Engessado
– Olha lá o Renato, quebrou o braço de novo!
Foi assim que tudo começou. Em ambientes escolares, você sempre pode definir a popularidade de alguém pela quantidade de assinaturas que ele ganha no gesso de alguma parte do corpo. Renato, o cara mais descolado da classe, mal chegara à escola – a aula começava às sete, e ele, descolado como só ele, sempre chegava às sete e quinze – e metade do gesso já havia sido assinado, com direito a desenhos, alguns obscenos, nas partes menos visíveis, contatos eletrônicos de garotas, números de telefones…
– Eu queria tanto ser popular assim…
Tiago e Mateus eram os isolados da sala. Se fosse em épocas anteriores (uns 30 anos antes, talvez mais), seriam chamados de “O Gordo e o Magro”, pois Tiago era magro como um gafanhoto, e Mateus, gordo como um bebê baleia (por sinal, estes eram dois do seus 376 apelidos diferentes – até a última atualização).
Mas, o que os dois não tinham de popularidade, tinham de inteligência, e foi aí que Mateus teve uma ideia brilhante.
– E se você colocasse um gesso também?
– De que ia adiantar? – respondeu Tiago, macambúzio. – Já quebrei o pé no ano passado, só minha mãe, você e a minha vó que assinaram. Mamãe colocou seu número de telefone, para fingir que era uma garota, mas todo mundo sabia que era o da minha casa… E vovó colocou beijinhos, corações e assinou. Fui motivo de piada por cinco meses…
– Ah, mas eu fiz um desenho muito massa!
– Uma casa e um homem palito não são massa…
– Mas ele tava numa prancha de surfe!
– Que parecia uma mesa – reclamou Mateus.
– Ei, meninos! Saiam desse mundinho aí de vocês e prestem atenção à aula! – reclamou a professora. O que irrompeu em 30 segundos de provocações de toda a classe, até ela recuperar a ordem e conseguir estabelecer a fila ordenada para que assinassem o gesso de Renato e ela tivesse um pouco de paz.
Tiveram de esperar o recreio para conseguir acertar o plano. Era simples: colocar um gesso, falsificar assinaturas e parecer o cara mais descolado da turma.
– Legal, então a gente vai pra minha casa, faz a lição de casa, estuda um pouquinho, treina a tuba, conquista alguns territórios no WoW¹ e aí coloca o plano em dia.
– Tiago, acho que a gente deveria priorizar as coisas, se não, a gente só vai fazer isso quando for hora de dormir!
– Tá certo. Sem tuba hoje, então.
– Feito!
Oito horas da noite era a hora das mandracarias. Juntos, no quarto de Tiago, ambos pensavam em como fazer.
– Bom, acho que o ideal é você colocar um gesso na sua mão, porque o pessoal vai pensar que você quebrou brigando com alguém. E aí a gente conta uma história pra você parecer bem maneiro. Mas tem que ser a mão esquerda, pra não atrapalhar seus estudos e o WoW.
– Certo! – exclamou Tiago e, sem pestanejar, socou a parede com toda a força. – Ahhhh!!!
– Não, seu idiota! Era pra você fingir que quebrava a mão! A gente ia comprar o gesso e…
– Ahhhh!!!
Era tarde; ele já gritava e chorava, chamando por sua mãe, para levá-lo ao médico.
No hospital, o homem de jaleco olhava para a radiografia cuidadosamente.
– Olha, meu amigo, você tem muita sorte. Não quebrou nem luxou nada. Só uma talinha, três dias de anti-inflamatório, e vai estar tudo novo de novo.
Tiago pareceu decepcionado.
– Não vai pôr gesso? – Mateus questionou, esperançoso.
– Não, não precisa – o médico respondeu, bondosamente.
– Doutor, por favor – disse a mãe de Tiago. – Não tem como pôr um gesso? Para ele aprender a não sair socando paredes como um idiota? – ela falou, olhando rispidamente para o garoto.
Seus olhos brilharam, esperançosos, mas ele se conteve.
– Mas isso vai atrapalhar seu dia a dia…
– Não tem problema, doutor. Pode pôr.
Mas o médico não quis, de forma alguma. E, assim, tala no dedo, foram os três caminhando tristemente pelo estacionamento. Até que…
– Ahhh!!! Acho que agora eu quebrei mesmo!!!
Tiago havia “acidentalmente” fechado a porta do carro no seu dedo entalado. Com a mãe espumando de raiva, o trio caminhou de volta para o hospital.
– Se tivesse engessado de uma vez, isto não teria acontecido! – esbravejou ela.
Tiago não podia concordar mais; Mateus apenas balançava a cabeça.
– Pelo amor de Deus, filho, até parece que você queria quebrar esse dedo! – ela exclamou, enquanto voltavam para casa, o braço finalmente engessado.
No banco de trás, os dois colegas trocaram olhares de uma cumplicidade satisfeita.
Primeira parte do plano concluída, já era mais de meia noite, mas nenhum dos dois tinha sono: tinham de fazer sua obra de arte. E assim passaram a noite, escrevendo, desenhando, fazendo grafite…
A popularidade na escola foi imensa; dezenas de colegas perguntando o que havia acontecido, como havia feito, e Tiago contando que fora assaltado, que brigara com o ladrão, que salvara uma mocinha, que o desarmara e ainda mandara que parasse de usar drogas, entre diversas outras histórias mirabolantes que só faziam crescer no telefone sem fio da fofoca escolar. Pessoas disputavam os espaços estrategicamente deixados por Mateus, uns assinavam em cima dos outros, só para ter a honra de deixar sua marca… Renato ficou esquecido, mas não por muito tempo. Caras naturalmente descolados como ele rapidamente conseguiam chamar a atenção, apenas por estarem lá. Bastava verem um jogo, participarem dele, cuspirem no chão, suarem, seja o que for, por mais nojento que fosse, chamavam a atenção. E tudo já estava esmorecendo, até Tiago ser chamado na diretoria. Aí, o burburinho foi total: pra ser mais descolado que isso, só se ganhasse uma suspensão no final.
Foi a maior expectativa; Mateus roeu todas as unhas e as pontas dos dedos – por que ele havia sido chamado, afinal? Voltaria vivo?
Diante da diretora, o questionamento foi simples:
– Deixe-me ver seu gesso.
Ele mostrou.
– Quem foi que fez este desenho aqui?
Ela se referia a uma genitália feita com caneta esferográfica, em uma parte quase invisível do gesso, que demandara extrema coragem de Mateus para fazer e que fora o marco definitivo de descolamento.
– Não sei, professora.
– Você não pode andar pela escola com um gesso neste estado. Vou mandar uma notificação para sua mãe levá-lo no hospital e trocar isso. E vou proibir que os outros desenhem no gesso de seus colegas.
Bom, Tiago voltou à classe e todos ficaram esperando; quando ele contou o que acontecera, tornou-se um mártir, um marco da oposição. Ao voltar, no dia seguinte, com o gesso branco novamente – do mesmo modo que Renato – os colegas já tinham uma solução planejada.
– Ataduras!
Iriam escrever no gesso e cobri-lo com ataduras. Seria algo como uma escrita secreta, que só seria vista em reuniões secretas durante o recreio. As crianças não podiam ficar mais empolgadas!
Para Tiago, foi uma época de sonho e rebeldia. Tudo, entretanto, um dia acaba. Logo seu gesso foi retirado, e ele caiu no esquecimento, com todas as reuniões secretas somente para o Renato e seu gesso maneiro. Diziam até que tinha uma sereia pelada desenhada em uma parte dele, mas que só os iniciados poderiam ver. Fossem estes quem fossem.
Alguns dias depois, em um momento de desespero, Tiago saiu correndo com sua bicicleta, pedalando a não mais poder, lágrimas nos olhos e angústia no peito. Não viu o gato atravessando a rua. Quando acordou, estava em uma cama do hospital, sua mãe segurando uma mão, seu inseparável colega Mateus do outro. Ele só disse uma coisa, cochichada, para a mãe não saber:
– Cara, dá uma olhada no seu braço! O pessoal vai pirar!
Ele olhou: barras de metal, fixadores, parafusos…
– Que da hora! Eu sou o homem inoxidável!²
Entretanto, até ele ter alta do hospital e poder voltar às aulas, demorou muito. Quando chegou, Renato estava lá, sem gesso, paparicado por todos, como de costume. Foi o maior alvoroço, mas não teve tanta graça quanto ele esperava; ninguém o achava também o homem inoxidável e todos sabiam sobre o acidente vergonhoso e nem um pouco descolado – atropelamento de gato – pois saíra no telejornal, e o máximo que ele conseguiu foi que batucassem no metal do seu braço. O que doía bastante.
Até que, no recreio, ele foi pego por valentões, que, já planejando isso há muito, pegaram uma placa gigante de ímã, colaram em um armário, a quase dois metros do chão, e prenderam o braço do Tiago lá.
– Socorro! Socorro!
Virou motivo de piada.
Acabou o recreio, a horda se dissipou, e aí Mateus e mais alguns nerds tiveram coragem de retirá-lo do seu castigo. E, uma vez de volta no chão, embaraçado, ele viu os amigos se ajoelharem:
– O homem inoxidável!
Bom, podia não ser o mais descolado da escola, mas, a partir deste dia, Tiago se tornou o mais descolado dos nerds.
– Muito bem, pessoal, vamos parar com isso e voltar! Estamos 2 minutos atrasados para a aula! – e todos foram embora rapidamente.
De fato, tão descolado quanto um nerd podia ser.
Nota do autor, setembro de 2021: este aqui também segue um pouco a linha do Albert Nerd. Mas, mais do que isso, reflete um pouco da minha infância; sempre que alguém quebrava algo, ficava com o gesso todo pintado e coisa e tal. Bem, quando eu quebrei a mão socando meu primo aos 12 anos (pois é! rsrsrsrs), não tive lá tantas assinaturas no gesso, mas, subitamente, todo mundo queria fazer dupla comigo para as provas, para “me ajudar a escrever”. Bem, foi legal, mas, quando descobri que estava sendo apenas usado, combinei com o professor de fazer sempre dupla com um determinado amigo, que também ia bem nas provas. Se tivesse um pouquinho mais de senso de empreendedorismo, eu poderia ter começado a cobrar para servir de dupla e levantado uma boa grana.
Brincadeira.
Ou não.
¹ WoW: um jogo nerd online, significa World of Whalecraft, consiste em desenvolver exércitos de baleias com poderes superespeciais para… Bom, assassinar caçadores de baleias e comer focas.
² Homem Inoxidável: um super-herói, que originalmente era apenas um bilionário que, esmurrado durante um assalto, teve quase todos os ossos de seu corpo quebrados. Foi reconstruído parte a parte por um médico meio louco, com exoesqueletos robóticos que lhe deram superpoderes, como super força, supervisão, raios laser e diversas outras coisas. Desde então, ele dedica seu tempo livre a proteger os indefesos dos assaltantes e a resgatar gatinhos de árvores. Ah, sim, mesmo na chuva, ele não enferruja. Mas é bem complicado de entrar no banco ou pegar aviões.
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais