O Programa de Casais
Tudo começou de uma forma bastante inocente. Marcela recebeu um telefonema de Rubens, um amigo de muito tempo que trabalhava com televisão.
– Nós precisamos de um casal para participar do nosso programa de entrevista. Quer vir?
– Não tenho certeza, Rubão. O Samuel não gosta muito dessas coisas.
– É um programa sobre casais em que a mulher é gorda e o marido é magro. Sabe? Vamos pagar bem…
– Bom, você sabe que um dinheirinho a mais sempre faz bem… Eu vou perguntar para ele e depois te falo.
Samuel, contudo, era daqueles que não gostam nem um pouco de sair do anonimato.
– Eu, participar de um programa de televisão? Para todo o Pernil me ver? De jeito nenhum!
– Mas, querido, eles vão pagar uma bolada!
– Não quero saber. Da última vez que a gente fez isso, ficaram me reconhecendo na rua por semanas. Foi um saco. Todo mundo comentando: “Olha, o tio que apareceu na televisão!”.
– É, mas, com isso, a gente pagou uma viagem para Cuarriba[1].
– Eu sei, mas não compensa.
Marcela ficou toda macambúzia. Como poderia dizer para Rubens que iria perder uma bolada daquelas? E estava justamente se lamentando sobre isso no seu serviço, quando Geraldo a ouviu.
– Eu tenho a solução – ele falou. – É um programa em que a mulher é gorda, e o homem é magro, certo? Bom, a minha namorada é magra, então não daria certo, mas eu posso participar com você, o que acha?
– Como assim?
– Ué, a gente finge que é um casal e divide o dinheiro. É uma boa grana, não é?
– Dá para viajar até Páscoa[2].
– Então, é coisa pra caramba! Viajar dentro do Pernil tá mais caro que viajar para fora. Não dá pra perder!
Ela pensou um pouco.
– Tá certo, então.
– Mas, e se alguém te reconhecer? – disse Angélica, que deveria se chamar Diabélica, porque sempre vinha com estes comentários de estraga-prazeres.
– Ninguém assiste a esse programa – retrucou Geraldo. Tinha certeza de que ela só estava com ciúmes, porque ela era ainda mais gorda, com um marido ainda mais magro, mas ninguém tinha perguntado se ela queria ganhar dinheiro fácil.
– Ok, Gê! A gente divide a grana, então. Vou ligar pro Rubão.
Em pouco tempo, estava tudo resolvido. Rubão achou esquisito que o marido dela estava diferente, mas, sei lá, tempos modernos, cirurgia plástica, coisa e tal, era melhor não perguntar.
– Vocês trocariam uns beijos no programa? – ele perguntou, nos bastidores, pouco antes de entrarem em cena.
– A gente é muito tímido, você sabe… – respondeu Marcela, sem jeito.
– E se eu dobrar o valor do cachê?
Os dois se entreolharam, e nenhum pensou muito.
– Ok!
– Certo, então. E relação sexual, rola?
– Ahm?!
– Ao vivo?
– É.
– Que raios de programa é esse, Rubão?
Geraldo ficou quieto. Não seria uma ideia tão ruim… Para quanto subiria o cachê?
– Você sabe como é, a gente precisa subir a audiência… Ninguém assiste a esse programa!
– Não, sem chance. Só um selinho. E nada além.
Ele suspirou.
– Aceita posar nua para revistas?
– Não!!!
– E você, Geraldo?
– Quanto paga?
– Agora estamos conversando, meu amigo! Mas, só depois do chou. Vamos ver o que vai acontecer e como o público vai te receber.
Em pouco tempo, lá estavam eles no programa de entrevista. Era uma atividade com quatro casais, com algumas gincanas, perguntas de como se conheceram, por que eles gostavam de gordas, e elas, de magros, e assim foi. Trocaram mesmo alguns beijinhos e foram embora antes que o programa descambasse para coisas piores. Receberam em dinheiro vivo, dividiram o táxi e em pouco tempo estavam felizes, cada um em sua casa, pensando no que fazer com a grana.
Entretanto, logo o programa foi ao ar e, para a surpresa de todo mundo, a audiência foi grande. Parecia que tinha muita gente nesta situação, que havia se identificado e queria saber, ninguém sabia exatamente por que, como se comportavam os outros casais iguais a eles. Talvez, quem sabe, para ver se estavam seguindo as regras de etiqueta, ou para se sentir mais bem enquadrados na sociedade.
De qualquer forma, Samuel não viu o programa, mas seus amigos de escritório viram e foram logo mostrar os vídeos no Youpipe – que, por sinal, estavam bombando.
– Como assim? Essa é a Marcela??? Dando selinho em outro homem???
Para Samuel, isso não tinha volta. Era uma prova cabal, aliás, uma prova nacional, de que estava sendo traído! Como assim, tinham se conhecido num parque, fazia cinco anos? Ele só conhecia Marcela havia quatro. Ela já o estava traindo desde antes de sequer se conhecerem? Seria ele, Samuel, o outro? E que história era aquela de gostar principalmente das dobrinhas, dos seus pneuzinhos do braço e da sua papada dupla? Era tudo dele! Todo aquele monte de carne era dele! Tire as mãos, seu magrelo!!!
Saiu do serviço furioso, mas caiu no erro de ligar o rádio no sertanejo de qualidade duvidosa. Cinco músicas de homens traídos e complacentes depois, ele já não tinha mais qualquer vontade de lutar pela sua Marcela. Estava até pensando em dar o apartamento para que ela ficasse com Geraldo. Essas músicas eram realmente perigosas!
E, seguindo as instruções que tanto havia ouvido nas músicas, teve uma última noite fogosa de amor com ela, fez suas malas pela manhã e sumiu. Ninguém nunca mais ouviu falar dele.
Para Geraldo, também, as coisas não foram nem um pouco fáceis. Sua namorada havia dois anos, Jéssica não estava revoltada nem pelo fato de ele estar com a mulher havia tanto (quer dizer, ela era a amante, então, o que era bem mais legal), nem o fato de ter descoberto a traição (ou de ser a traidora? Que coisa confusa!) pela televisão, em rede nacional. Era…
– Uma gorda, Geraldo? E você gosta de dobrinhas? DOBRINHAS? Quer dizer que eu me mato na academia, me mato fazendo regime, pra você me dar um tapa desses na cara, em rede nacional? Vai lá ficar com a sua chupeta de baleia, vai. Passar bem!
E bateu a porta e nunca mais voltou.
No dia seguinte, Geraldo chegou macambúzio, e Marcela também. Bastou se olharem para saber o que havia acontecido. Aquele dinheiro para viajar para Páscoa havia saído muito caro.
Mas Geraldo teve uma ideia.
– Não quer ligar para o seu amigo? – perguntou.
– E que raios o Rubão pode fazer agora, que o pior já foi feito?
– Bom… Ele tinha aquela proposta lá de fazer ao vivo…
Marcela abriu um sorriso. Seria um bom dinheiro. E já que estavam ferrados, mesmo…
Nota do autor, outubro de 2021: eu não faço a menor ideia de onde veio essa ideia, mas, considerando os diversos chous de realidade que temos hoje (e alguns programas de entrevista que passam à tarde), não duvido que isso demore a acontecer. Se é que já não aconteceu.
Agora, devo dizer, há um ponto alto nessa história: ouvir cinco músicas sertanejas e desistir do seu amor perdido… Rapaz, isso é a realidade! Acho que ninguém nunca presta atenção nas letras, porque, se prestar… Já viu! Rsrsrsrsrsrs
[1] Capital do estado do Paralá.
[2] Capital do Estado do Rio Largo do Leste, fica no norte do Pernil e tem este nome porque foi fundada na Páscoa. E sem ovos de chocolate, porque lá eles derretiam, de tão quente que é.
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais