Cheque em branco
Ele avançou pela rua, olhando para a direita, procurando um lugar; achou. Deu a seta, parou logo adiante, engatou a ré e começou a manobrar. Quando já estava basicamente estacionado e faltava apenas avançar alguns centímetros para não bloquear o carro de trás, ela apareceu, acenando, indicando que estava bom.
– Posso dar uma olhadinha, doutor?
Usava uma daquelas roupas laranjas, que brilhavam com a luz dos carros, fingindo que era uma agente oficial, embora ele soubesse que não era. Mesmo assim, era uma trabalhadora. Não estava roubando nem matando, e ele tinha compaixão.
– Pode, pode.
Ele saiu do carro, caminhou rapidamente, e fez o que tinha de fazer. Quando voltou, ela estava do outro lado da avenida, mas, assim que o viu, correu por entre os carros para ter certeza de que receberia sua parte. Ele já havia praticamente saído da vaga quando ela chegou e parou ao lado da sua janela, esperando; olhou pelo carro, passou as mãos nos bolsos; não tinha nada. A carteira, vazia; havia acabado de gastar seus últimos trocados. Será que ela passava cartão?
– Puxa, senhora, me desculpe, eu não tenho nenhum trocado… Ah, quer saber, espere um pouco.
Abriu sua carteira, pegou um cheque, assinou, datou e fez os dois riscos em cima.
– Pegue este cheque aqui e preencha com o valor que você quiser. Se você não depositar até hoje, às cinco, eu vou sustar. Tudo bem?
Ela o encarou com surpresa, pegou o cheque com adoração e nem viu direito quando o carro saiu. Em seguida, olhou em volta, para a avenida movimentada, os colegas orientando os outros carros, e não resistiu.
– Tô rica, tô rica! – gritou, correndo pela rua.
Usou os trocados que tinha no bolso, pegou o metrô para casa, depois o trem, e por fim, o ônibus; morava longe, mas compensava. O local de trabalho era bom, sempre rendia mais do que qualquer outro, e parecia que, naquele momento, tinha valido à pena.
Chegou à sua casinha, um barraco ajeitadinho, e chamou todo mundo: um filho adolescente que estava dormindo, um, ainda criança, que estava jogando bola, e as duas filhas adolescentes, uma carregando sua própria filha no colo e outro, de dois anos, agarrado à perna, e outra, que já estava na sala, sentada à mesa, dando mamadeira para um e passando a mão na barriga crescida.
– A sorte grande! – ela disse; colocou o cheque na mesa, bem esticadinho.
Todos olharam. Ninguém entendeu bem o que ela queria dizer.
– Um homem me deu isso por olhá seu carro. Ele disse queu posso pô o valor queu quisé e depositá, até hoje, às cinco, sinão ele susta.
– Uquié sustá, mãe? – um perguntou.
– Num sei, mais é mior num arriscá.
– Intâo põe logo uns cem mil, mãe! – disse a filha mais velha.
– Não, põe uns dois milhão! – opinou o filho mais novo.
– Dexa di sê bobo, sieu pusé coisa dimais, o chequi vorta, qui nem us qui eu dei otro dia nas casa Bahia – ela respondeu.
Todos ficaram quietos.
– I comu era u cara? – perguntou o adolescente, o mais velho e que se achava mais esperto de todos. Tinha de definir como o homem era, para saberem o quanto poderiam pedir.
– Ah, era um cara bunitão.
– Bem vistido? Com pinta de preibói?
– Num sei. Tava di ropa normal.
– I o carro? Qual era?
– Num sei.
– Ah, mãe! Comu qui cê num sabia qui carro qui era?
– Num sei, é tudo igual! Era preto. Serve?
– Não! – ele gritou. – Assim num dá, mãe. A sorte grande cai no nosso colo, e cê vem cum essa di num sabê o carro?
– Bota uns mir intão, mãe – disse a que amamentava.
– Mir é muito poco. Dez mir – disse a outra.
– Num vale, num vale. I si o cara num tivé na conta?
– Ah, uns dois, três mir ele divia di ter na conta. Quem tem carro tem isso na conta, certeza! – exclamou a mãe.
– Intão põe isso.
– I si num dé?
Ficaram todos quietos, desanimados. Era como um ter uma lâmpada mágica, mas não falar a língua do gênio.
– Qui horas são?
– Treis.
– Mior i nu banco. A gente decidi lá.
Juntaram-se todos: mãe, quatro filhos, três netos e meio, e foram andando até a agência mais próxima. Chegando lá, ela pegou envelope, preencheu com todos os dados que copiou do cartão e do cheque, mas não preencheu a parte que tinha de colocar o valor. Ficaram se olhando.
– I agora?
– Já sei. Vô preguntá no caxa.
Ela entrou e pegou uma senha; as filhas se sentaram nas cadeiras especiais, cuidando das crianças, e ela ficou com os dois filhos em pé, na fila. Havia pensado em pegar a fila especial, mas estava ainda mais longa do que a normal, e achou melhor não arriscar. Olhava para o relógio de cinco em cinco minutos, mas parecia que o tempo não passava.
Três e cinquenta. Três e cinquenta e cinco. Quatro horas. O banco fechou as portas; ninguém entrava. E ela tinha até às cinco para depositar, ou então, perderia todo o dinheiro. Na fila, discutia com os filhos. Mil? Mil e quinhentos? Mil quinhentos e cinquenta?
Quatro e quinze. Quatro e meia. Quinze para as cinco.
Chamaram a sua senha; apressada, correu para o caixa, e a ela se juntou toda a turma.
– Dona, dexa eu ti falá. Eu sô guardadora di carro, i um cara mi deu essi chequi em brancu, i falô qui eu podia depositá o quanteu quisessi. Quantu cê acha qui eu ponho?
A atendente a olhou com incerteza; nunca havia ouvido falar daquilo na vida. Pediu para ver o cheque, conferiu, e, realmente, era verdadeiro. Chamou o colega ao lado, contou do caso, e ele concordou. É, parecia tudo correto.
– Olha, dona…
– Maria.
– Dona Maria. Esse cheque aqui é de uma conta especial. Só quem tem uma movimentação monetária muito grande pode usar um cheque desses, nesse banco aqui.
– U cara é milionário! Tiramo a sorte grande! – gritou ela, e todos começaram a se abraçar.
– Eu não sei que tipo de acerto foi esse, e também não sei quanto ele tem na conta para a senhora poder preencher o cheque… Mas eu acho que é melhor não abusar muito.
– Quanteu coloco?
– Não posso dizer, dona.
– Por favor, a sinhora é istudada, a sinhora sabi mior qui eu. Fala quanto quieu ponho.
– Não sei, mesmo – ela não queria ser culpada pela infelicidade da moça.
– Por favor, ceis são tudo…
– Põe uns dez mil, deve dar – opinou o homem do caixa ao lado.
Ela concordou de imediato; pegou uma caneta, escreveu o número – nunca havia escrito um número tão grande na sua vida! –, preencheu seu nome, como a moça havia orientado, e saiu agradecendo a todos. Nem ouviu quando ela lhe perguntou se não preferia depositar na boca do caixa.
Quando estava do lado de fora da agência, apertando os botões no caixa rápido, o homem riu.
– É cada uma que eu vejo… E o pior é você! Se eu não falo, era capaz de ficar até amanhã com ela aqui. Agora, anda logo, que eu quero ir embora, e a fila ainda tá grande!
Do lado de fora, eles colocaram o envelope, com aquela eterna sensação de que a máquina estava cortando o papel em pedacinhos, e olharam para o relógio de parede: cinco para as cinco. Tinham conseguido. Estavam ricos!
Naquela noite, saíram para comemorar, tudo no cartão de crédito dela. No dia seguinte, não foi trabalhar, mas saiu para comprar coisas: móveis, roupas, presentes para os netos, tudo. Cada coisa no cartão de um, ou em boletos de infinitas mensalidades.
Não sentou para fazer as contas; achava que dez mil eram um número grande demais para ela conseguir alcançar em gastos e que nunca chegaria.
No entanto, três dias depois, a gerente do banco ligou; o cheque havia sido sustado, e o dinheiro não seria depositado. Por quê?, ela indagou, mas a gerente não sabia. Voltou para casa deprimida; e agora? O que faria?
– Doutor, posso olhar o carro?
Era outra avenida, mas eram o mesmo homem e o mesmo carro. Ele concordou; quando voltou, não tinha trocado. Sem jeito, preencheu o cheque novamente e deu as mesmas instruções. Saiu da vaga observando pelo retrovisor o homem abobado, olhando para o papel em suas mãos, que logo em seguida correndo pela avenida.
Pegou o celular, discou um número e aumentou o volume do rádio, para escutar a chamada.
– Por favor, eu gostaria de sustar um cheque.
Dobrou a esquina com um sorriso no rosto. Nota do autor, setembro de 2021: eu tive a ideia para esta crônica justamente por não ter como pagar um guardador de rua. Na época em que escrevi, estávamos longe de máquinas de cartão com chip e muito menos de Pix. Mas achei a ideia muito… Sacana! Rsrsrs
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais