Bigui Bróders
Nos tempos de hoje, em que a mania dos chous de realidade não só pegou como proliferou, até mesmo câmeras de segurança estão sendo usadas para satisfazer aquelas almas curiosas para as quais ver desconhecidos em uma casa na televisão não basta.
Seu Arnaldo foi um destes. Guarda noturno, sempre que voltava do trabalho, curiosíssimo, às sete horas da manhã, ligava a TV para ver quem estava entrando no prédio. E começou a reparar que sempre no mesmo horário uma moça linda – linda, não, maravilhosa – saía para trabalhar.
Era a Heloísa; Heloísa, também, todas as noites, ligava a televisão para ver quem estava entrando e saindo do prédio. E eis que, sempre lá pelas 23h, saía aquele mesmo homem – Arnaldo.
O que os dois não sabiam é que ambos estavam se olhando mutuamente; todos os dias e todas as noites, ambos não desgrudavam os olhos da televisão para ver quem era aquela sua alma gêmea que todos os dias saía para o trabalho. No primeiro fim de semana com esta obsessão, os dois passaram as 48 horas sem desgrudar os olhos da tela – e, como consequência, nenhum dos dois se viu.
Mas na segunda-feira, seu Arnaldo, feliz da vida, viu Heloísa sair; correu elevador abaixo, portão afora, quarteirão para cima e quarteirão para baixo, mas nada dela. E agora?
No dia seguinte, ele se preparou; correu para chegar mais cedo e ficou parado no saguão, esperando que ela aparecesse – mas ela, vendo-o pela TV, não saiu de casa, com vergonha, até que ele fosse embora. O que ele estava fazendo lá, afinal? Não podia sair para encontrar ao vivo o homem que tanto admirava na TV! Não estava preparada!
Nesta noite, foi ela quem ficou lá embaixo, esperando que ele aparecesse para sair, em compensação depois de passar o dia todo se culpando pela sua falta de coragem – mas o elevador desceu reto e parou na garagem! Ela ainda tentou correr atrás do carro, mas não deu tempo – ele já estava longe.
Arnaldo saiu do trabalho decidido, e Heloísa saiu para o trabalho decidida; naquele dia iriam se encontrar. Os dois pararam no saguão às seis e cinquenta e seis da manhã e ficaram olhando para a porta – um para a do elevador, outro para a do saguão. E nenhum dos dois chegava!
Levaram cinco minutos, ambos parados no saguão, olhando sem graça um para o outro, para chegar à mais óbvia das conclusões – eles eram eles mesmos! Mas…
Arnaldo não era tão alto quanto parecia na câmera, nem tão forte. E o que era aquele olho estranho? E a barbicha?
Já Heloísa não era o que ele vira pela câmera – loira, não morena, e chata como uma tábua. E aquele nariz?
Mas os dois se cumprimentaram; ambos se apresentaram, deram um sorriso sem graça, e ficaram nesta situação, até Heloísa anunciar que precisava ir trabalhar. Ele assentiu, dizendo que sabia, e ela lhe disse um até mais.
Desde então, nunca mais olharam para as câmeras de segurança.
(Diego tinha ciúmes patológicos de sua mulher, e ela também. A solução foi implantar câmeras e microfones um no outro; o dia todo gravavam e, à noite, os dois assistiam. Os filhos estranharam; o que os dois faziam a noite toda, trancados em quartos separados, só com a TV? Obcecados com a vida um do outro, pararam de se falar; mas, no trabalho, mesmo sabendo que um veria o que o outro estava falando, desabafavam. O que foi motivo de brigas; depois de dois meses, ambos passaram a se falar apenas para brigar, nas pausas do vídeo. E se separaram. Mas não deixaram de gravar e assistir pela internet o que acontecia um na vida do outro. – Versão enviada para a Mente e Cérebro)
Nota do autor, setembro de 2021: mais uma crônica com o estilo clássico daquelas das Crônicas do País Pernil, extremando algo que, talvez, já tenha acontecido com você.
Note que tem duas versões: a primeira foi para o concurso literário “Falando de Amor”; a segunda, para alguma espécie de concurso da revista “Mente e Cérebro” (que, ao que me lembro, não deu em nada).
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais
David Nordon
13 de junho de 2022 @ 07:49
Publicada na coletânea “Falando de amor”, sob o título “Amor de big brother dura pouco”, esta crônica ficou em segundo lugar no concurso literário “Falando de amor” em 2010.