Maicon recebeu uma mensagem estranha no celular, vinda do número que o tal de Lee San lhe dera. Dizia assim:
“Parabéns! Pessoas curtindo seu canal. Continua assim e vai ficar rico. Segue dicas para ganhar mais dinheiro”.
Na sequência, um arquivo em PDF com diversas instruções. Dentre elas, havia: iniciar discussões políticas (apenas nacionais) na sala de estar; falar mal de outras pessoas; iniciar atividades conjugais diante da televisão.
– Mas que merda é essa? – Maicon questionou. E mandou uma mensagem para o homem.
“Que canal?”
Isso veio com uma resposta pronta:
“Você ainda não conhece o seu próprio canal? Acesse agora no menu o ‘Me TV’ e curta tudo o que você está fazendo, 24h/dia, 7 dias por semana!”.
– Que merda é essa?
Ele ligou a televisão e se sentou no sofá; a quarentena havia acabado e as crianças estavam de volta na escola, sua esposa, no trabalho, mas ele fora remanejado para um roumi ófici permanente (os diretores disseram que isso daria uma economia gigantesca para a empresa, mas algo fora revertido para o salário dos funcionários? Pois é), de forma que estava sozinho em casa. Foi no menu para o “Me TV”, que tinha, realmente, um lugar de destaque, mas para o qual ele nunca tinha prestado atenção até então. E qual não foi a sua surpresa ao se ver na própria tela, encarando a televisão toscamente, ainda de pijama.
– Que merda é essa? – ele repetiu.
– Que merda é essa? – ecoou a televisão.
Só não saiu de pijama, porque teve um certo bom senso, mas em poucos minutos estava no carro, voando para a loja do tal de Lee San.
– Lee, mas que merda é essa de Me TV?
– Ah, Maicon San! O senhor não gosta?
– Lógico que não! Como que estão me filmando? Isso é maluquice!
– Fica tranquilo, Maicon San. Tem bilhões de canais, né? Quase ninguém ver o seu. Mas, se o senhor quiser, dá para ficar rico com isso, sim, sim. Tem gente ganhando milhões!
– Não, eu não quero gente me olhando! Imagina! Como faço para desativar isso?
– O senhor assinou plano família vitalício, né? Não dá. É vitalício.
Maicon saiu bufando da loja e, sem muita escolha, tentou levar a vida adiante, como se nada houvesse acontecido. Só achou melhor tirar a televisão do seu quarto de casal, dizendo para a esposa que era algo para a higiene do sono, porque já passava muito tempo na tela com aquela história de Roumi Ófici. Ela acreditou.
…
Certo dia, Maicon recebe uma nova mensagem:
“Não fala mal da Atchina. Nem da Tróssia. Nem do Dumb³. Dica de amigo”.
Aquilo foi a gota d’água; o quanto a televisão conseguia ver ou ouvir? E, como assim, ele não podia falar mal daqueles países? O que estava acontecendo no mundo?
Ele morava no terceiro andar, e a sua janela da sala dava para um pequeno terreno nos fundos, que servia de depósito de lixo. Não pensou duas vezes; com satisfação, jogou a televisão pela janela, pensando que os telespectadores certamente curtiriam a vertigem da queda livre. Talvez, até lhe rendesse uns trocados.
Fez a mesma coisa com a outra televisão; problema solucionado. A família não ficaria feliz, mas, fazer o quê? Era só comprar outra e assinar novamente a televisão a cabo. Simples assim.
Mais tarde naquele dia, o homem instalava, feliz, sua nova televisão inteligente, Full HD, 4K, Q Led, fosse lá o que fosse, nem ele mais entendia aquelas especificações. Pediu que instalassem imediatamente a nova televisão a cabo, mas eles só conseguiriam dali a dois dias.
– Bom, vou testar a antena comum, então.
E qual não foi a sua surpresa, ao ligar a televisão, encontrar o seu aplicativo instalado automaticamente.
– Que merda é essa?
“Lee, eu troquei a televisão, mas o aplicativo voltou!”, ele mandou por mensagem.
“Fique tranquilo, é tudo para a sua praticidade. Você não precisa se preocupar em instalar nunca mais!”, foi a resposta, provavelmente automática, porque o português era correto demais.
Maicon afundou a cabeça em suas mãos; do outro lado da tela, no Me TV, ele fazia o mesmo, com um atraso de cinco segundos.
…
A solução foi mudar de casa. Usou a desculpa de que, como ele não precisava mais trabalhar na empresa, poderiam ir para um lugar melhor; em alguns meses, alugaram um apartamento na zona leste, mais próximo do emprego da esposa, e Maicon tomou o cuidado de colocar tudo no nome dela. Deu a televisão de presente para a sogra e comprou outra, um pouco menos imponente, já que não estava sobrando tanto dinheiro assim. Sua esposa achou melhor não contrariar – ela ainda não engolira que as duas televisões haviam caído acidentalmente lá embaixo quando ele estava tentando mudá-las de lugar.
Entretanto, ao instalar a televisão nova…
Maicon acenou para a televisão. O Maicon da televisão acenou de volta, com um atraso de cinco segundos.
Ele saiu gritando pela casa, arrancando os cabelos. Os telespectadores foram ao delírio; adoravam quando aquilo acontecia!
A solução foi dar um sumiço na televisão. Não deu muitas explicações; só disse que havia encontrado Jesus, e que a televisão era coisa do diabo. Fácil, não dá para discutir com um fanático religioso, ninguém nem tentou. Os filhos deram de ombros – poderiam assistir no celular – e a esposa não fazia lá tanta questão de televisão, mesmo. Não tinha nem tempo de assistir!
Poucos dias depois, uma nova mensagem:
“Dicas para otimizar o seu Me TV pelo celular!”
E um novo PDF com dicas, inclusive de como posicionar o celular da melhor forma no quarto.
“Se for assinante do plano família, considere usar dois celulares, de ângulos diferentes, e um com zoom!”
Aquilo era bizarro demais. Estava ultrapassando todos os limites!
Maicon abriu o aplicativo do celular, foi para o Me TV e… Lá estava ele, com cara bobo, olhando para o celular.
– Que merda é essa?
Ele repetiu, com um delay de cinco segundos, na tela do celular.
Uma mensagem:
“Troque o jargão de vez em quando, o pessoal está cansado sempre das mesmas expressões”.
Ele jogou o celular longe, tentando se afastar dele, como se fosse uma praga pior que o duvidovírus.
– Não, não, não!
Teve de tomar soluções drásticas; tampou a câmera do celular com fita isolante; depois, colocou algodão e isolou com mais fita os microfones. Agora, eles não poderiam ver, nem ouvir. Bem, e nem ele, que nunca mais poderia usar o celular.
O aparelho em um canto da sala, ele no outro, sentado no sofá, pensativo; de que adiantava ter um celular que ele não poderia usar? Aliás, de que adiantava manter apenas o seu isolado? Estava encucado com aquelas dicas – o que eles queriam dizer com plano família? Será que tinha um canal específico para cada um da família dele? Decidiu perguntar ao Lee San.
“Sim, sim, cada membro da família tem o seu canal específico!”.
Maicon arremessou do décimo andar o celular, que explodiu em mil pedaços.
…
Cinco meses se passaram, e Maicon estava com sua família em uma pequena comunidade rural no centro do Quênia. Bem, por comunidade rural, ele estava sendo gentil; eram cabanas de pau a pique, latrinas, esgoto a céu aberto e água que vinha de poços artesianos.
Mas não havia eletricidade, celular, televisão ou internet. Estava a salvo daquela maluquice.
No começo, a família achou que era só alguma coisa de férias excêntricas, talvez estafa pelo Roumi Ófici, para escapar da tecnologia, mas quando o negócio começou a ficar sério e Maicon estava decidido a, literalmente, criar raízes naquela terra, houve um racha na família. Todos queriam voltar.
– Não, vocês não podem! Aquele aplicativo…
– O que tem ele?
Ele nunca havia contado para a família. Como contar que havia dado sua privacidade, sua alma praticamente, para um vendedor desconhecido de uma loja na Santa Ingênua?
– Não vai me dizer que você está preocupado com o Me TV? – indagou a esposa.
– O quê? Como você…?
– Ele é ótimo! – exclamou o filho, de doze anos. – Estou fazendo uma grana preta com ele. Aliás, estas férias aqui foram ótimas, me deram várias ideias de coisas para apresentar na próxima temporada de Jeff’s Modern Life! Mal posso esperar para voltar para casa!
Maicon os encarou, o queixo caído.
– Que merda é essa?? – foi tudo o que conseguiu dizer.
– Papai – disse a filha, docemente em seus oito anos. – Muda o jargão. O pessoal já cansou dessa frase.
Pessoas no canal 2.135.789.102, filmado por um antropólogo visitante daquela comunidade, foram ao delírio, vendo Maicon gritar, desesperado.
Não havia como fugir do Grande Irmão.
PS: Caso você esteja curioso, Aniki significa “Grande Irmão” em japonês.
Nota do autor, outubro de 2021: depois de um vácuo de três anos, trabalhando muito em outras coisas, como já relatei em outra nota, finalmente escrevi uma crônica nova. Sua ideia começou porque um residente meu veio todo pimpão mostrar a sua famosa “gatonet”, que tinha acesso a trilhões de canais e ele pagava praticamente nada a um cara da Santa Ifigênia que periodicamente lhe mandava uma nova senha, toda vez que eles provavelmente tinham o sinal interceptado ou qualquer coisa do tipo. Quando eu perguntei se ele não achava isso ilegal, ele falou que não, já que o cara pegava CPF e conta bancária para débito automático…
O resto, vocês já sabem…
¹ Hey, Brother Oswald era uma empresa de televisão do País Pernil que foi feita em homenagem a ninguém menos que o irmão Oswald (os irmãos chamavam Oswald e Olaf). Quando os dois brigaram e Olaf ficou com a empresa, ele criou uma versão de strimingui que curiosamente chamou de Go – como se parar dizer, “vaza daqui, mano Oswald”.
² Sim, o planeta Areia também teve uma epidemia de Duvid-19. Nem te conto o rolo que foi com as Feique-Nius.
³ Presidente dos EUA (Emirados Unidos da Arrogância), um dos países da Emérdica do Norte.
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais