O Analista de Cartão de Crédito
Seu nome? Adalberto. Sua profissão? Talvez a mais incomum de todas. Analista de Cartão de Crédito.
– O quê? Como assim?
É o que todos sempre perguntavam, quando ele dizia o que fazia. Sua função, porém, era bastante simples: analisar os extratos dos cartões de crédito de todos os clientes do seu banco e observar se mantinham o padrão ou não. O que, para todos os outros funcionários, não passava de algo bastante enfadonho e pouco complexo; mas não para Adalberto. Não. Adalberto era um artista – um rei. Ele era um craque no que fazia. Exercia sua arte como um Ricasso ou um Van Clog. Para ele, não bastava apenas observar o extrato – ele compilava dados, fazia análises, psicanálises, extratanálises! Cada simples compra tinha, para ele, um significado profundo e extremamente revelador sobre a pessoa.
Não demorou muito para descobrir como usar seus superpoderes.
– Michelle… Puxa vida, você tem um ar de… Leonina, acertei?
– Nossa, Adalberto, como você sabia?
A resposta era elementar, meu caro leitor: todos os anos, ela gastava uma quantia substancial em Agosto; tanto em restaurante, como em salão, roupas, etc, etc. Isso só podia significar uma coisa: era o aniversário de alguém.
Não bastasse isso, ele poderia simplesmente conferir pela data de nascimento, incluída nos dados do banco. Mas isso, logicamente, não tinha a menor graça. Na realidade, era um jogo: Adalberto sempre gostava de arriscar e ousar até um ponto em que perigosamente poderia errar.
– Ah, eu percebi pelo seu ar decidido. É uma pessoa fina, como mostram as suas roupas: todas de marca. Mas aposto que você compra pela qualidade, e não para ficar exibindo as roupas por aí, não é?
– Realmente! Puxa, Adalberto, estou impressionada! Mas isso até que é fácil de ver, porque basta prestar atenção nas etiquetas.
– Tudo bem, então eu vou te surpreender agora: você adora ler.
– Realmente! Mas isso é um chute fácil.
– Carlos Dumonte?
A moca ficou bestificada; Adalberto sorriu. Aquele havia sido um chute certeiro; ela gastara 23,99 na livraria na semana anterior e, buscando livros com estes valores, ele havia encontrado muitos que se encaixavam, mas apenas um que se enquadrava no perfil da moça. Fazia parte da sua psicanálise do cartão de crédito.
– Oh, Adalberto! Parece até que você já me conhece de antes! Tem certeza de que é a primeira vez que nos encontramos?
E era assim. Ficava com todas as garotas do pedaço, dormiam juntos por algumas vezes e, antes que a coisa ficasse séria e descobrissem o seu truque, ou antes que ficasse complicada demais para o seu truque dar conta, ele terminava com elas, deixando-as todas mistificadas com seus superpoderes.
A cada dia, porém, ele tentava levar mais e mais adiante, porque a graça do jogo estava naquilo: ver até onde seus superpoderes funcionavam.
Quando uma análise era particularmente difícil, ele marcava o nome da pessoa e levava trabalho para casa; pelo Buttpage¹, Bellower² e outros, tentava obter o máximo de informações que podia com o mínimo de busca, o que, geralmente, dava muito certo.
Quanto a si mesmo, por outro lado, sabendo do risco que corria (todo super herói tem o seu ponto fraco, e o de Adalberto era justamente o que lhe dava superpoderes: o cartão de crédito!), nunca usava cartão; apenas dinheiro vivo, como garantia de que ninguém nunca conseguiria seguir os seus passos. Não tinha Bellower, nem Butt, nem nada. Poder-se-ia buscar o quanto quisesse por toda a internet, que nada seria encontrado de Adalberto Silva Santos. Quer dizer, nada do verdadeiro, porque existiam muitas cópias por aí.
Até que, um dia, Adalberto encontrou sua arqui-inimiga: Sandra Emilia do Amaral.
Conheceu-a em uma confraternização do banco; não sabia em que função exatamente trabalhava, mas era uma moça linda, de pernas bem torneadas, seios fartos, quadris largos, cintura fina e rosto de modelo. Logo se aproximou; ele, que não tinha nada de excepcional enquanto o simples Adalberto. Conversa vai, conversa vem, ele conseguiu seu nome; era isso. Era aquele o primeiro passo para mulheres tão lindas quanto aquela. Como simples Adalberto, nada ele conseguiria; porém, dotado de seus superpoderes como analista de cartão de crédito – melhor! Psicanalista! – ele conseguiria tudo e mais um pouco, como tantas vezes já fizera antes com presas inocentes. Na empresa, obteve algumas informações sobre ela – era gerente, trabalhava na agência para contas de alto escalão, seu telefone era tal.
Quando foi analisar sua conta, porém… Nada. Era tão enigmática quanto a sua. Apenas uma retirada de grande parte do valor do salário, enquanto outra era depositada em uma aplicação. Inconformado com o alvo inatingível, ele entrou em contato com colegas analistas de outros bancos – mas nenhum com seus superpoderes – mas ninguém encontrou sequer um cartão de crédito em seu nome. Dados na internet… Ela não tinha. Simplesmente não havia como obter informações.
Mas ele não ia desistir; ia por seus poderes a prova. Ia mostrar que poderia ser mais do que um simples analista de cartão de crédito. Ligou para a moça e a convidou para sair; ela aceitou. Surpreso? Não tanto. Adalberto sabia que ela estava dando mole.
Na sexta-feira, encontraram-se em um restaurante. Ela tinha escolhido o local; logo ele começou a fazer elucubrações a respeito dela: bem de vida, com requinte e classe, deveria ser escorpiana. Pela roupa que usava, então…
– Sabe, Sandra, não sei por que, mas tenho a impressão de que você é de escorpião.
Ela riu.
– Quase, Adalberto! Sou de capricórnio – ela disse; Adalberto ficou desbancado. Mas tudo bem; era apenas um peão. Ele ainda tinha muitas outras peças em jogo. – Agora, você me parece ser de gêmeos, acertei?
Ele ficou paralisado.
– N-nossa, como você sabia?
– Ah, por esse seu jeito meio aéreo… E essa cara de quem tá escondendo tudo o que sabe. Aliás, aposto que você é um cara que gosta de carros grandes, não?
– Ah, isso quase qualquer homem gosta! Essa é fácil de acertar – tentou ele, mas, por dentro, estava ficando gradativamente mais nervoso. O que estava acontecendo?
– Me parece que você tem… Um Xobalt. Mas que você quer trocar assim que possível por uma Atractiva, não?
O queixo dele caiu.
– Pare com isso, Sandra! Como você sabe disso? Você anda me seguindo?
Ah, a resposta era tão simples! Mas ele, diante da sua priptonita, não via.
– E me diga uma coisa, Adalberto; quando você vai tratar aquela sua verruga no traseiro?
– Aaaaahhhh! – gritou ele.
Adalberto estava derrotado, humilhado! Desesperado, correu pelo restaurante até a saída, pegou o seu Xobalt, arrancou o papel com os dados da Atractiva que estava em cima do volante, atrapalhando sua visão, amassou-o e jogou pela janela, e saiu acelerando, desesperado. Em casa, ainda tentaria de todas as formas descobrir informações sobre Sandra Emília, mas nada.
Derrotado, Adalberto pediu transferência de setor; iria trabalhar com cofres. Abrir e fechar cofres. Queria coisa mais impessoal do que aquilo?
Sandra, enquanto isso, lentamente saboreou o seu cálice de vinho e acenou para que outra moça se juntasse a mesa.
– Deu certo, Michelle! – ela exclamou.
– Você falou daquela verruga nojenta que eu tive de aturar naquela semana inteira?
– Falei. Foi o xeque-mate! Saiu correndo gritando como uma libélula!
– Eu sei, eu vi! E, agora… O mundo todo vai ver.
Desde então, o vídeo “A Fuga de Adalberto e sua Verruga” virou riti da internet, com mais de dez milhões de visualizações no YouPipe³. E ele, que não queria ser conhecido por ninguém, agora tem de se trancar nos cofres para não ser assediado.
Nota do autor, setembro de 2021: você alguma vez já parou para pensar na quantidade de informações que uma simples fatura do cartão de crédito pode trazer sobre você? E do quanto, por consequência, aquele pessoal que fica bloqueando compras suspeitas, sabe sobre você?
Melhor voltar a usar dinheiro. Ou bitcoin.
¹ Rede social mundialmente famosa do planeta Areia, que envolve postar fotos e mensagens motivacionais.
² Outra rede social mundialmente famosa do planeta Areia, limitada a mensagens de 142 caracteres e cujo símbolo é uma vaca, como diz o próprio nome (Mugidor).
³ Outra rede social, mas esta é para postar vídeos.
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais