Funerária Leva-Rápido
A ideia foi de Alceu, que trabalhava junto com Odete em uma firma de segurança.
– O que acha de montarmos um lava-rápido?
Viviam brincando a respeito, dizendo que um dia, realmente, montariam, mas este dia nunca chegava. Estavam bem no emprego, pagava suas contas, não tinham por quê.
– Você precisa ver, Odete, o lava-rápido perto de casa começou pequeninho de tudo, assim, ó, e agora, nossa, já é o maior império, tem por tudo quanto é canto da cidade!
– A gente devia é de abrir logo esse lava-rápido então, Alceu!
– Pois é, pois é…
Até que, finalmente, um dia, diante da crise da segurança (ninguém mais queria, agora tinham câmeras com sensores de movimento e tudo mais), a empresa perdeu muitos de seus clientes e teve de fazer demissões em massa.
Com o dinheiro de 25 anos de trabalho acumulados no bolso, os dois finalmente encontraram a oportunidade que queriam.
– É, Alceu, acho que agora é a hora.
– É mesmo – ele respondeu. – E eu já até sei o lugar. Tô namorando ele faz anos. Fica de frente prum hospital.
No dia seguinte, eles foram ver o local, calcularam tudo, realmente dava para instalar, a localização seria ótima e, se bobear, ainda poderiam transformar, no futuro, em um estacionamento com lava-rápido.
– Mas o esquema é já começar também com funilaria. Imagina só; os doutores vêm, deixam os carrões aqui, você lava, eu conserto, e pronto! Grana fácil e certa.
Abriram a empresa, que se chamaria “OCeu, Funilaria e Lava-Rápido”, mistura de Odete com Alceu, alugaram o local, compraram os materiais – martelo, placas de madeiras, maçaricos, bombas de tinta, tinta, esponjas, sabão, cera, estopa e tudo mais –, arrumaram os móveis do escritório e a caixa registradora e mandaram fazer a placa. Em uma semana, poderiam inaugurar; não poderiam estar mais empolgados.
Até que…
– Alceu, temos um problema! – disse Odete, ligando logo cedo, pela manhã.
– O que foi?
– A placa veio errada. Corre aqui!
Alceu chegou esbaforido em seu furgão, para se deparar com um grande placar, de luzes que acendiam à noite, onde estava escrito: “O Céu – Funerária Leva-Rápido”.
– Meu Deus do céu! Como foi que fizeram um negócio desses?
– Com certeza, alguém que não sabe escrever…
Estavam os dois olhando, decepcionados, quando um homem os cutucou pelas costas.
– Por favor, eu gostaria de saber quanto custa para fazer o funeral da minha sogra…
Os dois se entreolharam e se viraram.
– Olhe, meu senhor, infelizmente… – começou Alceu, mas Odete, que sempre teve muito mais tino comercial do que ele, interrompeu-o, passou as mãos pelos ombros do novo cliente e o puxou para dentro.
– Meu senhor, sinto muito por sua perda. Vamos ao meu escritório para conversarmos um pouco mais. Eu me chamo Odete, e o senhor?
E lá se foram os dois para dentro. Depois que ela já tinha acordado um bom valor e ficado responsável por cuidar de tudo, seu sócio irrompeu pela sala.
– Cê tá doida, Dete? Como que a gente vai cuidar do funeral da mulher?
– É fácil, fácil, Alceu! Diz aí, vai perder a oportunidade? Uma funerária bem na frente do hospital, sendo que não tem nenhuma outra na rua, e ainda com um nome destes? É perfeito! Eu vou falar com uma amiga minha, para encomendar a coroa de flores, você faz o caixão, eu cuido da maquiagem e tudo mais. E dá pra gente levar no seu furgão. Perfeito!
– Mas, Dete, isso é loucura, eu não…
– Eles vão pagar milão pelo serviço.
– Milão?
– Exato.
– Mil falsos?
– Exato.
– Vou começar a fazer o caixão já!
E lá foram os dois. Alceu foi tirar as medidas da defunta e usou suas habilidades de funileiro para se tornar um funerário, enquanto Odete aproveitaria suas habilidades naturais de maquiagem para deixar a pobre cliente mais bonita. Por sinal, o genro, que havia ido perguntar por que estavam demorando tanto, ao ver o homem fazendo o caixão na hora e literalmente sob medida, ficou encantado com os cuidados da firma e começou a tê-la em maior estima.
Bom, para o até então segurança, já acostumado a enfrentar todos os tipos de perigos que uma escola infantil totalmente trancada à noite poderia oferecer, transportar o cadáver não foi nem um pouco confortável. Sentia que, a qualquer momento, a senhora iria abrir a tampa, destruir a coroa de flores e comer o seu cérebro. Felizmente, contudo, deu tudo certo, o funeral foi um sucesso e ele voltou para o local coberto de glórias.
– Alceu! Já temos mais dois clientes!
– Santa mãe de Deus!
A ascensão da firma foi muito rápida; logo, ele não conseguia dar conta de montar os caixões, nem ela, de atender os clientes. Tiveram de contratar, comprar os caixões prontos, encomendar flores direto da distribuidora, e assim foram crescendo. Em vez de um furgão, passaram a ter uma frota, toda pintada; maquiadoras, cabeleireiras e estilistas oficiais; convênio com o hospital; e tudo o que era possível para uma funerária leva-rápido.
Mas o que Alceu queria, mesmo, era lavar e consertar carros; era nisto que estava sua paixão. Logo, o dia a dia de um empresário de uma agência funerária começou a se tornar morbidamente enfadonho. Ele ficou deprimido, começou a emagrecer, tinha a pele macilenta e um jeito cadavérico, apesar de toda a grana que possuía no banco.
– Ôxe, Alceu! Que tá acontecendo com você?
– Não sei, não sei – era o que ele respondia.
De que lhe adiantava todo o dinheiro que ganhara, se não estava fazendo o que gostava? Ele ficou tão deprimido, que teve uma ideia inusitada; iria fingir que morrera. Isso mesmo. Iria passar por todo o ritual de preparo fúnebre e ver se isso lhe traria alguma resposta.
Combinou com um conhecido do hospital de chamarem outra agência – pois iria assustar todos os seus colegas, se fizesse aquilo, e não queria chamar a atenção, só sentir na pele pelo que seus clientes passavam – e foi levado. Os técnicos até perguntaram se não estava quente demais para um cadáver, mas tudo o que o auxiliar disse foi que ele morrera com muita febre.
Tiraram-lhe a roupa, deram-lhe banho, vestiram-no, maquiaram-no e o colocaram no caixão. Foi levado para o cemitério, onde seria velado por desconhecidos – já que ele não havia convidado ninguém para o seu funeral e tinha deixado tudo pago antecipadamente. As pessoas no cemitério se compadeceram tanto do desconhecido abandonado, que acabaram se juntado ao seu redor, chorando juntas sabe-se lá por quê, ninguém sabendo quem ele era, mas todos dizendo que fora um bom homem, um excelente homem, um dos melhores. E que a maquiagem estava tão bem feita, que parecia até vivo.
Seria bom até pegar um cartão da funerária, para a próxima oportunidade.
Quando foi a hora de levar para a cova, lacraram o caixão; neste momento, Alceu abriu os olhos e começou a esmurrar a tampa. O caixão era tão frágil, que bastaram dois socos para quebrá-lo. Duas senhorinhas infartaram; uma mulher saiu correndo; três homens fizeram o sinal da cruz; um pegou o candelabro para ameaçar a criatura; e um adolescente começou a filmar tudo imediatamente.
O homem apenas limpou a sujeira da lapela, olhou ao redor de si e disse:
– Foi uma experiência muito esclarecedora. Recomendo que todos façam. Se quiserem, dou desconto – disse, distribuindo cartões, e se foi. Todos ficaram sem saber, o filme virou rite no YouPipe.
Em dias recentes, alguns transeuntes viram mudanças grandiosas na “OCeu Funerária Leva-Rápido”; agora, ela é “O Céu, Funerária e Lava-Rápido”; conforme o furgão passa com os outros carros, eles são lavados e encerados rapidamente, coisa de cinco minutos, com uma equipe tão eficiente quanto de fórmula Um. E o seu slogan: “Deixamos seu parente piscando e o seu carro brilhando!” – com descontos para cortejos de dez carros ou mais.
Seu Alceu está lá, todo feliz, lavando o carro. Mas nunca mais entrou na parte fúnebre da empresa.
Nota do autor, setembro de 2021: a ideia desta crônica veio, claro, quando, em vez de ler “Funilaria e lava-rápido” em uma placa, eu li “Funerária Leva-rápido”. Depois disso, foi só sentar e escrever.
Ah, e o nome? Bem, tem uma funerária em Sorocaba que se chama “Ossel”…
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais