Julinho, o guarda de trânsito
Desde pequeno, o sonho de Julinho sempre foi ser guarda de trânsito. Isso, amarelinho, marronzinho, aqueles caras vestidos com roupas específicas, boné, prancheta e apito na mão. Ele adorava ficar olhando os guardas de trânsito controlando o tráfego na sua rua; passava tanto tempo na janela do quarto dos pais (que tinha a melhor vista da rua), que eles resolveram fazer uma troca de quartos. Afinal de contas, ser acordado às 5 da matina porque o filho queria ver o guardinha apitando não era nada agradável!
Certo dia, Julinho desceu até a rua e pediu um autógrafo para o guarda; seu ídolo! E, como ocasionalmente os guardas rodiziavam (ele sabia o dia e horário de cada um), logo ele começou a pedir autógrafos para todos, enchendo um pequeno caderno brochura. E ainda mais! Certo dia, uma guardinha o achou tão gracinha que lhe deu seu apito. Grande glória! Julinho só não fez um altar para seu apito porque não tinha material. Mas, ah, se tivesse… Contentou-se em guardá-lo em um tâperuére transparente, no meio do guarda roupas.
O tempo foi passando, e Julinho foi crescendo. Nos dias da profissão, sempre falava sobre guardas de trânsito. Nos horários livres, quando se tornou grande o suficiente para sair de casa sozinho, ficava de auxiliar dos guardinhas de sua rua. E, durante o colegial, fez praticamente um estágio de guarda de trânsito: horas e horas extracurriculares. Já podia prestar prova de título de especialista.
Quando se formou, imediatamente prestou o concurso e, sabendo tudo como sabia, não teve a menor dificuldade de passar na prova. Foi chamado rapidamente; Julinho não podia se aguentar de tanta felicidade.
No seu primeiro dia de trabalho, levantou cedo, botou seu uniforme passadinho, pegou seu apito (mas não o seu apito sagrado; este não, nunca! Ficaria para sempre à mostra em seu pedestal), ajustou seu boné e saiu de casa. Caminhava com certeza e orgulho; era, afinal, um guarda de trânsito!
Exerceu seu trabalho (aliás, trabalho não, profissão, missão de vida!) com excelência: definitivamente havia nascido para aquilo.
Começou com a função de orientar o trânsito de pedestres na faixa. Atuava nos maiores e mais complexos cruzamentos de pedestres da cidade; áreas em que hospitais, bombeiros e escolas existiam ao mesmo tempo, e a eficiência logística era essencial para evitar que bombeiros atropelassem velhinhas em cadeiras de roda, ou estas, pré-escolares.
Julinho estava felicíssimo com a sua nova tarefa, mas, infelizmente, logo inventaram os faróis de pedestres, daqueles que só é necessário apertar um botão, esperar um pouco e cruzar. Aí, não havia mais necessidade de ninguém guiando velhinhas em cadeiras de rodas, nem pré-escolares, e muito menos bombeiros.
Assim, Julinho, nosso herói, foi transferido para a função de guiar cruzamentos de cegos. Mas logo inventaram aquelas placas com sinais no chão e firmas começaram um empreendimento em larga escala de treinamento de cães-guia para cegos. Aí, não teve jeito; Julinho teve de sair da função de gerenciamento de cruzamento de pedestres.
Mas ele foi remanejado para a sessão de multas de trânsito por excesso de velocidade; Julinho ficava nas ruas mais perigosas, escondido nos lugares mais traiçoeiros, de tocaia, esperando com o seu radarzinho pessoal para multar. Tinha de ser rápido; rapidíssimo! Ver a velocidade, ver a placa, memorizá-la e rapidamente anotar todas as informações. Só ele conseguia fazê-lo!
Contudo, logo inventaram os radares fixos e os pardais. Sem mais ter de ficar de tocaia, desanimado por apenas observar enquanto uma máquina fazia tudo por ele, ele pediu para mudar de função.
Julinho começou a multar aqueles desavisados, desrespeitosos que cruzavam os faróis vermelhos. Sim, ele ouvia reclamações; sim, às vezes alguns saíam para discutir, tentavam suborná-lo, e uma vez outra ele quase foi espancado. Mas, mesmo assim, ele adorava o que fazia.
Até inventarem os faróis inteligentes, que multavam sozinhos quem cruzava no vermelho.
Julinho ficou desolado! Não havia nada que ele pudesse fazer que uma máquina já não fizesse. Carro no rodízio? Pam! Tinha uma máquina que via até, por sinal, se ele estava em dia com o IPVA ou não. Caminhão na marginal? Pam! Motoqueiro na pista expressa? Pam! Se bobear tinha até radar multando quem punha o dedo no nariz ou falava no celular!
Julinho ficou deprimido. Quase pensou em desistir, quase pensou em se matar. Mas continuou firme. Quando o remanejaram para controlar o tráfego através dos semáforos, na central, usando os computadores, ele se animou. Afinal, iria controlar todo o trânsito! Mas logo a tarefa se tornou chata. Ele queria trabalho de campo, não ficar brincando com camerazinhas, telinhas, mapinhas, luzinhas…
Foi aí que aconteceu. O grande apagão. Tudo parou; metade da cidade parou. O caos, espalhando-se por todos os lugares – não havia sequer um semáforo funcionando! Engarrafamentos quilométricos, pessoas saindo dos carros, batendo uns nos outros. Julinho abriu um sorriso; aquela era a sua hora! Correu para sua casa, tirou o apito sagrado de seu pedestal, tomou uma lanterna daquelas tamanho gigante e se pôs a ajudar no trânsito. Foi para as avenidas que sabia serem mais complicadas e direcionou o caminho de todos. Em pouco tempo, Julinho reorganizou o trânsito da cidade, não usando nada além de alguns cones, um apito e uma lanterna queimada. Digno de Manaiver.¹
Mas não demorou muito e o apagão acendeu. Semáforos, postes de luz, radares e etc. voltaram a funcionar. Assim, Julinho, desanimado, caminhou lentamente de volta para a sede. Sua hora de glória havia acabado.
Porém, não para a televisão. Mal o nosso guarda de trânsito chegou à sua sala, repórteres desesperados queriam entrar para entrevistá-lo; sua eficiência se tornou lendária. Em rede nacional foi noticiado Julinho, o guarda de trânsito que salvou o trânsito do centro da cidade com nada além de três cones quebrados, uma lanterna sem pilhas e um apito antigo e enferrujado, no meio do maior apagão de todo este século!
A fama durou dois dias, nos quais Julinho se sentiu muito feliz. No entanto, logo a rotina voltou, e novamente estava ele lá, vendo o mundo girar pelas televisões. E, foi vendo justamente isto que ele teve uma ideia genial: se ele só estava naquela posição porque as máquinas o haviam substituído, e se ele fosse para um lugar onde não havia máquinas?
Algum tempo se passou; agora, Julinho é um feliz morador de Tauberlândia, uma cidade na Amastonia, onde ele tem de controlar o tráfego de barcos, carroças, bois, caminhões, carros… E até mesmo uns ultraleves de vez em quando. E se ele pensa em voltar para a cidade grande, onde reaveria sua fama diante dos constantes apagões? De jeito nenhum.
Nota do autor, setembro de 2021: gosto bastante desta ideia do Julinho, que escolheu uma profissão para a qual ninguém liga muito! Para você ver como é possível fazer qualquer bem, contanto que você ame o que faz.
¹ Personagem de ficção famoso no País Pernil por ser capaz de consertar todos os problemas do país com nada além de um chiclete.

O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais