Guerra Musical
Anderson era uma pessoa pacata, comum, daquelas que gostam de chegar à sua casa depois de um duro dia de trabalho na cidade de Sangomeça; daquelas que tiram os sapatos, sentam na poltrona e ligam a televisão para ver que não está passando nada além de Musculação, a eterna novela da TV Cubo. Mesmo assim, relaxam um pouquinho, nem um pouco interessados no que acontece na novela, conversam um pouco com o filho e vão perscrutar se o jantar vai sair ou não, afinal de contas.
Contudo, para o desagrado de Anderson, havia se mudado recentemente para o seu condomínio um adolescente ou adulto jovem, tocador de baixo. E, todos os dias, no mesmo horário em que ele chegava, exausto do serviço e não queria nada além de tranquilidade, o seu vizinho de lado resolvia tocar alto o baixo.
– Mas é de tarde – dizia a sua esposa. – Não tem nada que se possa fazer, né? Neste horário pode fazer barulho.
– Mas é absurdo! Eu não consigo nem pensar direito com esse barulho todo! Tenho certeza de que ele está passando dos decibéis permitidos!
– Reclame com a polícia, então.
– Você vai ver. O irmão José tem um aparelho desses que medem decibéis; eu vou trazer amanhã e, se tiver passado do limite, vou ligar.
Ele passou o dia seguinte ansiosamente esperando pelo momento de, triunfantemente, voltar para casa, descobrir que o barulho estava acima do limite e, então, ligar para a polícia.
Entretanto, para o seu desagrado, o volume não estava, nem quando ele colocou um estetoscópio na ponta do aparelho e o encostou na parede.
– Viu? Deixe, um dia ele fica bom nisso, e aí você vai agradecer por ter um músico famoso ao seu lado.
– E até lá a gente tem de sofrer? E nossos filhos, como vão crescer com esse barulho horrível do nosso lado?
– Que nada, pai, roque é irado! – exclamou seu filho, de dez anos.
– Viu? Já está alterando a mente deles! Eu vou ligar pra polícia.
Ele explicou toda a situação, até mesmo que seu filho estava sendo levado para o caminho do mal por causa do seu vizinho, mas a policial que atendera o telefone era irredutível.
– O senhor disse que não passou do volume permitido, certo?
– Sim, disse, mas…
– E ele nunca tocou depois das dez?
– Não, mas…
– Então, aconselho o senhor a comprar um tampão de ouvido e esperar até ele ficar bom – terminou, rispidamente, a policial. – Tenha um bom dia.
Ele colocou o telefone no gancho irritadamente, bem no ápice de um solo de baixo mal feito do vizinho ao lado.
– Vou ligar pro meu advogado! – anunciou, novamente triunfante.
Mas logo seu peito desinchou; seriam anos de processo por algo que provavelmente não daria em nada.
Anderson foi se deitar inconformado, cansado e irritado; a noite em claro, porém, serviu-lhe para pensar em um plano de vingança.
No dia seguinte, chegou à sua casa com duas caixas de som, que ligou ao aparelho de CeDês, e colocou Bach para tocar (mas em um volume dentro dos decibéis permitidos; afinal de contas, Anderson ainda se preocupava com os seus vizinhos).
O vizinho pareceu não se irritar muito; Anderson já estava ficando inconformado, rodando o cedê constantemente no mesmo ponto da música, quando o outro, por fim, aquietou; dando a batalha por ganha, nosso herói finalmente pôde se sentar à mesa e desfrutar um merecido jantar e, em seguida, uma merecida e tranquila noite de sono.
Tudo ia bem até a tarde seguinte; o vizinho recomeçou e, no que o incomodado colocou o cedê novamente para tocar, o outro começou a cantar – e bastante mal, por sinal.
– Pelo amor de Deus, quer parar? Isso não vai levar a nada! – disse a sua esposa, mas o marido continuava em um frenesi de incômodo.
Cáandou, láandou e teve uma ideia; por hora, desligou o CD e ficou quieto, deixando o outro apenas tocar. O dia seguinte, porém, traria muitas surpresas.
Anderson saiu mais cedo do trabalho para buscar a sua filha, Aline, na escola; entrou na sala de aula esbaforido, dizendo que sua avó estava muito doente e precisava levá-la para o hospital, e tinha de buscar a filha, e tinha de correr, que a avó estava muito doente… Quando a professora perguntou se ele não iria levar também os outros irmãos, ele aereamente ignorou a pergunta e, carregando a filha como se fosse um saco de batatas, correu para o carro.
– Muito bem, filha, lembra que você estava treinando na escolinha para cantar no coral? Eu quero que você cante bem aqui na sala, de frente para esta parede, até ficar boa.
Do outro lado da parede, era possível ouvir o baixo mal tocado e a música mal cantada.
– Mas, pai, e a lição de casa?
– Pode deixar, hoje não precisa fazer.
– Oba!
E a filhinha começou a desafinadamente cantar para a parede, parecendo mais uma taquara rachada; enquanto isso, o pai se sentava no sofá, com os tampões de ouvido, satisfeitíssimo.
Pouco tempo depois, sua esposa chegou, as compras em uma mão e os dois outros filhos logo atrás; em sua irritação, sequer se relevou a falar com o marido.
– Vamos jantar fora hoje – disse para os seus meninos, deixando as compras na cozinha.
Enquanto isso, Anderson continuava com seu sorriso bobo, pensando que havia ganhado a batalha; meia hora depois, o vizinho finalmente havia desistido, e ele comemorou com um potão de sorvete de creme para ele e Aline.
Contudo, no dia seguinte, o músico foi mais esperto; trouxe consigo um amigo para ensaiar em casa, e começaram cedo; quando o nosso pobre herói chegou à sua casa, estavam no ápice de uma batalha de baixos aparentemente quebrados, pelo som que faziam.
– Viu, é nisso que dá, ficar de picuinhas! – exclamou a sua esposa. – Quantas vezes preciso dizer que isso não edifica? Mas que exemplo para as crianças! Pelo amor de Deus! Tenha misericórdia!
Mas, em vez de convencê-lo do contrário, esta frase simplesmente deu mais uma ideia para o nosso herói apreciador de uma boa música. Ele foi até a parede e bateu com força; a música parou, para que o vizinho pudesse escutar o que estava acontecendo, e Anderson anunciou:
– Você ainda não ganhou! Tenho uma grande surpresa para você amanhã! – exclamou e tentou soltar uma risada maligna, mas se engasgou no meio, acabando com o pouco respeito que havia adquirido.
A música continuou até as 21h59, mas ele não estava preocupado; não, muito pelo contrário, estava feliz, porque o dia seguinte seria domingo, e domingo era dia de culto.
Exatamente às quatro horas da tarde, Anderson chegou em uma pequena perua com algo em torno de 30 pessoas da sua igreja, que, de alguma forma, conseguiu enfiar dentro da sua casa para um “ensaio informal”. Violinistas se bateram com flautistas, baixistas serviram de apoio para saxofonistas, e a organista até pôs o seu órgão portátil sobre a cama; em pouco tempo estavam todos entoando hinos do jeito mais desordenado possível. (Ah, sim, a esposa, assim que vira a perua chegando com o seu marido a dirigi-la, entrou no seu carro com as três crianças e correu para a casa de sua mãe, decidida a não pagar a fiança dele por pelo menos uma semana, para que largasse a mão de ser besta).
O vizinho, por sua vez, estava com seu companheiro, tocando tudo o que sabia de cor do mais puro roque pesado.
Foi a vez, então, de os outros vizinhos se revoltarem; a velhinha de cima começou a bater com o cabo de vassoura no chão; outros vizinhos ligaram seus sons na maior altura possível, indo do Creu a Xorãozinho e Chitoró; alguns começaram a cantar, crianças a berrar, televisões foram ligadas, e alguns casais até aproveitaram a barulheira que os encobria para emitir seus sons de amor que não poderiam emitir em outra oportunidade, por respeito aos vizinhos.
Quando a polícia chegou, o prédio inteiro parecia um manicômio, e tiveram de dar tiros ao ar para acalmar todo mundo. Botaram todo mundo para fora de suas casas (deixando apenas os casais nus ou seminus, por razões óbvias, em seus quartos) e começaram a inquirir quem diabos havia começado tudo aquilo. Dedos foram apontados e passos foram dados para trás, deixando os dois vizinhos acusados de frente para os oficiais.
Mas, quando tudo parecia que ia se dar errado (ou certo, depende do seu ponto de vista), e algemas já estavam para serem colocadas, um homem de óculos de sol roxos, barbicha, boina estranhona e cachecol (em pleno verão!) vermelho berrante apareceu, batendo palmas.
– Bravo! Bravíssimo! Senhores, gostaria de parabenizá-los pela melhor obra dadaísta de toda a história!
(Se algum deles tivesse estudado arte, saberia que aquilo estava mais para um insulto que para um elogio, mas, como ninguém estudara, todos olharam para o chão e balançaram seus pés, encabulados).
– E estes dois são os gênios criadores desta obra? Pois bem, gostaria de contratá-los! Vamos gravar um original imediatamente!
E tudo acaba bem e com pizza neste nosso país Pernil; os policiais foram embora, apenas com um autógrafo da dupla que, futuramente, seria a mais famosa de todo o país em Roque Gospel. Anderson largou o seu serviço para se dedicar totalmente à música, em dupla com seu vizinho, e sua esposa passou a participar das turnês para dar a voz de fundo feminina. Em pouco tempo, sua filha Aline também passou a participar dos chous, e se tornou a mais jovem e mais famosa cantora de Roque Gospel de todo o país Pernil.
E os vizinhos? Bom, voltaram às suas atividades rotineiras. Mas não sem escutar sempre o melhor do Roque Gospel, da dupla Anderson e Gustavo.
Nota do autor, setembro de 2021: ah, este País Pernil em que tudo sempre acaba em pizza! Adoro!
Esta é meio que uma variação do “Garagem”, do qual já falei antes.
A inspiração para ele? Bem, eu morava em um prédio em Sorocaba com paredes finas como papel, o que significa que eu ouvia as músicas de todo mundo, e vice-versa.
Pobres coitados quando eu estava aprendendo violino…

O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais