O golpe do seguro
Janeidson e Cledivelton eram dois amigos que moravam na periferia de Santa Paula. Não tinham absolutamente nada em comum, tirando, apenas, dois fatos: primeiro, moravam no mesmo bairro e eram praticamente vizinhos; segundo, frequentavam a mesma igreja.
Como qualquer pessoa de bom senso no País Pernil, o sonho deles era se tornarem ricos. No caso de Janeidson, para comprar um Catalo Amarelo, o carro da moda, e sair por aí catando as menininhas, como o próprio nome do possante já sugeria. No caso de Cledivelton, para conseguir uma vida digna para a sua esposa e suas duas filhas. O que, na sua concepção, era uma vida em qualquer lugar num raio de 50 quilômetros daquele bairro.
Os dois acabaram se tornando amigos com os encontros inevitáveis no culto e, conversa vai, conversa vem, acabaram combinando de periodicamente jantarem um na casa do outro. E, certa noite, estavam discutindo sobre como os carros eram caros (talvez a semelhança das duas palavras não seja mera coincidência, sugeriu Cledivelton), em especial os Catalos Amarelos, quando algum deles, não saberiam dizer quem, começou a falar sobre seguro.
– Mas olha só que engraçado o que aconteceu com um amigo meu. Tinha um Ku novinho, aquele carrinho apertadinho da Fod¹, sabe? Então, estava no nome dele, mas quem pagava o seguro era a esposa. Os dois se separaram, ele bebeu, bateu o carro, deu perda total, mas saiu vivo. E, quando foi pedir a indenização do seguro… Ficou com a mulher!
– Mas até isso ela pegou com o divórcio? – questionou Janeidson. – É por isso que eu não me caso…
– Não! É que, como era ela que pagava o seguro, foi ela que recebeu o dinheiro, mesmo o carro não sendo dela.
– Isso é totalmente…
Os olhos de Janeidson brilharam.
– Genial!
– Ahm?
– Cledí, meu amigo – ele falou, passando o braço por sobre seus ombros. – O que você acha de ficar rico?
O que mais se poderia responder quando alguém pergunta isso? O amigo expôs toda a sua ideia maravilhosa e, quando acabou, Cledivelton disse:
– Isso me parece muito um livro que eu li outro dia, Almas Mortas. O trosso, sei lá eu o nome dele, eu não conseguia ler direito, saía por aí comprando papéis de escravos mortos.
– Ahm… Certo – respondeu Janeidson, revirando seus olhos. Esse era o seu amigo, sempre falando dos livros que comprava no sebo do seu Matias. – Igualzinho. Agora, o que acha?
– Não sei, não, Jane. Quer dizer… Isso não é meio… Sei lá? Cruel?
– Escutaqui… Você quer sair desse bairro medíocre e dar uma educação digna para as suas filhas, ou não?
Ele pensou um pouco, buscando algo em algum livro para se convencer.
– Bem, os fins justificam os meios, já diria algum russo. Será que é Barx²?
No final, ele concordou e os dois entraram em ação. No domingo, teriam um dia cheio!
No fim de semana, logo cedo, começaram a trabalhar: haviam feito uma lista com todas as pessoas da igreja, escolhendo as que tinham os melhores carros. Em seguida, buscaram orçamentos de diversas empresas diferentes, calcularam o que tinham em suas poupanças, e Cledivelton tinha bastante, sempre pensando no futuro de suas filhas, venderam os seus carros e motos e, calculando que conseguiriam multiplicar isso no mínimo em trinta vezes, foram bater às portas dos amigos.
– Bom dia, irmã Maria! – disse Janeidson, com seu sorriso de vendedor de roupas do Traz, um bairro de Santa Paula muito famoso por suas roupas de confecção própria ou marcas de procedência duvidosa. – Nós viemos aqui hoje lhe dar uma ótima notícia!
– Sério, irmão? O que foi?
– Estava em casa esta noite, quando senti que… Bem, a senhora tem um carro, não é?
– O meu marido tem, sim, um Infusion…
– Exatamente. Bem, eu senti hoje de madrugada que eu tinha de vir aqui e ajudar a senhora. O carro é novo, não é?
– Sim.
– E já fizeram o seguro?
– Ainda não, meu marido está vendo…
– Então, pode deixar, que eu faço por vocês. Eu mesmo vou pagar o primeiro ano de seguro do seu carro.
– Mas, Janeidson, como assim?
Com um pouco de persuasão, ele conseguiu convencê-la de que simplesmente tinha de fazer aquilo, que era meio que uma missão divina e, depois de meia hora, alguns cafés e bolos, eles saíram de lá sorridentes.
– Eu não sei não, Jane…
– Relaxa, Cledí, até agora a gente só fez boas ações.
Mas a história foi crescendo e, até o final do dia, com dez carros nas mãos, Janeidson já havia se tornado um vendedor de seguros de carro, uma forma que achou muito mais eficiente de conseguir fazer os seguros em seu nome.
Depois de duas semanas, ambos indo trabalhar de transporte coletivo, mas jurando que aquela vida estava para acabar, eles conseguiram fazer o seguro de todos os quinze carros, cada um com uma seguradora diferente, mas sempre no nome de um dos dois.
– Muito bem, muito bem. Agora é a segunda parte…
Mandaram um convite para todos os donos dos carros irem ao Turistá, uma ilha do litoral de Santa Paula, para um churrasco de comemoração. Iriam todos em seus carros, desceriam de comboio para Prantos³ e de lá pegariam a balsa de ligação.
– É isso aí, vai ser demais, pessoal!
Estavam todos empolgados; desceriam todos no domingo seguinte, pela manhã. E lá se foram, para a felicidade da dupla de enganadores, todos com os seus carros novinhos e segurados por eles.
– Tá bom, Jane, agora, me explica, como é que você vai fazer para conseguir o dinheiro dos seguros de volta? Nós gastamos mais de trinta mil falsos nessa brincadeira!
– Tranquilo, Cledí, tranquilo. Fica aí apreciando a brisa, que eu cuido de tudo.
Quando estavam no meio do caminho, bem no meio do mar, Janeidson foi para a frente da balsa e puxou um controle remoto; à distância, uma pequena lancha começou a se aproximar e bateu de frente contra a balsa.
Ninguém percebeu; ele derrubou o controle no mar. E, três segundos depois… Diversas explosões sob a balsa, que se desfez como um quebra-cabeças.
– Ataque terrorista, ataque terrorista! – gritou ele, desesperado, pela embarcação.
Foi um caos total; teve até gente dizendo que tinham acertado um iceberg, sabe Deus por que ou como. Coletes salva-vidas foram distribuídos, a guarda costeira foi acionada, mas, em questão de minutos, todos os pedaços da balsa já haviam afundado, levando os carros consigo. Janeidson estava tão radiante, que teve de nadar até um barco afastado, para que ninguém visse sua expressão de felicidade. Cledivelton, por sua vez, estava assustadíssimo e não sabia o que pensar: será que Janeidson tinha feito aquilo sozinho? Ou era tudo uma coincidência? Como saber?
Ele, porém, não pensou muito nisso. O importante é que todos saíram vivos. Molhados, mas vivos.
Ao final de uma semana, as seguradoras pagaram mais de meio milhão de falsos para cada um deles, e cada um tomou o rumo que desejava, deixando a igreja e os amigos enganados para trás. Estavam ambos extremamente felizes e sorridentes, dizendo para tudo e todos que tudo não passara de um trágico acidente.
Entretanto, meus amigos, se tem uma lição que temos de tirar desta história, é que mentira tem perna curta, e, no caso de empresas de seguro e do Imposto de Renda, ela é tão curta que cabe em calças de bebê. Porque, mal estavam lá Janeidson com seu Catalo Amarelo e Cledivelton com a sua amada casinha em um bairro de classe média, a polícia civil veio procurá-los. Seriam presos por tantos crimes diferentes, que eles podiam escolher se enumeravam por ordem cronológica, alfabética ou nível de absurdo.
Na prisão, por coincidência, os dois ficaram na mesma cela. Conseguiram o que quiseram, ainda que por muito pouco tempo e por um preço extremamente alto. Mas preferiam não falar sobre isso.
– Ei, Cledí…
– Que foi, Jane?
– O que acontecia no final daquele livro lá… O tal de Almas Mortas? O caboclo que compra escravos mortos se deu bem ou não?
– Ah, Jane… Não sei.
– Como assim? Você não terminou de ler?
– O problema é que o autor não terminou de escrever. Ele ficou louco e queimou boa parte da segunda metade do livro antes da publicação. Então, ninguém sabe o que acontece.
Janeidson suspirou, olhando pela janela da cela.
– Acho que eu imagino o que aconteceu…
Nota do autor, outubro de 2021: pois é, Almas Mortas é um livro de verdade e, realmente, nunca saberemos o que aconteceu no final ou por que raios o protagonista estava comprando escravos mortos. Foi dele que veio a inspiração para esta crônica, embora eu tenha lido Almas Mortas muitos e muitos anos antes.
Agora, você deve notar, é basicamente a primeira vez que os ladrões são presos no país Pernil. Pois é: com a polícia de lá, você pode até tentar argumentar, mas, tentar passar a perna em empresas privadas? Nem a pau. Especialmente as de seguro.
(Inclusive, há empresas de seguro lá vendendo seguro para quem quer passar a perna em empresas de seguro. Reza a lenda que essas empresas também são seguradas por outras empresas, caso lhes passem a perna. Coisa de louco!)
¹ Por razões óbvias, ninguém falaria os nomes da marca e modelo deste carro na sequência. Entretanto, como é o país Pernil e tudo é festa, o povo adora falar isso repetidamente. Eu alterei aqui a fala original pela decência dos nossos leitores.
² Saul Barx era um revolucionário Trosso que sonhava com a igualdade (de pobreza) entre todos, exceto o governo, que deveria solapar todo mundo e viver na riqueza e ostentação. Entretanto, como o próprio nome sugere (Barx curiosamente parece-se muito com Barks, late, em inglês), Saul só latia, mas fazer algo que é bom, nada. Ainda bem!
³ Cidade bem feia do litoral de Santa Paula, geralmente cinzenta e cheia de canais que jogam esgoto no mar. Dá para entender por que chama Prantos, né?
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais