O Autileti de Carros
Josicleidson e Almir moravam na periferia da cidade de Santa Paula. Mas, quando eu digo periferia, eu quero dizer periferia mesmo: de lá para o centro da cidade, precisavam pegar trem, metrô, com duas baldeações em cada, e três ônibus diferentes; levavam às vezes 5 horas para ir e umas 6 para voltar. Por isso mesmo, nunca saíam muito de lá onde moravam.
Mas, ao contrário da maioria dos heróis que descrevemos nestas crônicas do País Pernil, J & A não eram bonzinhos; não, exatamente o contrário. Eles eram marginais. Nos dois sentidos da palavra, dada a distância que ficavam do centro da cidade.
Muitas pessoas se perguntavam se eles eram assim porque eles moravam lá, ou se eles moravam lá, porque eram assim, mas a verdade é que, mesmo nos bairros ricos de Santa Paula, havia salafrários. A única diferença era o estilo do golpe e a quantidade de dinheiro roubada.
Josicleidson era muito bom em montar e desmontar carros e teria conseguido um emprego sem dúvida muito bom em alguma oficina mecânica, se não tivesse uma índole no mínimo duvidável. Afinal, ele até chegou a trabalhar na oficina do seu tio, mas até dele o garoto roubava! Ora pois… Que outra solução? Passou a viver arrombando carros nas ruas. Ele era tão rápido e tão preciso, que poderia limpar um carro inteiro, parado na avenida Paulina, a principal e mais movimentada de Santa Paula, sem que ninguém percebesse, em menos de um minuto.
E Almir, seu vizinho, era um exímio motorista. Teria sido um grande piloto de fórmula 1, se tivesse tido o dinheiro necessário para tal. Porém, na falta de um patrocinador, ele até tinha tentado dirigir um táxi por algum tempo – só que sua licença era falsa, ele assaltava seus clientes, e depois de cinco anos na cadeia, decidiu que deveria agir de alguma outra forma para evitar ver o sol nascendo quadrado por um bom tempo.
Foi aí que os dois tiveram uma ideia genial, depois de rodadas e mais rodadas de cerveja no bar do seu Mansinho, que de mansinho não tinha nada.
– O que acha de um autileti de carros?
– Cumé?
– Ué, num tem autileti de roupa, de tênis e de sei lá mais o quê? Por que não um autileti de carro?
– Mas autileti não é um daqueles lugares que vendem as coisas mais baratas, mas com defeito?
– Exatamente!
– Mas eu nunca vi carro sair de fábrica com preço mais barato, porque tem defeito!
– É aí que tá o nosso filão do mercado!
– Jô, num tô entendendo sua ideia maluca.
– É bem simples. A gente rouba uns carro… Tira umas peça… Monta um autileti de carro, fala que eles tão mais barato porque tá faltando uma coisa ou outra, e pronto!
– Mas quem vai querer comprar carro com peça faltando?
– Aí é que tá o negócio! A gente monta uma outra loja, perto dessa, recomenda que os cliente vai lá, pra eles coloca as peça faltante. E a gente vende também as peça mais barato! A gente vamo ganha duas vezes mais!
– Mas, Jô… Não era mais fácil vender os carros e cabou? Ou levar pro desmanche?
– Cara, a gente vai ganha muito mais assim!
– Mas, e se a polícia descobrir?
– Não vai descobrir. A gente pinta os carro de outra cor, altera os chassi, arranca as placa… Vai ser perfeito!
Almir ficou com o pé atrás, mas, depois de pensar bastante, teve de admitir; a ideia era genial!
Tudo de que precisavam era um grande galpão, onde armazenar os carros, uma mecânica no andar inferior, onde fariam as alterações necessárias, e pronto. Uma associação com a Feique, a gráfica de falsificações que tinha por lá, e poderiam fazer tudo, desde documentação, até o emplacamento – era só trocar as placas dos carros que roubavam entre si. A polícia nunca conseguia chegar às periferias da cidade, mesmo, pois eram controladas por traficantes e eles tinham uns bons fogueteiros de vigia, de forma que podiam ficar tranquilos.
O primeiro carro que Josicleidson roubou foi um Cesta; estava parado em uma rua, dando sopa, era novinho. Os dois se aproximaram, Jô arrombou a porta, desativou o alarme, Al saltou para o banco e, em menos de um minuto, estavam rodando pela cidade.
– É isso aí, cara! Novinho, tem só 200 quilômetros rodados! Maravilha!
– Há, como é bom tá na ativa de novo! Cê vai vê, logo, logo e eu compro o meu Camala Amarelo! – disse Jô.
Passaram dias de olho nos carros mais novos da cidade e assim foram juntando, juntando e juntando a sua frota. Em pouco tempo, já tinha vinte carros, todos desemplacados, com chassis adulterados, cores trocadas, odômetros zerados, sedentos por serem vendidos.
Entretanto, como todos no seu bairro conheciam a fama que tinham de ladrões, tiveram de buscar em outro bairro periférico o local para alugar o galpão. Colocaram uma placa do lado de fora: “J.A. Autileti de Carros”, fizeram alguns folhetos, espalharam pela região e ficaram a esperar; durante o dia, eram simpáticos vendedores de carros, e durante a noite, ladrões falsificadores.
– O que o senhor deseja? Um Cesta 2013? Um Fiasco versão 2014? Este aqui está novinho! – ofereceu Almir.
– Mas por que estão vendendo por metade do preço?
– Porque aqui é um autileti, e estes carro têm pequenos defeito, tão mínimo que nem dá pra vê.
– E o que este tem?
– Tá vendo o fio da costura do estofamento? Tá solto.
– Ah, vá! Só isso? Você tá me passando a perna!
– Tô nada! Quer fazer um testi draivi?
E lá se foram eles; o cliente ficou satisfeitíssimo, comprou o carro à vista, e os olhos de J & A brilharam.
– Nossa primeira venda! Ah, isso aqui vai ser uma mamata!
– Gostaria de ver este Espectra? – perguntou Jô. – Tá uma pechincha. Seis mil falsos.
– Mas tá barato demais! Por quê? Qual o defeito dele?
Jô abriu o capô.
– Veio sem motor. Mas nós recomendamos um autileti de peças de carro que ó…
O esquema de autileti de carros se tornou um verdadeiro sucesso. Logo contrataram toda uma equipe – formada por salafrários do bairro onde moravam – e distribuíram filiais pela cidade. O índice de roubo de carros nunca foi tão alto; com isso, comprar carros com pequenos defeitos se tornou uma necessidade popular. Em pouco tempo, a televisão estava entrevistando os felizes proprietários do Autileti, que já estavam dirigindo seus tão sonhados Camalas, amarelos de listras pretas.
Quando perguntavam como conseguiam seus carros por um preço tão baixo, eles simplesmente falavam:
– Ninguém conta para vocês, mas têm muitos carros com pequenos defeitos que voltam para a fábrica ou são descartados. O que nós fazemos é comprar os carros e vender por um preço justo!
Bom, tanta atenção da mídia logicamente levantou a suspeita da polícia federal. A PF se infiltrou na gangue, conseguiu descobrir todos os detalhes do golpe, e, em uma atitude amplamente divulgada pela televisão, com apoio popular, desbancou todo o esquema e levou todos presos. Os carros foram devolvidos aos seus donos originais, com os chassis restaurados, pinturas originais, placas recuperadas e eventuais modificações feitas pelos mecânicos adequadas.
Só que não.
Afinal, este é o País Pernil, e tudo acaba em pitsa. Realmente, tanta mídia chamou a atenção da PF, que decidiu investigar o caso – e acabou comprando toda a sua frota de lá. Logo o governo, lá em Pernília, decidiu fazer o mesmo, e J & A só não se viram em dificuldades de cumprir com os pedidos, porque tinham uma equipe de mais de vinte bandidos roubando carros todas as noites. A criminalidade foi às alturas, mas como iriam saber que a culpa era dos autiletis de carros, que pareciam tão legalizados?
Assim, como sempre no País Pernil, os salafrários se deram bem, os bonzinhos se deram mal, e tudo continuou como sempre foi.
Ô, tristeza!
Nota do autor, setembro de 2021: esse é um exemplo típico do País Pernil: gente do mal se dando bem, gente do bem se dando mal. Qualquer semelhança com outros lugares não é mera coincidência.

O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais