Inclusivismo
“Museus tranceses¹ decidem abolir o uso de números dosmanos² para definir séculos”. Era isso o que dizia a notícia do Empadão, jornal de grande circulação de Santa Paula, mas que todos liam no Pernil inteiro.
E, dentre uma das pessoas que leram, estava o excelentíssimo Ministro da Cultura, que entrou correndo no congresso para… Bem, não encontrar absolutamente ninguém, afinal, ainda era terça-feira pela manhã. Mas, ainda no pique, aproveitando para dar umas pedaladas que não fossem fiscais, ele pegou sua bicicleta e seguiu para se encontrar com o presidente Embolsonada, que estava tomando seu costumeiro café da manhã com pão e leite condensado.
– Ó, caro ministro da cultura, que prazer encontrá-lo aqui! Vamos, tome café comigo, talquei?
O presidente já tinha trocado tanto de ministros, que havia decidido parar de gastar seu tempo memorizando nomes e simplesmente chamá-los pelo cargo (que seu ministro da economia, Saulo Greves, havia diligentemente escrito em crachás que todos poderiam usar e passar adiante quando fosse substituídos, a cada seis meses ou três frituras na rede social, o que viesse antes).
– Jadiz, meu querido, veja só essa notícia.
Ele teve de ler a notícia para o presidente, que queria evitar a fadiga.
– Mas, e daí, ministro? Qualé?
– A Trança quer ser o mais inclusivista possível – ele disse. – Eles querem parar de usar os números dosmanos para usar números normais para indicar os Séculos, já que as pessoas atualmente têm dificuldade de compreender esses números.
– Dá pra entender! Nem eu sei ler essa merda! Quer saber, vamos fazer o seguinte…
Ele pegou o celular e ligou para o ministro da economia, o único cujo nome ele ainda sabia.
– Greves, vem cá tomar café, tenho uma coisa importante pra dizer.
Em dois segundos, Greves estava lá; ele fica sempre na porta ao lado, pronto para acudir a qualquer solavanco da presidência. Ligou também para Gorducho, um de seus filhos, e a ministra da família, Damales Avós, que compunham seu gabinete de guerra.
– O ministro da cultura me veio com uma ideia muito interessante – disse ele. – Vamos, leia de novo a notícia, você lê tão bem!
O ministro tossiu e leu a notícia, mas teve de explicar novamente para que todos compreendessem, já que todos ficaram apenas piscando os olhos idioticamente.
– Isso faz todo o sentido – disse Gorducho. – Eu também não faço a menor ideia de como se lê esses números dosmanos!
– Na verdade, estou tendo uma ideia genial – disse Jadiz. – Por que não fazemos o mesmo no Pernil… E mais! Por que não abolimos os museus de vez?
– Como é?
– É o seguinte, ministro… Alguém nesse país consegue entender o que tem nos museus? É só um monte de merda! Ninguém entende nada, essa é a verdade. Só aqueles ricos, pseudointelectuais, que ficam lá, horas e horas olhando pra mesma porcaria de quadro, que não significa nada, mas eles fingem que significa, só para oprimir o povo.
– É verdade! – concordaram os outros dois.
– Vamos abolir os museus, para sermos ainda mais inclusivistas do que a Trança! O idiota do Micron³ vai ver, fica espalhando essas Fake News sobre a Amastônia… A gente vai mostrar que é muito mais inclusivista que esses países idiotas da Pseudoropa!
– Acho que poderíamos ir mais longe – disse Damales. – Estava pensando aqui como é difícil ver as horas em relógio analógico. Vamos abolir o relógio analógico!
– Exatamente! Esse é o espírito! Sabia que você tinha sido uma boa escolha, ministra!
– Deveríamos tirar também o ingrês⁴ das escolas – disse Gorducho. – Afinal de contas, a maior parte dos pernileiros não sabe falar ingrês.
– Por que parar por aí? Vamos tirar o potroguês! A gente sabe que a maioria das pessoas não sabe falar direito. Ficar ensinando a falar certo… Só vai excluir aqueles que não conseguem falar certo, ou que não querem!
– E estão no seu direito! – exclamou Damales. – Liberdade de expressão!
– Na verdade… Eu acho que a gente deveria ser mais inclusivista ainda.
– Diga, 02. Ou 03. Você é meu filho de qual número, mesmo?
– 02, pai.
– Ah, tá. Segue então, Gorducho.
– Acho que a gente deveria parar de falar em potroguês. Tem gente que não entende.
– Mas, você vai sugerir o quê? – questionou o ministro da cultura, cada vez mais horrorizado.
– Vamos nos comunicar por desenhos! – exclamou Gorducho, exultante, e fez um desenho grotesco do que parecia um falo, mas era uma pessoa. – Estão vendo esse aqui? Sou eu! E estou protestando contra o Macabro Tribunal Federal!
– Muito bom, 01! Depois dessa, subiu de posto entre os filhos!
– Valeu, pai!
– Acho que as pessoas deveriam se comunicar apenas por vídeos. Nada mais escrito – comentou Damales.
– Não, mas aí você não vai incluir aqueles que não têm celular para filmar.
– Vamos desviar dinheiro da pasta da saúde e dar celular para todos os pernileiros! – exclamou ela.
– Isso vai ser excelente, estamos em ano eleitoral – respondeu Jadiz. – Muito bem, vamos redigir uma proposta de emenda à constituição! A PEC do Inclusivismo! 01, escreve. Ministro da cultura, você é culto, não é? Ótimo. Bota umas palavras bonitas, talquei? Quero enviar isso pro congresso ainda hoje! Muito bom, muito bom!
Ele limpou a boca do leite condensado que escorria pelas laterais, levantou-se e bateu as migalhas da roupa.
– Vou tirar um cochilo. Depois do almoço eu volto para pegar a nossa PEC.
Os três, assim, ficaram reunidos escrevendo e reescrevendo a proposta, até que, após o almoço, o presidente retornou.
– Está bom?
– Está perfeito – disse Gorducho. – Tivemos ainda outras ideias mais inclusivistas… Quer que eu conte?
– Não, adoro uma surpresa. Deixa eu assinar… E pronto! Ministro da cultura! A ideia foi sua! Por favor, tenha as honras de levar ao congresso!
Ele olhou para o relógio.
– Ainda dá tempo de andar de Jet Ski. Falou pessoal! Bom trabalho!
E sumiu pela porta.
O ministro da cultura, que tinha vindo inicialmente com tão boas intenções, olhou para o documento que tinha em suas mãos, que tinha o poder de destruir o Pernil ainda mais do que já estava destruído.
Mas ele era um bom patriota. Faria o que era correto.
Foi ao congresso e entregou a PEC; apertou a mão de senadores, deputados, conhecidos, foi amplamente elogiado. Na sequência, voltou para seu gabinete, fez um desenho – basicamente, ele saindo pela porta dando um “tchau” – e deixou na mesa do presidente. E, como todo patriota sensato e correto, pegou o primeiro voo para a Trança. Sem bilhete de volta.
¹ País da Pseudoropa, recebeu este nome porque seus habitantes gostavam muito de fazer tranças, até mesmo nos pelos do corpo que, por opção própria, não raspavam.
² Refere-se aos números escritos com letras, como I, V, X… Dosmanos vem de Doma, uma cidade da Ipalha, que, embora tenha sido anteriormente o centro de um grande império (Império Dosmanos), atualmente é apenas um monte de ruínas e… Manos.
³ Presidente da Trança. Tem umas rusgas com o presidente do Pernil, desde que este zombou da sua esposa.
⁴ O ingrês é a língua falada na Ingraterra, onde se originou, mas difundida por todo o planeta Areia devido aos EUA. Até antes da Segunda Guerra Mundial (que, na verdade, foi toda arquitetada pelos EUA somente para conseguir vender mais armas, como diz o atual governo do Pernil), a principal influência pernileira era trancesa, e todo mundo queria falar trancês e usar tranças. Mas, depois, a Pseudoropa perdeu a sua influência e os EUA invadiram todo o mundo, dominando por meio de suas músicas, filmes e, claro, do Back Gonald’s.
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais