Grupo de Família
O celular apitou.
Era o meio da tarde de um domingo.
Ele olhou para a tela.
A pior desgraça havia acontecido.
– Não!!! – ele gritou.
Dos outros prédios, os outros já imaginavam. Nada poderia ser pior.
No dia seguinte, no trabalho, seu celular não parava de vibrar; vibrava tanto, que seu colega da mesa ao lado foi obrigado a perguntar.
– Carlos, quem é que está te mandando mensagem tanto assim?
Carlos parou de digitar e olhou para os lados; não tinha mais ninguém na sala. Fechou a porta cuidadosamente, checou as janelas, fechou as persianas, deixando-os em um breu iluminado por nada além da tela do celular perpetuum mobile.
Marcos jurava que ele ia contar que estava sendo perseguido pela máfia atchinesa ou algo que o valha. Que era alguém ameaçando de morte; ou, pior, que era algum cobrador; ou, pior ainda, que a empresa estava cheia de poquemans e que ele, por ter desativado o som, estava perdendo de pegar todos eles no meio do expediente. Tinha de se lembrar de checar assim que Carlos terminasse seu comportamento esquisito.
Carlos se aproximou em sua cadeira de escritório de rodinhas, fazendo um isquiqui-isquiqui macabro, corroborado pelo seu sorriso estranho.
– Aconteceu a pior coisa que poderia acontecer a uma pessoa.
Marcos sentia seu coração bater forte no peito. O que poderia ser?
O outro só lhe mostrou a tela do celular.
Estava escrito: “Família”.
E, do lado, 393 mensagens não lindas. Quer dizer, 394. 397. 401. Espera…
Ele gritou “Não!!!!” também, sentindo a dor de seu amigo.
– Tenta sair! – alguém opinou.
Risadinhas em volta.
– Sabe de nada, inocente! – alguém soltou.
– Você acha que eu já não tentei? – Carlos falou, desanimado. – Eles me colocam de volta.
– Fora que sempre falam mal de quem sai.
– Você pode impedir de ser adicionado novamente ao grupo – disse outro.
– Eles criam um grupo novo. Não tem solução.
Todos no refeitório murmuraram em aceitação.
Era a pior coisa que poderia acontecer a alguém.
Por via das dúvidas, decidiram ficar longe. Vai que é contagioso?
Três dias depois, ele estava na sala do psicólogo da empresa. Como não tinha divã para se deitar, ele juntou duas cadeiras de plástico e tentou se acomodar da melhor forma possível sem quebrá-las.
O celular vibrou; ele rilhou os dentes. Olheiras profundas já apareciam sob seus olhos, cabelos caíam aos tufos, já não havia mais unhas, e quem o visse poderia jurar que sofria de alguma doença consumptiva.
– Você já pensou em simplesmente silenciar o grupo?
– Eu já tentei! – exclamou ele, batendo a mão na cabeça. – Mas não consigo abrir o celular e ver marcando que tenho mais 589 mensagens não lidas!
– Você sabia que se você simplesmente deslizar para o lado, você não precisa nem ler…
– EU SEI! EU SEI!!! Mas é o princípio da coisa. Não dá! Não dá para abrir o celular a cada instante e, mesmo sem ler, saber que tem aquelas 500 fotos de bom dia com florezinhas e bebezinhos fofos, ou aquelas fotos tiradas do arco da velha, ou aqueles comentários inúteis e piadas sem graça! Isso me deixa louco! LOUCO!!!!
Saiu correndo do escritório sem camisa e cacarejando como um galo.
Dois dias depois, de cama, André veio visitá-lo.
– Espero que esteja melhor, Carlos – ele falou, sentando-se ao seu lado.
O celular permanecia no criado mudo. Não mais apitava, mas, internamente, Carlos já contava: 1127 mensagens não lidas. 33 bons dias. 41 fotos de família. 5 fotos de comida. 17 áudios. 19 filmes. 34 piadas ruins e meia (uma foi cortada no meio porque o tio não sabia encaminhar direito).
– Você sabia que roubaram o celular da Camila esses dias? Voltando do trabalho? – o outro tentou, para, quem sabe, distraí-lo. – Em que mundo vivemos, não?
– Roubar o celular seria a melhor coisa que…
De repente, Carlos se sentou na cama. Olhou para André com os olhos esbugalhados, com um sorriso estranho no rosto, deu-lhe um beijo na bochecha, dizendo que era um gênio, e saiu correndo escada abaixo, de pijamas e pantufas.
– Carlos, está tudo bem? Aonde vai? – perguntou o outro, tentando acompanhá-lo.
– Está tudo ótimo! – exclamou, correndo. – Vou comprar um celular!
André estancou. Comprar outro celular? Mas ele já estava louco com um…
Suspirou e deu de ombros. O máximo que poderia fazer era torcer para que nunca acontecesse com ele, nem com ninguém da sua família.
Com seu celular novo, Carlos mandou uma mensagem para sua tia Zefa, a dona do grupo, dizendo que havia sido roubado e se poderia, por favor, excluir seu número antigo, que naquele momento certamente estava nas mãos de um meliante, e adicionar o novo.
– Ó, meu Deus, está tudo bem? Que coisa horrorosa! Claro que adiciono! – ela respondeu.
Ele olhou na tela do celular novo.
“Tia Zefa adicionou você ao grupo”.
Olhou a do antigo. 3442 mensagens novas, sendo a mais recente:
“Tia Zefa removeu você do grupo”.
Carlos sorriu.
Na segunda-feira, Carlos era outra pessoa.
– E aí, Carlão? Conseguiu resolver seu problema?
– Me entendi com a minha tia – disse ele, mas não explicaria mais nada. Nunca, ninguém poderia saber.
E deu um sorriso, lembrando-se do celular desligado que estava dentro de uma caixa, dentro de um cofre, no fundo do Rio Tietê.
Nota do autor, outubro de 2021: a ideia desta crônica surgiu justamente porque me incluíram em mais um daqueles grupos de família nos quais acontece exatamente isso: mensagens infinitas.
Até que a solução não foi das piores, não é?
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais