O Aluguel de Filhos
Roberta e Danilo tinham acabado de sair da casa de Aline, a irmã dela, que estava com um filho de três anos e toda orgulhosa de seu novo bebê, de dois meses já. Os cunhados tiveram de ir de um estado a outro do país para fazer a visita, levar um presentinho, mimar os dois por alguns dias e depois ir embora para casa.
No caminho, começou a conversa.
– Eles são tão gracinha, né? – falou ele, empolgado.
– São mesmo.
– O Thiaguinho já está uma peste. Também, com três anos! Mas é tão esperto! Daqui a pouco, já vai aprender a ler, você vai ver.
– É mesmo – respondeu ela, monossilábica. Estava ficando preocupada.
– E o Pedrinho, então? Você viu que sorrisão? E como já tá durinho? Ele tá muito esperto. As crianças hoje em dia são assim. Tão crescendo rápido demais.
– Verdade – muito assustada.
– Só que…
– Só que o quê?
– Cansa, né? Quer dizer, quatro dias já tava mais do que bom, não?
Ela suspirou, com um certo alívio.
– Você tava tão empolgado, que eu já tava achando que você queria um pra você.
– Eu? Filho? Agora? Eu não. Quero mais é viajar, aproveitar a vida. A gente vai ter muito tempo pra ter filho. Tipo, daqui uns dez anos.
– Isso – ela concordou, animada.
– Nessa época, bom mesmo é o filho dos outros. Você vai, leva um presente, brinca um pouco, estraga todo e, quando cansar, devolve.
Ela riu.
– É verdade – ele insistiu. – Um monte de gente concorda comigo. Enquanto você não tem paciência pra ter o seu próprio filho, é ótimo.
– É quase um sistema de aluguel…
A lampadinha acendeu na mente dos dois ao mesmo tempo.
– Você está pensando o mesmo que eu? – eles mutuindagaram. – Sim – muturresponderam.
– Visitar a minha prima Valéria – disse ela.
– Criar uma istarti-âpi de aluguel de crianças – ele falou.
– Acuma?! – mutuexclamaram.
– Como assim, aluguel de crianças? – ela perguntou. Ele preferiu nem insistir na prima Valéria, porque estava cansadíssimo de ficar visitando parentes.
– Ué, é bem simples. A gente acha uns pais que estão cansados de ficar com as suas crianças durante toda a semana, acha uns casais que estão dispostos a ficar com crianças dos outros, para fazer exatamente o que a gente faz, e voalá!
– E onde, Danilo, onde que você acha que isso vai dar certo?
– É lógico que vai. Você mesma falou que parecia um sistema de aluguel!
– Ai, meu Deus… Que ideia idiota, Danilo!
Mas, como todo bom marido, ele fez questão de levar a ideia adiante, especialmente porque ele tinha certeza de que seria uma revolução na forma de encarar a criação dos filhos em todo o planeta Areia.
No dia mesmo ele montou um saite de craudifandin, aquela forma de se obter dinheiro através de contribuição de outros, com a ideia da sua istarti-âpi. Com tantos nomes bonitos assim e importados do inglês, não tinha como não dar certo.
Com um pouco de propaganda nas redes sociais, como o bellower e o facebutt, logo todo mundo ficou sabendo da sua ideia genial e, em menos de uma semana, ele tinha angariado dinheiro suficiente para abrir a empresa e ainda sustentá-la por uns dez anos. Parece que tinha muita gente não só querendo se livrar do filho, como também cuidar do filho dos outros.
Já que Danilo trabalhava com isso, não foi nem um pouco difícil montar o saite da sua empresa. Era muito fácil: em tempos de redes sociais, ele fez um saite como aquele de currículos, colocando os que queriam alugar os filhos dos outros, e os que queriam ter os seus alugados. As pessoas poderiam avaliar as famílias, dizer se eram confiáveis ou não, dizer se os filhos eram pentelhos ou não, e os próprios pais colocavam fotos e informações sobre eles. Tudo muito seguro, tudo o que a pessoa tinha de fazer era pagar uma mensalidade para fazer parte, e todo o resto era eletrônico; a pesquisa, o contato, as entregas dos filhos.
Ele foi o primeiro a testar. Abriu sua conta, apenas de usuário, pois não tinha filhos próprios para alugar, e colocou que gostaria de alugar alguma criança para aquele fim de semana. Três possibilidades surgiram na sua tela, a partir do seu endereço e do endereço dos usuários. Na dúvida de quem escolher e para não ser cruel com ninguém (como assim, recusar uma criança?), ele decidiu ficar com as três.
E foi assim que, no sábado de manhã, um a um os pais vieram deixar os seus filhos, com malas de roupas, orientações, um pouco de dinheiro, por garantia, e saíram para celebrar seu fim de semana de paz.
– Nos vemos domingo à noite! – disseram todos eles, tão felizes que mal dava para acreditar.
– Muito bem, garotada – disse Danilo, por fim, estendendo os braços para confortar um negro meio loiro de 10 anos, um loiro meio pixaim de 3 anos, e uma taponesinha meio índia de 5 anos. Miscigenação como essa só se vê no Pernil. – Venham conhecer a minha casa.
Quando ele entrou com a criançada, Roberta tinha acabado de acordar.
– Danilo, o que é isso?
– Isso aqui é o futuro da criação dos filhos! É a minha istarti-âpi funcionando!
Ela bufou.
– Eu não acredito nisso!
– Pois acredite! Deu certo!
Em cinco minutos ela estava com as malas prontas e dizendo que só voltaria da casa da mãe quando ele recobrasse sua sanidade mental. Ele deu de ombros e decidiu dar sorvete para as crianças (às nove da manhã), enquanto jogavam videogame.
– Depois nós vamos ao parque – ele falou. – E quem gosta de piscina?
– Eu! – todos gritaram, levantando as mãos.
Roberta não deu notícias o fim de semana inteiro, o que não fez diferença, porque ele se divertiu muito mesmo assim.
Quando devolveu as crianças no domingo, os pais estavam felicíssimos e tinham recomendado fortemente o saite a todos os que encontraram pelo caminho naqueles dois dias de paz.
O sucesso, por sinal, foi estrondoso. Em menos de uma semana de funcionamento, já havia mais de cinco mil usuários, mais de 300 crianças já haviam sido alugadas, e Danilo foi parar no Entusiástico, um programa dominical da TV Cubo, para contar sobre a sua experiência. Com isso, o sucesso foi ainda maior, e logo tinha gente do Pernil inteiro se inscrevendo no saite. Da noite para o dia, Danilo ficou milionário e, interesses à parte, foi mais ou menos por aí que a sua esposa resolveu voltar para casa.
– Eu falei que ia funcionar! Eu falei! – ele disse, jogando notas para cima e nadando no dinheiro.
– Ah, Danilo, como eu te amo! – ela respondeu, rolando junto na grana.
Sabem, em um país comum, como o de vocês, provavelmente eles seriam investigados, porque não só isso era uma forma muito bizarra de lidar com crianças, como também devia envolver enriquecimento ilícito, mau uso de menor (será que é esse o termo?) e coisas do gênero. Sem mencionar que, sem dúvida, haveria adultos que usariam esta ferramenta para o mal.
Quer dizer, não que isso não tenha acontecido no Pernil, mas é que demorou tempo demais. Eles não só acharam a istarti-âpi tão demais, mas tão demais, que ela superou todas as redes sociais, como também teve gente de outros países querendo copiar a ideia. E foi aí que a coisa pegou. Quando chegou a lugares com direitos humanos mais fortes, como, por exemplo, a Calômbia (que tinha acabado de transformar o problema da escravidão infantil em uma forma de trabalho legalizada, com carteira assinada e férias de dois meses para os menores de oito anos), logo eles perceberam que tinha algo errado e mandaram fechar o saite.
E foi aqui que o Pernil, tristemente, viu-se obrigado a fazer alguma coisa. A polícia federal interditou o saite e fechou a empresa, mas, quando foi investigar o dono… Bem, ele já tinha fugido para a Omiça, país no meio da Pseudoropa, rodeado por montanhas, de altíssimo IDH e que se manteve ilesa durante todas as guerras e discussões que já ocorreram na história do planeta Areia.
Lá, eles viveram muito tranquilos e muito ricos, emprestando os filhos dos vizinhos de vez em quando, até terem os próprios. Porque, você sabe, alugar era crime.
Nota do autor, outubro de 2021: de onde veio esta ideia? Logicamente, de ter passado um tempo com a minha sobrinha! Afinal, existe coisa melhor do que ser tio e não ter a responsabilidade de educar, mas apenas o dever moral de estragar o sobrinho? Ter filho assim é muito mais fácil!
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais