Dom Quixote de la Gramática
Palimércio não nasceu de berço esplêndido. Não foi fruto de nenhum erro gramatical que inevitavelmente levou seu pai ao dilema das filhas de Labão. Também não foram seus progenitores membros honrosos da academia brasileira de letras. Em realidade, nada tinham de especial; nenhum dos dois tivera a oportunidade de estudos.
Palimércio, contudo – e a origem de um nome tão majestoso, por sinal, foi deveras curiosa, oriunda da rua onde o jovem casal pela primeira vez se encontrara e onde, futuramente, acabariam por conceber o rebento em uma aventura apressada nos bancos reclináveis de um chevette 73 -, Palimércio era um grande letrado, praticamente autodidata. Seu amor pelas letras e gramática só não vencia seu amor por Deus, de família religiosa que era.
Desde pequeno percebera que tinha uma grande familiaridade com a gramática (seu código genético ficava em ordem alfabética, gostava de dizer) e uma facilidade inacreditável em decorar suas regras e nuances. Poderia ter dado um grande diplomata, quiçá um mestre da língua potroguesa, porém, ao invés disso, optara pela ingrata carreira de escritor.
Leitor assíduo dos grandes nomes da literatura brasileira, vibrava com cada nova reedição dos grandes clássicos de Martelo de Assis, Escurice Lispector, Guimarães Cravo. Acompanhou a discussão da reforma ortográfica como um fã que acompanha uma final de copa do mundo. As letras eram sua vida.
Tinha, porém, uma peculiaridade; era totalmente incapaz de aceitar erros da língua. Ortográficos, gramaticais, de pontuação ou pronomes, não aceitava nenhum. Cada um que lia ou ouvia queimava-lhe os olhos e lhe parecia mais uma facada no peito. Em todos os livros que lia, corrigia absolutamente todos os erros que encontrava – no caso dos grandes escritores, obviamente, por culpa de digitadores e revisores pouco prestativos e nem um pouco preocupados com a preciosidade da língua portuguesa e a perfeição de suas obras. Afinal, seria Jorge Odiado capaz de errar uma vírgula que fosse? Logicamente não. Por outro lado, no caso de escritores medianos e medíocres, o erro, sem dúvida, provinha de autores e corretores de qualidade duvidosa. Raça que deveria ser exterminada, a seu ver. Afinal, quem se propõe a escrever profissionalmente deve fazê-lo à perfeição – a qualidade do conteúdo escrito é, obviamente, importante, mas que valor ele terá, se o português não for perfeito?
Pegava desde livros, até revistas e jornais, e marcava os erros um a um com caneta, corrigindo-os; certa feita, corrigira todos os defeitos de um clássico centenário reeditado e os enviara cuidadosamente para a editora responsável, solicitando sua correção, mas ele foi ouvido? Não. Não havia como corrigir o que já estava errado, e quando uma nova edição surgiu, cinco anos depois, ninguém nem mais se lembrava de quem era Palimércio Fernandes.
Um fracasso que para qualquer outro significaria o fim de uma empreitada mal parida foi, para ele, contudo, como uma luz a se acender no fim do túnel. Iniciaria sua cruzada; tornar-se-ia não um herói de capa e espada, mas sim de caneta e papel, lutando para corrigir os erros de português de todos que estivessem ao seu alcance. Logo, o nome Palimércio Fernandes seria um brado de luta e de vitória contra a ignorância linguística. Ah, já podia ver seu nome a enfeitar praças e nomear ruas. Onde seu herói, Aldovandro Cantagalo, da obra de Monteiro Raposato, falhara, ele não falharia. Não somente escreveria o maior tratado da língua potroguesa que jamais existiu; corrigiria os erros que havia em todos os locais onde se falava potroguês. Que, aliás, já havia muito deveria ter se tornado Pernilês, como ele repetidamente advogava nos pequenos espaços de jornais ainda menores que aceitavam publicar seus escritos. De conteúdo duvidoso, mas pernilês impecável.
E assim começou Palimércio sua empreitada. Seu primeiro ato foi pegar todos os relatórios com correções de livros que ja fizera até aquele dia e enviar para as editoras. Enviou separadamente, um a um. Em seguida, mudou para a música – passava dias e dias escutando o rádio e anotando, enviando para as emissoras e solicitando que reencaminhassem aos respectivos autores para que fizessem as modificações solicitadas. Erros como usar onde, em vez de aonde, e pronome indireto, em vez direto, como perdoar-lhe, em vez de perdoá-lo ou la. Afinal, como poderia o povo pernileiro esperar que seus filhos soubessem falar a língua corretamente, se as próprias músicas perpetuavam erros espúrios?
Mas Palimércio foi mais longe do que qualquer gramático jamais fora; infiltrou-se nos bairros mais pobres da cidade, ouviu músicas de qualidade tão ruim que jamais seriam veiculadas em emissoras de rádio oficiais e fez questão de conhecer os autores pessoalmente para lhes passar seus apontamentos. Três aceitaram de bom grado e ainda agradeceram; um admitiu ser analfabeto e não entendeu absolutamente nada do que ele falou; dois o ameaçaram de morte e um efetivamente tentou; e os outros 237 simplesmente não abriram a porta, por mais que insistisse em apertar a campainha (destes, cinco soltaram os cachorros para cima dele).
Enquanto completava sua epopeia pela cidade, Palimércio aproveitou para corrigir também os erros que encontrava em placas, a maioria deles erros grotescos da espécie “doa-se filhotes”. Revoltante saber que os pernileiros nunca acertam os sujeitos ocultos, ou colocando no plural quando o verbo é intransitivo, ou deixando no singular, quando é transitivo. Para uma ou outra senhora que encontrou no portão enquanto fazia seu ato de vandalismo – pois modificar escritos dos outros sem pedir permissão não podia deixar de sê-lo – tentou explicar as razões gramaticais de tão desmedida ousadia, mas foi recebido a xingos e vassouradas.
Aproximando-se a época eleitoral, contudo, Palimércio foi visitado por uma súbita inspiração: tornar-se ia candidato. Primeiro, de alçadas menores – vereador – e depois galgaria, degrau a degrau, quiçá até se tornar presidente. Palimércio Fernandes, presidente da gramática!
Tentou buscar partidos que compartilhariam de seu amor pelo pernilês, porém, não encontrou um que se adequasse às suas pretensões. Vendo que não haveria outro jeito, decidiu criar o seu próprio partido: o PULGA (Partido Único a Levar a Gramática Avante), de número 79 (em homenagem ao seu nascimento). Não foi nada difícil fazê-lo; o complicado foi encontrar partidários dispostos a erguer sua flâmula, cujo símbolo era a fronte de Guimarães Cravo pintada sobre um livro de gramática, belíssimo. Inicialmente tentou fazer propaganda por todos os lugares, mas logo concluiu que seria muito mais inteligente buscar seguidores dentre os acadêmicos. Desta forma, infiltrando-se em faculdades fingindo ser aluno, estendeu convite a professores de português das mais diversas idades e ideologias. Alguns pareceram empolgados, poucos compareceram à sede (na casa dele), e menos ainda efetivamente aderiram à causa.
Assim, contando com uma equipe de cinco professoras aposentadas, com catarata, diabetes e reumatismo, Palimércio começou a traçar o futuro gramatical do País Pernil. Os meses seguintes foram exaustivos: fizeram propagandas escritas, gravaram chamadas para carros de som e chamadas para telefone, já que não teriam sequer um segundo disponível no rádio ou televisão, por não terem representantes na câmara.
Em suas mensagens, dizia o nosso herói: “Caros colegas, interessados no desenvolvimento do nosso tão belo país! Desejais que vossa língua prossiga assim, tão negligenciada, desprezada pelo povo, que gradativamente a agride, transformando-a em uma massa disforme, desregrada? Ora pois, já é o momento, caros amigos, de vos erguerdes contra esta infâmia! Votem em Palimércio Fernandes, 79000, para um potroguês impecável! Aliás, não um potroguês – um verdadeiro pernilês, com todas as suas nuances de nossa língua maravilhosa, porém sem suas falhas inerentes ao comprometimento da educação gramatical de nosso formoso país! Palimércio Fernandes, 79000, para uma gramática correta e um futuro brilhante!”.
Impecável potroguês, porém totalmente ininteligível. O povo não só não entendeu palavra do que havia sido dito, como achou que o nosso esforçado candidato não era nada além de mais um palhaço perdido na corrida eleitoral. Por mais passeata, ligações, carros de som e propagandas que fizesse, quando afinal saíram os resultados das eleições, Palimércio descobriu: conseguira 4 votos. Foi dia de crise na sede de seu partido.
– O que foi que aconteceu? – indagou, inconformado. – Quem de vós não votou em mim?
Uma das senhorinhas, a mão trêmula, ergueu dois dedos.
– Fui acometida de uma gastroenterocolite aguda e não pude comparecer às urnas, gozando do meu direito de cidadã com mais de 70 anos de me abster da votação.
Palimércio bufou. E quem era a outra? Joaquina, uma senhora com apenas 10% da visão periférica do olho direito, manifestou-se.
– Creio ter pressionado os botões errados, dada a minha excitação no momento.
Ele balançou a cabeça. E as outras? Todas afirmaram veementemente que haviam votado nele. Isso, porém, significava que…
– Mamãe, não votaste em mim para vereador?
– Votei no José Pato – ela respondeu.
– Por que me abandonaste?
– Ele me deu dentaduras.
Mais uma derrota para o nosso cavaleiro gramatical; resiliente, porém, ele não desistiria. Ainda tinha seu sonho do tratado gramatical. Primeiramente, crendo ser indubitavelmente revolucionário, Palimércio o enviou para duas editoras diferentes, imaginando que digladiariam para oferecer a melhor proposta, com ganhos estratosféricos. Não o fizeram. Sequer chegaram a responder os seus originais. Em um conclave, os seis guerreiros da etimologia decidiram que seria mais fácil tentar com editoras menores, especializadas na gramática e no desenvolvimento da língua potroguesa – e nada. Já fazia um ano que o tratado estava pronto, e alguns desde que Palimércio se lançara em sua malfadada empreitada, quando cogitaram montar uma editora, que se chamaria Habemus Literis. Quem, contudo, dominava desta fina arte? Quem se habilitaria a fazê-lo? Ninguém. A opção derradeira seria, portanto, financiar uma publicação independente.
Em grupo, os seis cavaleiros da gramática juntaram seus fundos escassos de aposentadoria ou de ostracismo e levaram o seu Santo Graal a uma destas empresas para escritores falidos e desesperados, que logicamente aceitou o seu projeto. Para evitar incorrer na mesma falha que seu herói, Aldovandro, Palimércio tomou todo o cuidado com os possíveis erros – que, indubitavelmente, eram apenas hipotéticos, pois ele nunca se deixaria errar, não naquilo em que era um mestre como nunca antes outro houvera – que poderiam surgir, relendo cada vírgula de sua obra, da capa e contracapa cinco vezes antes de fechar o negócio.
Pronto. Estava à venda; um calhamaço de 700 páginas, de capa dura, praticamente uma bíblia do pernilês. O valor era absurdamente alto, mas, visando mais a divulgar o uso correto da língua do que efetivamente tornar-se milionário, Palimércio se absteve dos direitos autorais para deixar o valor mais acessível. Com a renda angariada, os seis compraram alguns exemplares – um para cada um, e outros para distribuir.
Munido de um livro sob o braço e alguns sobressalentes na mochila, nosso herói subiu em seu cavalo de metal – uma Mevendes Benz de 48 lugares – e se dirigiu a Pernília, onde entregaria um exemplar dedicado especialmente ao líder da nossa nação.
Só conseguiu uma audiência pois, com grande sorte, esbarrou com ele saindo do bar. Mostrando sua carteirinha de presidente do PULGA, cuja denominação arrancou algumas risadas dos assessores, ele disse que tinha um presente para dar ao seu tão amado líder político. Polvo não tinha lá muito tempo para essas bobagens – todo dia tinha uma pequena fila para receber presentes, fazendo-o se sentir como um verdadeiro sheique (na realidade, Polvo gastava uma grande quantia de dinheiro público para sustentar esses membros da sociedade, que todos os dias vinham lhe dar coisas que ele mesmo escolhera e pagara) – mas aceitou o presente, que foi desembrulhado por um de seus seguranças.
– Este, vossa excelência, é um magnânimo tratado da nossa língua pernilense. Contém tudo o que é necessário. É o vislumbre de um esplêndido sonho que venho…
Que sua intenção era tornar a gramática acessível a todo o povo, porém, nunca seria expresso além de por pensamentos.
– Zé Farlou, eu não entendi nada do que ele disse, mas, me dando um livro de potroguês, eu acho que ele quer dizer que eu não sei falar a nossa língua. É isso?
– Veja bem, Polvo, ele…
– Ah, não quero saber. Prendam ele e façam com que nunca saia da prisão!
– Mas, sob qual acusação, Polvo?
– Sei lá, inventem alguma coisa. Eu não quero saber, quanto menos eu souber, melhor.
Dois seguranças do tamanho de um armário seguraram Palimércio, que bradava:
– Mas, vossa excelência, eu só queria…
– Ah, e leve essa porcaria daqui – o presidente ainda falou, jogando-lhe a pequena bíblia.
E assim foi preso o nosso herói, onde ficaria por 30 anos, o máximo que a lei pernilense permitia, jurando que, quando saísse, tornar-se-ia o grande vingador da gramática. A questão é: sobreviveria ele na prisão por muito tempo, corrigindo o tempo todo tudo o que os seus colegas de cela falavam errado?
Nota do autor, setembro de 2021: de onde veio esta ideia? Bem, do fato de que os erros de português sempre me irritaram. Sempre quis corrigir os erros mais estapafúrdios de livros e músicas, mas, lógico, nunca cheguei tão longe quanto Palimércio.
E, infelizmente, por mais que tente, ainda continuo a cometer erros. A língua portuguesa tem tantas regras, que a cada dia descubro uma que eu desconhecia.
Por sinal, espero não ter cometido nenhum erro nesta crônica…

O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais