Garagem…
Prestem bastante atenção à história que eu vou contar porque, da próxima vez em que vocês tiverem uma reunião de família, vão pensar muito bem antes de faltar.
Nem sempre se conhece a sua família; muitas vezes, nós vivemos ao lado dela sem que nos demos conta. Do mesmo modo, nem sempre se conhece seus vizinhos; não raro compartilhamos espaços de um mesmo condomínio sem sequer saber quem é a pessoa que mora ao lado. Isso para não se mencionar sobre a divisão de garagem do prédio…
Tudo começou com João Paulo Pereira Neto, dono de um Astra usado e velho, mas ainda assim, funcionante. Ele se mudou para um prédio novo, com vagas apertadíssimas para o seu carro, e nos primeiros dias quase morreu para conseguir estacionar sem estacionar na pilastra. Vou explicar o porquê; imagine um corredor enorme de concreto, de uns dez metros. Agora, divida-o em três partes com várias pilastras de concreto, sendo o meio mais estreito que as laterais. Certo. Agora, divida estas laterais em diversas vagas com faixinhas amarelas do tamanho justinho de um carro e mais um pé de cada lado, o que deve dar uns dois metros, mais ou menos… Pegou a ideia? Nem queira saber como é manobrar nisso.
Logo no comecinho, ele ficava curioso para saber quem era o dono da vaga ao lado, que não estacionava o carro nunca, e morria de vontade de parar lá, todo espaçoso (para não mencionar a inveja que tinha de um palio, pequenino, logo ao lado, que, por uma sorte do destino, pegara uma vaga da garagem que tinha uma porta e, por consequência, tinha uns três metros de largura.
Porém, em pouco tempo, descobriu; era um uno mile, azul, que parava caprichosamente na linha – da frente – deixando um espação atrás, onde parava a sua moto, muito embora pudesse parar praticamente umas três, lá. E, por causa disso, e do espírito de boa vizinhança, o pobre João Paulo tinha de se contorcer para enfiar o seu jumbo no lugar de um ultraleve deixando espaço para o ultralevinho ao lado (que ocupava diligentemente o espaço de um jumbo!). Todo dia, o mesmo martírio; voltava para casa, manobrava cinquenta vezes para parar o carro, ficava tão rente à coluna que toda vez suava frio para não raspar, batia a porta sempre e tinha uma fresta de uns vinte centímetros para sair – sorte que era magro.
Depois de um tempo, ele percebeu que o cara do uno saía pouco depois que ele chegava, então decidiu começar a parar o carro quando ele não estava lá, de modo que conseguia sempre deixar um espaço melhor para si.
Este mar de rosas durou uma semana, quando, de alguma forma, o seu vizinho conseguiu modificar seus horários para sair de casa uma hora mais tarde – e esperar todo dia uma hora já era abuso! Deste modo, irritado, João passou a estacionar progressivamente mais rente ao uno, dando mais espaço para si e menos para ele. Uma vez parou tão perto que teve certeza de que o homem teria de entrar pela janela do carro, do outro lado.
Mas, não mais que uns cinco dias depois do início desta tática de guerra, o uno começou a parar progressivamente mais para o lado do Astra – como se esperasse o seu companheiro de estacionamento sair para trabalhar para poder recolocar o carro ocupando um pedaço da vaga!
João se irritou e, conforme o seu vizinho saía para trabalhar, passou a usar a mesma tática e espremê-lo. Sendo assim, a cada momento do dia, era um que saía pela janela do carro.
Mas ele não iria deixar barato assim; vendeu seu Astra usado e, acabando com a poupança que fizera para a faculdade da filha, comprou um jipão, daqueles bem grandões, ainda que usado. Ocupava, apertadamente, sua vaga e mais um quinto da vaga do vizinho; tinha de sair pela janela, mas era mais fácil, a aproveitava o teto do uno para apoiar e engatinhar para casa. Quando chegava à casa, porém, sua esposa o encarava sem entender, porque estava ofegante, mas ao mesmo tempo sorrindo como uma hiena.
Uma semana depois, ainda espremido e com o carro já meio riscado, o cara do uno decidiu perturbá-lo do único jeito que podia; dificultando ainda mais a manobra para sair. Deste modo, comprou não só mais duas motos como uma pequena carretinha que, sabe-se lá como, conseguiu abarrotar na sua vaga, ocupando só um pedaço da vaga do Palio, o qual, por isso, não podia mais parar esparramado.
Mas a guerra não ia terminar assim tão fácil! João gastava meia hora a cada vez que ia sair de casa, só manobrando (para não falar no combustível do jipão), e a coisa virou questão de honra! Como estava sem dinheiro para comprar motos, adquiriu várias bicicletas e, por não haver bicicletário, colocou-as em pontos estratégicos para perturbar o cara do uno – e, consequentemente, todos para lá da sua vaga.
Em vingança, em questão de dois ou três dias, carroças, bicicletas, patinetes, carros de controle remoto, motos, motonetas, baionetas (sim, baionetas!), carretas e até mesmo um jétisquí surgiram no estacionamento, por obra dos outros vizinhos. Aquele corredor estava tão, mas tão atravancado, que parecia mais um labirinto para poder sair. E o jipe gigante amassava as bicicletas, mas não deixava de sair, ainda que ao custo de uma hora por vez.
Ameaças de mortes por bilhetes surgiam nos pára-brisas dos carros, durante a noite a lataria era amassada, vidros, estilhaçados, faróis roubados, e em questão de uma semana, aquele prédio tão bonitinho parecia um cenário de guerra civil.
João Paulo não se conteve, entretanto; foi até o banco, fez um empréstimo gigante, conseguiu um financiamento e, no final do dia, estacionou, na frente do portão da garagem, um caminhão-cegonha. Mas o pessoal do prédio não era burro; em questão de horas, portas foram arrancadas, amarradas, içadas e, ao raiar do dia seguinte, havia uma rampa passando por cima do caminhão. Sair, em teoria, eles podiam, mas quem disse que a suspensão iria aguentar?
Todos no estacionamento, desesperados para chegar a tempo para o trabalho, pararam em um círculo enorme ao lado do caminhão, prontos para se matar, bastões de beisebol ou cabos de vassoura em mãos. Um grupinho decidiu roubar o jétisquí para colocar como rampa do outro lado; outro quis aproveitar a caçamba e virá-la; o outro disse que conseguiria um equipamento de rapel e cordas de aço para fazer uma espécie de ponte; ninguém sabia quem colocara o caminhão lá, mas estavam todos prontos para estrangulá-lo, e João entrou na onda, temendo ser esmagado pela horda furiosa.
Contudo, sete horas da manhã, sirenes foram ouvidas e o esquadrão de forças especiais da polícia se postou ao lado do prédio, armas apontadas, e montou uma barricada com uma rampa forte o suficiente para um caminhão dos bombeiros subir e ultrapassar o caminhão-barricada. Por ela correram dezenas de homens, helicópteros sobrevoando o local e anunciando que encontrara os baderneiros e que estavam todos presos em nome da lei, da ordem e da decência humana.
Acabaram todos no furgão da polícia, saindo da garagem a pé.
Na delegacia, porém, ao tirarem seus documentos para serem autuados, todos em silêncio, deram pequenas olhadelas e repentinamente perceberam seus nomes, notando semelhanças.
Ora, quem diria! João Paulo Pereira Neto era primo de Joaquim Oliveira Pereira, seu vizinho do uno! E ambos eram primos em segundo grau da dona do Palio, que se apaixonou logo que encontrou o cunhado de sua sobrinha, o qual era irmão do primo de terceiro grau da vizinha ao lado, a qual era esposa do cunhado da irmã da moça do Palio!
Todos se abraçaram e pediram desculpas aos prantos, mas os policiais não regularam; acabaram todos na prisão por um mês, como punição, sem direito a fiança (não que qualquer um tivesse como pagar, depois de tantos gastos com os automóveis), em celas compartilhadas, uma ao lado da outra, bem apertadinha.
Não demorou muito para começarem a brigar por espaço…
Nota do autor, setembro de 2021: pois é, quem nunca brigou por espaço em estacionamentos? Esta descrição é muito compatível com o apartamento onde morei a maior parte do tempo de faculdade, em Sorocaba; era realmente muito apertado (mas o fato de eu ser novo de carta também certamente contribuía). O fato de conhecer um parente sem querer ao ver um documento… Bem, isso aconteceu comigo e com um primo meu de terceiro grau, no clube! Parece até mentira, né?
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais