Casamento Político
Júlio e Cláudia se casaram já há muito tempo, na época de outubro. Era até curioso, porque justamente no ano da comemoração, era época de eleições, e a justificativa para não comparecerem foi “Lua de mel”.
Júlio era um advogado muito famoso, e sua esposa, uma professora de universidade; todos os anos, no aniversário de casamento, eles iam para algum lugar comemorar – Toma¹, Naris², Ondaí³… Deste modo, nenhum dos dois nunca soube em quem o outro votaria, uma vez que nunca participaram das eleições desde a união. Comentários políticos em casa praticamente não havia, porque ambos estavam geralmente ocupados demais para chegar a um ponto de tanta inutilidade em que comentariam sobre algo que não tem mudança no mundo.
Eles sempre se deram muito bem e nunca brigaram, até as últimas eleições; haviam planejado ir para alguma ilha exótica, perto da Coléria⁴, e já estava tudo arrumado até o infeliz do ditador norte-coleriano resolver testar uma bomba atômica e ameaçar a vida de qualquer coisa na região. Assim, ficaram ambos com um mês para ficar em casa, sem saber exatamente o que fazer.
Diante de tanta, mas tanta ociosidade, começaram a discutir de política, e aí a coisa ferveu, porque os dois descobriram, neste dia, que havia algo ainda maior do que o casamento: a opção política.
– Engraçado, não? Primeira vez que vamos votar, desde que nos casamos – comentou ele.
– Sim… Falando nisso, será que eu ainda lembro como se vota?
– É apertar alguns botões, como você pode esquecer?
– Ah, mesmo assim…
– Aliás, em quem você vai votar?
– Lógico que no Alquimista! – respondeu ela, como se fosse a coisa mais natural do mundo. – Em quem mais?
Seu marido rapidamente levou a mão ao peito, fazendo uma cara de sofrimento como a de alguém que sente um caminhão a esmagá-lo.
– Naquele chuchu de óculos? Como assim?!
– Por quê? Não vai me dizer que você vai votar no Polvo?!
– Vou sim! Sou TP⁵ e não abro mão! – exclamou o esposo, quase infantilmente.
Eles ficaram tão chocados um com o outro que pararam imediatamente de se olhar. Recusaram-se mutuamente a dormir juntos, sem falar palavra, tendo como resultado dois dormindo em um sofá (de cômodos diferentes) e ninguém na cama.
Pelos dias seguintes, continuaram com o não-olhar de ódio. Nos locais de trabalho, iniciavam discussões com seus colegas sobre o absurdo da escolha do cônjuge, de como podia escolher tal ser incompetente para ser presidente, de como poderia confiar quatro anos nas mãos daquela criatura, de como podia se sujeitar a isso…
Em casa, virou clima de guerra.
Ao chegar, Júlio havia feito o jantar e posto a mesa, como se nada tivesse acontecido.
– Nossa, que cheiro bom! O que é isso?
– Chuchu – respondeu o outro, secamente, mostrando uma panela repleta do vegetal (é um legume? É um condensado de água? O que demônios é um chuchu???), com direito a uns óculos velhos dentro. – Eu sei que você adora.
A resposta dela foi criar uma maré vermelha artificial no aquário e intoxicar todas as caríssimas estrelas do mar que possuíam.
– As minhas estrelas! – gritou ele.
Em resposta, ele deu uma das estrelas para o tucano de estimação deles (o Alqui – agora ele sabia por que tinha esse maldito nome), que acordou caído de bruços no dia seguinte, a língua de fora.
Ela se relevou a dar indiretas diretas, colocando dólares nas cuecas dele.
Como resposta, ele vendeu todos os vestidos caríssimos dela, imitando o que a Su Alquimista (não) fizera.
A dela foi ainda mais brutal; no dia seguinte, ele acordou com um dedo mindinho ensanguentado do seu lado, na cama, e depois de berrar como um louco por cinco minutos, levou ainda mais dez para conseguir se convencer de que não era o dele que estava lá (e, de quem era, nunca iria saber).
Depois disso, ambos traçaram uma linha, dividindo a casa em dois, e um pintou a sua metade de vermelho, com muitas estrelas e números 31, e o outro de azul, com muitos 54 e tucanos. Nos carros, adesivos cobriam os vidros; bandeirinhas eram acenadas para lá e para cá, e andavam por aí com camisetas do partido.
Depois de um tempo, Cláudia chegou em casa para encontrar o marido e cinco dezenas de pessoas reunidos na sala, encobertos pelo fumo de charutos cubanos, discutindo sobre o governo do companheiro Polvo.
Irritada, no dia seguinte ela havia feito uma sede local do PSDB⁶, distribuindo folhetos e botões e tudo mais.
Como resposta, o marido alugou um trio elétrico berrando “Eô-Eô, Polvô, Polvô!” o dia inteiro e o instalou na sua garagem; não só isso, deixou a barba crescer, pintou o cabelo e começou a falar engraçado, fingindo que não tinha um dedo.
Para não cair na repetitividade, ela alugou um Zepelim da Badyear⁷ para fazer propaganda do seu partido e o prendeu à sua metade da casa.
E foi assim até o dia das eleições.
Conforme os resultados eram apurados, atualizados de segundo em segundo, os dois grupos, juntos porém separados na casa, gritavam e berravam a cada voto à frente que um passava do outro.
Quando faltava apenas uma pequena porcentagem das urnas a serem apuradas, os dois grupos começaram a discutir ferozmente sobre quem iria ganhar, e logo passaram a se pegar na pequena sala dividida em dois da casa; em pouco tempo, destruíram as duas televisões, e, botando a culpa uns nos outros, aumentaram ainda mais a briga. Em questão de minutos, estavam do lado de fora da casa, virando o trio elétrico, afundando o dirigível, atraindo vizinhos partidários, desesperados. E, como era época de eleições, a polícia não podia fazer nada.
A bagunça prosseguiu a noite inteira, nenhum deles ciente do resultado, e terminou pela manhã, com todos caídos no chão, a casa meio em chamas, meio demolida.
Quando perceberam o que havia acontecido, descrentes na destruição que uma simples desavença política havia causado, nenhum dos integrantes do casal teve dúvida; fizeram as malas e partiram para sempre do país para a Coléria do Norte, onde não teriam como brigar, porque também não teriam como escolher outro ditador.
(Ah, sim, os partidários aproveitadores foram presos alguns dias depois, porque, não satisfeitos com a briga que haviam tido, continuaram por mais uma semana a brigar, especialmente quando as apurações saíram nos jornais…).
Nota do autor, setembro de 2021: esta história foi escrita, como se vê, na época das eleições de 2006 no Brasil, mas poderia servir muito bem para qualquer outra eleição que vimos nos últimos anos, tanto no Brasil, como no mundo. A polarização está, infelizmente, tornando tudo muito difícil, e eu gostaria que tudo terminasse em pizza, assim como no País Pernil, mas, parece que está difícil…
¹ Toma: Capital da Ipalha, tem este nome pelo costume que os imperadores tomanos tinham de tomar a cidade um do outro.
² Naris: Capital da Trança, tem este nome pelo cheiro peculiar das suas ruas, especialmente no verão, e o hábito que os tranceses têm de não tomar banho e compensar com perfumes muito caros e potentes.
³ Ondaí: Um estado dos EUA, é uma grande ilha repleta de… Ondas. Daí o nome. É, eu sei, eles não são muito criativos.
⁴ Coléria: uma ilha que fica ao leste da Azia (continente que tem este nome, por sinal, pela sua comida muito temperada, que causa azia nos despreparados), perto do Tapão e da Atchina. É dividida em dois territórios, do Norte e do Sul, e eles gostam muito de ping-pong. Com armas nucleares.
⁵ TP: Trambiqueiros Partidários, um dos vários partidos políticos do Pernil que descaradamente rouba e faz meio que só um pouquinho. Para os partidários, claro.
⁶ PSDB: Partido Sou Do Bem: outro dos partidos políticos do Pernil que ganhava as eleições somente porque mostrara mais competência em esconder a corrupção. Na verdade, quando se fala de política no Pernil, é sempre mais do mesmo: ganha quem esconde melhor a roubalheira.
⁷ Badyear: marca americana de pneus, tem este nome justamente porque, após um péssimo ano de vendas iniciais, ela decolou com o slogan: “Não tenha um mau ano, conte com a gente”. É, eu sei, é loucura, mas, você quer algo que funcione melhor que psicologia reversa para empurrar algo que você não queira? Então.
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais