O golpe da mecânica
No Pernil, todo mundo já nasce mal intencionado. Se, por acaso, você encontrou alguém que não é mal intencionado lá, só há duas opções: ou é estrangeiro e ainda não viveu lá tempo suficiente (i.e., duas semanas); ou está doente, quase à beira da morte, com a intenção de redimir seus pecados¹.
A história que vamos contar é um exemplo disso. Jaiminho era apenas um pacato cidadão que estava tentando levar a sua vida pacata na cidade nem um pouco pacata de Santa Paula. Ele trabalhava 326 dias por ano para pagar impostos², tentava ascender de vida graças às propagandas governamentais sobre esperança e meritocracia, mas sabia que, no fundo, só havia uma forma de ganhar dinheiro de verdade naquele país.
Exatamente. Dando golpes no povo que tinha dinheiro (porque tinham dado golpes). Ele esperava ansiosamente pelo seu momento em que teria uma epifania: o golpe perfeito. Assim ele dirigia seu carro velho (um Agilíssimo) em uma ponte, quando o trânsito parou, e ele foi acertado na traseira por um Econosport³. O homem que do outro carro saiu estava de terno e bem arrumado, entregou-lhe um cartão e disse:
– Desculpe por isso, estava distraído. Vá neste lugar aqui, o funileiro é meu amigo, ele vai arrumar para você. Por minha conta.
E, com isso, desapareceu.
Jaiminho olhou para o cartão do homem: era um advogado corporativo e, portanto, montado na grana. Agora, por que ele iria pagar de tão bom grado o conserto? Será que ele não tinha seguro? Aquilo não fazia o menor sentido! Quem era doido de morar em Santa Paula e não ter seguro do carro?
– Bom, de cavalo dado, rouba-se a dentadura – pensou ele. – Às vezes o cara tem tanta grana, que o que é para ele pagar o conserto de um carro?
Assim, Jaiminho levou seu carro para uma oficina mecânica no Bumbumtantã, um bairro da cidade que ele conhecia bem, pois fora lá que ele crescera e aprendera a dançar funk rebolando até o chão. O seu Eniomar da oficina conhecia de fato o advogado, e o conserto foi feito de forma precisa e ágil (ao contrário do carro). No dia seguinte, já com seu carro de volta, Jaiminho ficou tão surpreso, que teve de abrir o capô e checar, item a item, se tudo estava correto. Porque simplesmente não era possível!
Talvez ele estivesse à beira da morte.
Era a única opção para uma ação tão correta de alguém do Pernil
– Ou talvez seja gringo. Bem que tinha cara de Arrogante⁴.
Foi neste momento, é claro, que uma luz se acendeu sobre Jaiminho. Em parte era a luz interna do carro, porque ele tinha acabado de abrir a porta, mas em parte era também uma ideia simplesmente genial, infalível! O golpe pelo qual Jaiminho esperara sua vida toda!
Ele rapidamente chamou seu parça, Aristófanes, carinhosamente apelidado de Barriga, o Filósofo. Ele era magro igual pau de virar tripa e estaria mais para Diógenes, mas o que seria do Pernil sem a sua ironia? Assim, eles se organizaram.
Primeiro passo: arranjar uma roupa chique. Jaiminho comprou no brechó sem muita dificuldade.
Segundo passo: arranjar um carro chique e resistente. Ele comprou uma Manero Takara usada, um jipão, dando o seu como entrada e financiando em 120 vezes⁵.
Terceiro passo: montar uma oficina de fachada. Isso o Barriga conseguiu fazer, usando um terreno baldio que ele conhecia.
Quarto passo: executar o golpe.
Assim, logo no dia seguinte, Jaiminho acertou em cheio a traseira de um carro aleatório. Com seu carro é claro que não aconteceu nada, mas o outro ficou bem amassado. Ele executou os mesmos passos que o advogado, entregando um cartão falso; no dia seguinte, o pobre coitado do carro amassado levou o veículo para a oficina do Barriga, que ele havia enchido com carros de amigos, para parecer realmente ocupado.
E, uma vez que o cliente virou as costas, começou o trabalho de verdade: desmancharam o carro inteiro, venderam as peças para um amigo no Mar de Fevereiro, e depois desmontaram a oficina mecânica, devolvendo os carros aos seus lugares e transformando o terreno baldio novamente em terreno baldio. No dia seguinte, quando o pobre coitado foi lá buscar seu carro, qual não foi a surpresa?
– Mas eu tinha certeza de que era aqui!
No final, não foi um mau negócio para nenhum dos dois. O carro estava para sair do mercado, pagaram melhor no seguro do que se ele tivesse vendido o carro, e o homem ainda pôde comprar um carro novo financiado em 240 vezes. Todos felizes, até mesmo o governo!
Montados na grana, Jaiminho e Barriga continuaram com o golpe, sendo cada vez mais ousados, montando a oficina cada dia em um lugar diferente e agindo com precisão. Estava ficando tão ricos, que poderiam até mesmo considerar sair do Pernil!
Até que, um dia, acertaram o carro de um policial.
Pois é! Não tinha como saber, tinha? O cara estava de folga!
Quando levou o carro para o conserto no dia seguinte, estava fardado e armado; Barriga engoliu em seco.
– O gato subiu na grelha⁶! O que eu faço?
– Relaxa que vai dar bom – disse Jaiminho, tranquilo.
Ele só falou isso porque já estava com passagem comprada para Potrogal.
– Mas eu conserto o carro?
– Nada, bora desmontar.
No dia seguinte, quando o policial foi buscar seu carro, o terreno baldio era novamente um terreno baldio; não havia nada lá, exceto por Jaiminho, com as mãos nos bolsos. Ele parou do lado do policial desolado e lhe entregou um maço de dinheiro.
– Tem mais de onde isso veio.
Explicou ao policial como funcionava o seu esquema e perguntou se ele queria participar; é claro que ele deu um sorriso e concordou. No Pernil, os policiais ganham tão mal, que estar envolvido em um esquema de corrupção é algo institucionalizado, algo como um vale refeição para complementar o salário.
Assim, com a ajuda policial, eles nem precisavam mais se preocupar tanto em fazer as coisas às escondidas, ou sumir com as provas tão rapidamente. O golpe da mecânica floresceu, e por Santa Paula, ninguém confiava mais em lugar nenhum para consertar os carros, nem mesmo nas concessionárias.
Logo, é claro, a possibilidade de manter o negócio se esgotou: ninguém mais queria consertar carros, andando todo mundo com os carros batidos por aí. Só que neste meio tempo, Jaiminho, Barriga e o policial já estavam morando lá no Charutibe⁷, fumando charutos e bebendo mijitos⁸.
¹ Isso é meio controverso. O pecado verdadeiro no Pernil seria não cometer pecados, então, quem quer se redimir dos seus pecados deveria, na verdade, cometê-los. É, eu sei, as religiões podem ser mais confusas do que já são lá naquele país.
² Os outros 30 ele estava de férias, e os outros 9 eram feriados.
³ O Econosport era um carro da Tord que nem economizava, nem era esporte, cumprindo exatamente o seu propósito de propaganda enganosa. Assim como o Agilíssimo, carro da Cabriolet, que podia ser qualquer coisa, menos ágil.
⁴ Quem mora nos Emirados Unidos da Arrogância é conhecido por arrogante.
⁵ Era uma política governamental do Pernil financiar tudo no maior número de parcelas possível. Enquanto as pessoas vivessem atoladas em dívidas, elas nunca parariam de trabalhar, nem parariam para reclamar. Era a política do Pão, Circo e Boleto. É claro, às vezes alguns não conseguiam pagar, mas, contanto que as rodas da economia continuassem girando para favorecer os empresários ricos que financiavam os políticos, tudo iria bem no Pernil.
⁶ Ditado popular que diz que a coisa azedou, que está para pegar fogo, aludindo, claro, à comida de rua mais glorificada de Santa Paula, o churrasquinho de gato.
⁷ País da Emédica Central, conhecido por suas praias paradisíacas e charutos de qualidade duvidosa.
⁸ Não, não é Mojito. É Mijito. Nem quero te falar do que é feito.
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais