O garoto de papilas gustativas hipersensitivas
Geraldo sempre foi uma criança bastante diferente. Quando lhe serviam alguma coisa para comer, ele sentia gostos que ninguém sequer percebia. Muitos achavam que era frescura; sua mãe, por exemplo, sempre disse que desde pequeno ele era muito chato para tudo, até mesmo para mamar. Se ela ingeria qualquer coisa diferente, como por exemplo, chupar um limão, colocar uma gota de pimenta na comida, ou até mesmo um fondue, ele não queria mamar de forma alguma. O médico achava que isso dava cólicas no garoto, e a mãe ficou proibida de comer qualquer coisa que contivesse uma lista gigantesca de alimentos. No entanto, como o tempo mostrou, a verdade é que Geraldo era muito exigente com o seu paladar.
– Mãe, você pôs cominho no feijão de novo! – ele gritou, da mesa, enquanto sua mãe estava na cozinha, fazendo o prato da sua irmã mais velha,
– Ô, moleque chato! Eu não pus, não!
– Pôs, sim! Eu posso sentir o gosto bem aqui!
– Tá bom, mas foi só uma pitadinha.
– Pitadinha, nada. Foram exatamente 127 grãos e três quartos!
Todo mundo achava que era só brincadeira do garoto, porque, desde que ele aprendera a contar, ele vinha com essas histórias. Tantos grãos de tal tempero, tantas folhas de orégano, tantos mililitros de óleo de peroba, etc, etc.
Até que um dia, sua irmã estava tão cansada dessa pantomima toda, que resolveu testar: temperou um chili com exatamente 37 sementes e meia de pimentão, 25 sementes e meia de pimenta Cambuci, meia pimenta malagueta de tamanho médio, um quarto de cebola média e dois dentes de alho grandes. Ah, sim, e meia folhinha de salsa, para fazer jus às origens latinas.
Quando Geraldo foi provar o chili com seus nachos, ela perguntou:
– E aí, o que achou?
– Até que está bom, mas não está igual à receita do “No, Señora”.
– O que eu coloquei aí dentro?
– Uhm… O chili tem 37 sementes e meia de pimentão… Um quarto de cebola média, dois dentes de alho grandes… O feijão é de origem duvidosa, acho que é importado do Paraguai… 25 sementes e meia de pimenta Cambuci, mas estava verde demais… Uma pimenta malagueta bem pequena, ou meia de tamanho médio, mas que também não é de boa qualidade. Provavelmente a árvore é misturada com outra espécie… E… Bem, o nacho deve ser industrializado, porque eu definitivamente senti o gosto de um pelo de rato branco nacarado de tamanho médio. Fêmea.
Os nachos com chili nas mãos de sua mãe, irmã e pai quebraram-se no meio, caindo no chão, enquanto eles o encaravam, imóveis.
– O que foi?
– Geraldo! Como você descobriu tudo isso? Foi exatamente assim que eu fiz, tirando o pelo de rato, lógico!
– Ah, sei lá, eu senti…
– As suas papilas! – disse seu pai, pegando-o pelas axilas e o erguendo. Porém, como era muito pesado para ele, logo o colocou de volta no chão, tossindo um pouco pelo esforço. – As suas papilas maravilhosas! Tem ares de chefs internacionais! Meu Deus, Geraldo, sua língua vale ouro!!!
– Ah, é?
– Só precisamos descobrir o que fazer com ela e ficaremos milionários! Vamos, limpe sua língua com água com gás e trate de não tomar nada muito quente ou muito gelado. Temos de cuidar dela, cuidar muito bem!
As coisas mudaram muito rapidamente naquela casa. Marcelo, pai de Geraldo, tinha um pensamento de empreendedor bilionário Trosso, e logo tomou algumas providências: saiu de seu emprego exclusivamente para cuidar da carreira meteórica do filho, que então tinha apenas 10 anos; fez um seguro de valor altíssimo pela língua dele; instituiu exercícios diários de degustação, para afinar a língua e ter certeza do que ela era capaz; proibiu o garoto de ingerir alimentos que poderiam fazer mal a ela, além de obrigá-lo a usar placas dentárias durante a noite, para não morder a língua.
– E beijo de língua, nem pensar! Nada de gastar essa preciosidade com menininhas por aí!
Não que ele pensasse nisso com aquela idade, mas era bom já deixar isto bem claro. E ainda bem que não nevava naquela região, ou ele teria a ideia idiota de encostar em um poste, só para ver a língua congelar e grudar. Indubitavelmente, uma perda imensurável.
A questão era: onde exatamente utilizar o poder de Geraldo? Porque ele era jovem demais para ser usado para degustar vinhos. O que ele poderia degustar?
Rapidamente, Marcelo teve uma ideia: iria ao CAT (Centro de Aporrinhamento do Trabalhador), onde poderia buscar uma oportunidade de emprego.
Infelizmente, porém, não havia vaga para degustadores oficiais de diversos alimentos menores de idade. A vaga havia sido ocupada no dia anterior.
– Mas sabe o que você pode fazer? Você pode ir ao Ministério da Degustação[1] e conversar com o ministro. Dizem que ele é bem aberto, já que a agenda dele está sempre livre.
Assim, Marcelo pegou suas economias e subiu em um ônibus para Pernília. Lá encontrou o Ministro da Degustação, jogando futebol de botão (com peças de ouro) em seu escritório, acompanhado do vice-ministro, o assistente do ministro (AM), assistente do AM (AAM), o assistente do vice-ministro (AVM), o assistente do AVM (AAVM) e os seus respectivos comissários de bordo oficiais, carregadores de taças e buscadores de papel higiênico emergenciais.
Obviamente, era um assunto de estado de importância tremenda.
Quando Marcelo explicou quem era e a que vinha, o Ministro pareceu apenas parcialmente interessado; só acreditou de verdade, quando lhe trouxeram uma empada de bacalhau Sudoreguês[2], repleta de frescuras e temperos importados de diversos países do globo, e o garoto acertou cada um deles, inclusive a quantidade de cada ingrediente.
– Mas isto é formidável! – exclamou o Ministro. – Eu até tenho uma vaga de degustador federal de insetos na Amastônia, que serviria para podermos fazer lanches mais baratos, mas… Eu tenho uma proposta melhor…
Como todo bom político do País Pernil, ele logo criou uma forma de tornar essencial que o garoto fosse utilizado na política alimentícia do país. Obrigou que todos os alimentos passassem por um degustador oficial, através de um projeto de lei que foi aprovado muito rápido, graças à sua influência na esfera federal; em seguida, especificou que tal degustador teria de ser terceirizado; e, quando abriram as vagas de licitação, as únicas empresas que concorriam eram as suas três. Por fim, Geraldo estava ganhando um dinheiro considerável, o ministro estava ganhando uma soma trinta vezes maior, e a população do País Pernil pagava para que alguém degustasse a sua comida antes dela.
E para que isso servia?
Nada, porque a vigilância sanitária raramente interditava alguma empresa. Afinal, tinha pelo de rato em praticamente tudo, em especial no congresso, e o governo achou melhor esconder as coisas piores que encontrou em quase todos os produtos pernileiros.
A vida foi confortável para Geraldo e sua família por um tempo; ele ficou razoavelmente bem de vida, tinha um emprego que não lhe exigia muito, podia ir para a escola, e ainda desfrutava de todas as regalias de um funcionário público.
– Esta salsicha é feita de… 5% de pescoço de porco, 3% de pata de porco, 7% de rabo de porco, 2% de asa de pato, 10% de jornal, 0,05% de corante… – ele foi falando, dando uma lista gigantesca de ingredientes, que incluía de tudo. – E 1% de orelha de galinha.
– Mas galinha não tem orelha, Geraldo! – exclamaram seus assistentes.
– Esta tinha. E não era muito apetitosa, se quer saber.
Entretanto, quando fez 12 anos, o garoto estava cansado de tudo aquilo. Era sempre a mesma coisa, e os ingredientes dos produtos industrializados eram simplesmente tão horríveis, que ele não sabia mais o que era seguro comer.
Foi aí que o ministro lhe fez uma proposta bastante diferente.
– Tente descobrir o que tem de ingredientes no molho especial deste sanduíche – ele falou.
Geraldo provou, teve de admitir que o sanduíche era gostoso, e o molho um pouco peculiar, mas conseguiu definir tudo o que estava lá.
Pouco tempo depois, o ministro, usando o nome de sua esposa, abriu uma empresa de lanches rápidos, chamada de Daph’s (porque seu nome era Daphne), que foi um sucesso tão grande, ainda mais por usar mulheres bonitas e seminuas em sua propaganda, que logo desbancou empresas tradicionais, como o Burguer Queen e o Tob’s.
Mas ainda faltava um.
– Eu quero que você descubra o molho secreto do Back Gonald’s! – disse o ministro.
– Mas o que isso importa para o governo? – perguntou o garoto, que até então não havia percebido as falcatruas do ministro.
– Ora, e se estiverem usando alguma substância ilegal? Precisamos saber.
Assim, o ministro o levou certo dia para comer lá; entretanto, o dono do Back Gonald’s também tinha seus informantes no governo, ficou sabendo do que estava acontecendo e, no momento em que o garoto veio e pediu seu lanche, foi-lhe servido um diferente.
– Que engraçado… Anote aí… Tem 1% de cardamomo… 3% de bétulas… 0,01% de gengibre… 2,5% de queijo gorgonzola… 1% de essência de trufa trancesa…
E assim foi; o molho misterioso era complicadíssimo de se fazer, mas, satisfeitíssimo, o ministro se foi, levando a receita e deixando o cartão do governo para que o menino pagasse a conta.
Mas, em seu restaurante, os cozinheiros não conseguiram fazer o molho, mesmo tendo todos os ingredientes; uma vez misturados, eles entravam em combustão espontânea. Não lhe restou outra escolha, se não importar os mais famosos chefs tranceses para tentar descobrir como misturar tudo aquilo de forma segura.
E, depois de muitos meses de esforço, eles conseguiram, a um custo abusivo.
Mas era isso! Agora, o ministro iria conseguir derrubar a rede rival! Suas ações nunca foram tão altas, com as apostas colocadas na Bolsa de Valores.
Quando pôs o sanduíche no mercado, porém, após uma campanha publicitária extremamente agressiva, que usou boa parte dos recursos públicos do ministério da degustação (previamente desviadas), a população não gostou. O gosto era horrível; parecia um chai (aquele chá da Aborigênia[3]) coado em uma meia chulezenta.
O ministro foi à falência; havia apostado tudo naquela descoberta, e seus investidores da bolsa rapidamente venderam todas as suas ações. Da noite para o dia, de bilionária, sua mulher, que era dona de tudo, havia se tornado… Apenas uma pessoa rica.
A derrocada da esposa do ministro, porém, chamou a atenção do público, que fez uma manifestação, exigindo uma CPI, e logo foi descoberto o esquema de corrupção que o envolvia. Para a sorte de Geraldo, ele era menor de idade e foi considerado como uma vítima submetida a trabalho infantil; se fosse maior, seria considerado cúmplice e seria o único condenado (pois a justiça do País Pernil é meio estranha). No entanto, após um julgamento de três anos, o ministro foi considerado culpado, e após dois anos de recurso, ele finalmente foi condenado a oito anos de prisão. Como já haviam se passado cinco, ele foi liberado por bom comportamento e sequer pôs os pés no presídio. Sua medida provisória foi derrubada, e o serviço de degustador oficial não serviu para mais nada (mas ainda assim havia funcionários fantasmas para isso).
E quanto ao Geraldo? Foi contratado pelo Back Gonald’s, para servir como agente duplo, enganando os concorrentes e impedindo que desenvolvessem um molho igual ao dele. Aos 18 anos, finalmente entrou para o mundo do vinho, mas descobriu que este também vivia de um produtor tentando puxar o tapete do outro. Desanimado com todas estas opções tristes no País Pernil, mas já rico o suficiente para sustentar até seus netos, ele pagou um médico para lhe fazer uma cirurgia experimental que lhe removesse todas as papilas gustativas (não sem antes cancelar o seguro, lógico). Hoje, a sua língua é meio presa, e ele não sente o gosto de nada – tudo parece frango.
Só que esses dias ele descobriu que consegue sentir e definir cheiros a uma distância de 20 quilômetros, quase como um cachorro…
Mas não vai contar para ninguém. É mais seguro.
Nota do autor, outubro de 2021: a ideia desta crônica surgiu, lógico, pensando sobre os degustadores de vinho! Mas, fico até em dúvida se não seria um conto de fadas urbano… Talvez, um conto de fadas pernilense, por que não?
[1] O País Pernil é o País com o maior número de Ministérios do Planeta Areia: 67 e meio. Ninguém sabe exatamente o porquê, mas existem célebres departamentos, como o Ministério de Proteção às Mulas sem-Cabeça e outras figuras Folclóricas, que conta com a subdivisão de reabilitação pós-voadoras de Sacis e centro de reconstrução plástica de Cucas, que, até hoje, só não vive às moscas, porque muita gente erroneamente leva suas cucas (o alimento, não o ser) para serem tratadas. E de lá são encaminhados ao Ministério dos Alimentos Estranhos.
[2] Um país do Escondinávio, região ao norte onde vivem os países com maior IDH do planeta Areia. São famosos por seus bacalhaus, queijos e pessoas que voluntariamente andam com chapéus chifrudos.
[3] Aborigênia é um país próximo à Atchina, com a segunda maior população mundial, onde todos tomam chai, comem coisas esquisitas muito apimentadas e têm deuses com diversos braços e trombas. Por muito tempo foi colônia da Ingraterra, até ser liberada com uma das guerras mundiais (iniciada por uma greve de elefantes, diga-se de passagem).
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais