Estacionamento alternativo
Carlos trabalhava em um estacionamento; André era motorista de táxi. O local de trabalho ficava na frente do outro, e ambos trabalhavam à noite. Costumavam se cumprimentar todos os dias, quando entravam para o serviço, e a cada vez que André estacionava o seu carro logo à frente do estacionamento, do outro lado da rua, um palio branco 1997, caindo aos pedaços.
O sonho de Carlos era ter um estacionamento no qual as pessoas passassem a noite; afinal de contas, havia um hospital logo à frente, e eles ganhariam muito mais se parassem de pegar paciente para estacionar (afinal, havia 500 outros estacionamentos por perto) e se dedicassem apenas aos médicos, servindo como estacionamento padrão durante os seus plantões. Aí não teria o menor trabalho; era só ter a vaga, a pessoa estacionava o seu próprio carro, e pronto, tudo que Carlos tinha de fazer a noite inteira, até que o médico saísse de manhã, era ficar olhando. Mas não, o chefe dele tinha porque tinha de fazer um estacionamento para pacientes, e ele ficava a noite inteira tirando e pondo os carros, incessantemente.
Já o sonho de André era ser um daqueles motoristas chiques, para os quais as pessoas pagavam uma certa mensalidade, e ele ia com um carro bom – não aquela porcaria branca caindo aos pedaços, mas um carro com cor – buscá-las e levá-las para festas, bailes, viagens, seja lá o que for.
O que nenhum deles tinha pensado, porém, era que podiam juntar os dois sonhos em um só.
A ideia foi de André; alugar um local para estacionar o carro dos médicos e cobrar um preço relativamente baixo. E, como eles não saíam de lá tão cedo, usar o carro deles em um serviço de táxi para ocasiões especiais.
– Afinal de contas, eles só têm carrões!
Carlos inicialmente foi contra a ideia, mas o taxista progressivamente o convenceu; os médicos ricaços mal e mal olhariam a quantidade de gasolina que havia no tanque e, além disso, seus carros gastavam tanto que para eles seria natural que o tanque estivesse constantemente vazio. Mas, se fosse necessário, eles poderiam colocar metade do que gastaram em combustível, e ninguém iria perceber.
– E álcool, não precisa ser gasosa. Quem disse que uma Mercedes vai sentir a diferença? Carro bom é assim, nem sente.
– E a quilometragi? Cê acha qui elis nunca vai percebê qui mudô? Qué dizê, qui disculpa tem? Nosso estacionamento num vai sê tão grande assim!
– Acontece que eu tenho um pequeno aparelhinho aqui que faz maravilhas…
Como todo bom taxista que quer subir na vida, um dia ele fizera um curso de mecânica, mas, como nem todo bom taxista, aprendera por vias relativamente (i)legais como retroceder a quilometragem do odômetro, o que era especialmente útil quando tinha de revender um carro ou burlar a inspeção obrigatória.
– Bom, num custa tentá. Ma qualquer coisa a culpa é sua!
Sendo assim, Carlos saiu de seu emprego e André também; com o fundo de garantia de ambos e vendendo o carro do taxista, conseguiram dinheiro o suficiente para comprar um pequeno terreno, grande na frente, estreito no meio e grande atrás, como se fosse uma ampulheta. O lado bom é que ninguém podia ver o que havia no fundo do estacionamento.
– Dá pra dizê até qui teim uns vários quilômetru lá atrás, não? Quem podia sabê? – comentou o manobrista.
E começaram as atividades, como se fossem trabalhadores autônomos com funções diferentes e que nunca haviam se conhecido na vida. Todas as tardes, cerca de cem médicos estacionavam seus carros no estacionamento do Carlos, e todas as noites André recebia ligações em seu celular e escolhia o carro mais apropriado para a ocasião.
– Garotas para uma festa de quinze anos? Por que não um Porsche? E que tal aquela Mercedes para os senhores que vão para aquele Congresso Internacional? Ah, o baile do prefeito? Acho que tenho uma BMW aqui… Só não mando a Ferrari porque ele tem uma igual. Mas posso pensar no Maseratti, se bem que não aconselho tanta ostentação…
Por dois meses, tudo correu bem; ele marcava a quilometragem antes de sair, e quando retornava, retrocedia ao ponto onde estivera; além disso, marcava exatamente onde estava o tanque e, quando a gorjeta fora muito boa, tinha até um pouco de dó e colocava um pouco mais de álcool, mas na maioria das vezes não tinha dó, porque, afinal de contas, tudo que os médicos faziam era extorquir a população, depois de fazê-la esperar por meses para uma consulta de 5 minutos!
Enquanto isso, os doutores e doutoras vez por outra comentavam com Carlos como seus carros estavam gastões.
– Muitos posto com gasolina adulterada – era a reposta padrão. – Num dá pra confiá im ninguém hojim dia, sabe cumé…
Por fim, um dia chegou a ligação pela qual André tanto esperara; a oportunidade perfeita para usar a Ferrari que tanto queria.
– Quero o carro mais rápido que você tiver.
– Acho que tenho um perfeito… Onde está?
– No Ebaú Personalidade¹ da rua dos bancos.
– E pra onde vai?
– Estou a decidir, mas pago a distância que for, não se preocupe. Quando chegar aqui, ligue neste celular, e vou sair.
André pegou a chave; abriu a porta e sentiu o cheiro do carro; acariciou seu banco, seu volante, seu painel; observou todos os detalhes, cada pedacinho dele; sentou, e sentiu o carro envolvê-lo; quando colocou uma mão no volante e outra na marcha, sentiu-se o rei do mundo; girou a chave e sentiu seu ronronar; aquilo sim era um carro; era como dirigir o sol!
– Hoje a gorjeta é gorda! – comentou, e acelerou.
O carro voou pelas ruas, suave como se estivesse nas nuvens; no que pareceu ao mesmo tempo tempo nenhum e uma eternidade da qual apreciou cada segundo, ele estava de frente para o banco. O fato de o que alguém fazia na agência àquela hora da noite nem lhe passou pela cabeça; afinal de contas, o banco era tão chique (ele imaginava; nunca havia entrado em um) que, se bobear, atendia até de madrugada.
Pegou o celular e discou; ele tocou, tocou e, no terceiro toque, um vulto saiu de dentro do banco, carregando algo nos braços; ao ver a Ferrari, não hesitou; abriu a porta e se jogou para dentro.
– Corre! – exclamou.
– Pra onde?
– Pra longe daqui!
Com isso, o alarme do banco tocou.
– O que tá acontecendo?
– Não pergunta, anda!
– Mas…
– Eu vou tê que ti matá, é?
Ele apontou um revólver, e o motorista não pensou duas vezes; engatou e acelerou a máquina.
Voou pelas ruas, mas, para variar, como em todo bom cruzamento sangomeçano², todos os carros estavam parados apesar de já estar verde; ao fundo, já podiam ouvir o barulho da polícia.
– Vai, vai, acelera!
– Não posso tomar multa!
– Aqui não tem radar! E, se tiver, te pago depois!
– Mas…
– Anda logo!
Acelerou ainda mais, suando frio; o que o médico lhe diria quando visse as multas? Bem… Ele sem dúvida não estava andando com o carro àquela hora, e podia provar, então…
O problema era que a polícia estava na sua cola, e com certeza não iria perdê-los; quantas Ferraris corriam por aquela cidade àquela hora?
Não satisfeito com a velocidade, o ladrão queria que ele costurasse por entre os carros.
– Pelamordasantageneveva! Num posso fazer isso!!!
– Faça ou sua cabeça já era!
Sem muitas opções, muita embora a opção de perder a cabeça gradativamente se tornava mais favorável, ele passou a costurar entre os carros; entre finas e mais finas, quase perdeu o retrovisor. Enquanto isso, a polícia se amontoava logo atrás, já acumulando três carros, uma oportunidade única na vida de correr atrás de uma Ferrari. A cada reta, perdiam distância, mas como as curvas eram fechadas e sempre tinha gente no meio do caminho, que, depois que abria alas para a Ferrari, por consequência ficava fora do caminho da polícia também, acabavam sempre no encalço deles.
Em pouco tempo pegaram a Rodovia Lobo Navarres³; neste ponto, eram uma Ferrari, cinco carros de polícias, dezenas de motoristas embasbacados nos dois sentidos da via e um helicóptero da TV SEM⁴ fazendo a reportagem.
Neste meio tempo, no estacionamento, o médico da Ferrari, que fora só para bater ponto e já estava indo embora, foi requisitar o seu carro.
Mas justo aquele!, pensou Carlos, inconformado. O que iria fazer?
– Já mandei alguém buscá ele, dotô.
Isso conseguiu segurá-lo por cinco minutos; depois disso, já estava impaciente.
– Vô vê o qui tá acontecendu.
Incerto, ele pegou o telefone e fingiu ligar para alguém; depois, voltou para o lado do médico.
– Intão, justamente… É o seguinti… U nossu istacionamentu é muito grandi. Podi num parecê assim di olhá di primera veiz, mais depois daqueli corredor ali, ó, ele é justamenti muito grandi, assim, ó… Tem vários andar, sabi?
-E daí?
– E daí qui o manobrista tá a procurá o seu carro em um dos andar.
– Como vocês não sabem onde está o meu carro?
– Justamente, é o qui eu tava falandu, u istacionamentu…
– Vocês perderam o meu carro no estacionamento???
– Epa, epa, epa, muita calma nessa hora! Justamente…
Neste momento, da televisão ligada dentro da cabine do manobrista, na edição especial urgente do jornal da TV SEM, surgiu a voz de uma repórter e a imagem de um helicóptero, filmando uma estrada logo abaixo e, nela, vários carros, dentre eles um vermelho costurando e sete de polícia logo atrás.
– Aparentemente, nesta Ferrari está um homem que acaba de roubar o banco…
– É o meu carro! O que é que um ladrão tá fazendo com o meu carro no meio da estrada?
– Testemunhas dizem que o motorista do carro foi buscar o ladrão imediatamente após o roubo, como se tivesse sido planejado, e é provavelmente cúmplice dele…
– Vocês roubaram um banco e ainda usaram o meu carro pra fugir?!
– Epa, epa, epa! Como sabe que é seu carro?
– A Ferrari tem a placa XXX-3302, e pertence a um famoso cardiologista aqui de Sangomeça…
– Quer mais provas, seu imbecil? – retrucou, pronto para esganar o manobrista.
– Ele está perigosamente costurando entre os carros! Olhe lá, olhe lá… Raspou naquele fusca! E lá se foi o retrovisor esquerdo!
– Cuidado com o meu carro, seu barbeiro! Esse retrovisor custa 10 mil falsos⁵!
– E lá se foi a lanterna traseira em uma fechada perigosa…
– Essa lanterna custou 15 mil reais!
– A polícia tem de fazer alguma coisa! Se esse carro pegar uma reta, em pouco tempo some do mapa…
– Meu carrooooo!!!
Enquanto isso, o manobrista era arremessado para lá e para cá, até ser jogado no banco, quando a atenção do médico se concentrou totalmente na televisão, e as pessoas na rua já começavam a se amontoar ao lado.
– Eu vou processar alguém! Que absurdo! Nunca mais paro o carro nesse estacionamento! Ai, meu Deus! Por favor, poupe meu carro! Eu dou meu iate em troca… Minha casa na praia… Minha casa em Colinas⁶…
Enquanto isso, mais e mais pessoas se amontoavam ao redor, e a repórter prosseguia.
– A polícia militar rodoviária foi contatada e cinco quilômetros à frente foi montada uma barreira com 5 veículos… Ali está a barreira. Não tem como aquele carro passar por ela…
– Ai, meu Deus! Faz ele parar! Te dou minha conta nas ilhas Sayman⁷! Pode levar minha perna! Não preciso dela! Juro que termino com a amante! As duas, juro! Mas não leve meu carro!!!
Enquanto isso, no carro, André suava frio, e ainda mais ao ver a barreira se aproximando.
– O que eu faço, o que eu faço???
– Ameaça, eles vão abrir a barreira! Nunca viu em filme?
– Não vão, não! A essa velocidade a gente vai explodir na barreira!
– Não! Acelera que eles saem!
No estacionamento…
– Aimeudeusaimeudeusaimeudeus!!!
O carro se aproximou da barreira… E muitas coisas aconteceram ao mesmo tempo; a Ferrari bateu, mas, de alguma forma, algo acertou sua roda e ela subiu, passando acima da barreira e rodopiando dezenas de vezes; André, aproveitando a oportunidade, abriu a porta do carro e foi arremessado para a mata logo ao lado, aterrissando no meio das árvores; o ladrão, por sua vez, tentava se segurar, mas logo os érbéguis já o esmagavam contra o banco; no estacionamento, as pessoas olhavam fixamente, os olhos esbugalhados, pura tensão; enquanto isso, o médico jazia no chão, sem respirar, branco como leite, o coração parado por um infarto.
Os policiais pararam antes da barreira; o câmera-mem deu um zum; o carro girou e girou; todos gritaram “Ohhhhh!”. O carro bateu no chão, e todos fizeram uma cara de dor e dó; girou, girou e parou. E todos olharam em silêncio o fim sem graça do clímax.
– Cadê a explosão? – perguntou um, decepcionado.
Foi só falar; logo em seguida o carro explodiu em chamas, como em todo bom filme de ação.
– Aêêê! – gritaram no estacionamento, saltando e pisoteando o médico.
Por fim, levaram-no para o hospital, mas por nada no mundo ele voltava à vida; enquanto isso, os socorristas salvaram André, que corajosamente havia pulado para fora do carro e se salvado da morte certa em um triplo tuiste carpado.
A repórter foi entrevistá-lo, ele milagrosamente apenas com o braço enfaixado, e, ainda zonzo, tentou articular uma história inventada, na qual o homem apontara a arma para ele já no estacionamento e o fizera fugir com ele. Ninguém duvidou.
Do carro e do ladrão, nada sobrou; todos os policiais receberam medalhas de mérito pela sua coragem, bravura e capacidade de articulação; Carlos, com seu bom espírito empreendedor, comprou dez fardos de cerveja no bar ao lado e saiu vendendo no estacionamento por duas vezes o valor normal, enquanto todos assistiam ao desenrolar final de história.
E, no final, o dono da empresa de condução de luxo virou herói nacional e em pouco tempo se tornou extremamente famoso. Com a popularidade e o dinheiro que ganhou, passou a investir ainda mais no seu negócio, ampliando o estacionamento. Incrivelmente, ninguém nunca juntou dois mais dois para pensar de onde ele tirava os carros todos os dias para dirigir…
Mas uma coisa é certa; nunca mais usaria uma Ferrari como meio de transporte.
Nota do autor, setembro de 2021: eu me divirto demais com as histórias do País Pernil. O que eu mais curto são as modificações dos nomes (além das ideias absurdas). Se não me engano, a ideia desta história surgiu justamente quando estava estacionando em Sorocaba. Lógico que tem alguns exageros; só descobriria anos depois que uma minoria dos médicos tem carros chiques (mas é justamente neles que a gente presta atenção) – e eles não vão trabalhar de Ferrari ou Maserati. Eles preferem os Volvos, as BMW e as Mercedes! Rsrsrsrs
¹ Banco famoso do País Pernil.
² Cidade que fica a aproximadamente 80 quilômetros de Santa Paula.
³ Uma das estradas que levam de Santa Paula para o interior do estado, passando logo ao lado de Sangomeça.
⁴ Filial do interior da Rede Cubo de televisão.
⁵ Moeda do País Pernil.
⁶ Colinas do Xandão, uma região na altitude, mais fria, no noroeste do estado de Santa Paula, cheia dos ricaços com suas casas bacanas.
⁷ Paraíso fiscal do País Pernil. Quer lavar dinheiro e não precisar se preocupar onde deixar para secar? Pois abra uma conta nas Ilhas Sayman!
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais