O relógio do Vídeo
Mais uma vez chove em Santa Paula. O tempo fechou, as nuvens se prepararam, São Pedro puxou a alavanca e cabrum!, esvaziou a banheira inteira dos deuses em cima de nós, com a adição de ventos e raios, cortesia de Zeus.
Entretanto, nós, pobres mortais, ficamos metros e metros sob a água e, ainda por cima, sem energia elétrica, enquanto a dupla se refestelava lá em cima, só rindo da gente.
Foi quando a luz voltou, depois de uma longa comemoração – já estavam na última vela –, que perceberam, na casa da dona Maria, que o relógio do vídeo¹ havia apagado.
– Ah, não! – exclamou ela, petrificada, apontando para o aparelho.
Logo a família inteira se aproximou, todos olhando chocados para o que havia acontecido. Dentre todas as coisas que poderiam ter acontecido, todas, esta era a pior! Ó Deus, por que fazes isso conosco? Todo mundo sabe que ninguém sabe como arrumar o relógio do vídeo. Missão impossível. Apagou, ferrou.
As luzes amarelinhas estavam indicando 00:07, piscando incessantemente, aquela coisa irritante que só os vídeos sabem fazer.
– Quem sabe arrumar isso aqui? – perguntou dona Maria.
Pergunta estúpida. Ninguém sabia.
– Acho que é só apertar este botão – disse seu João, o patriarca mais velho, o amado vovô. Adorava mexer nestas coisas eletrônicas, mas normalmente nada dava certo e ele acabava xingando o objeto de todos os nomes de que se lembrava.
Ele apertou, girou, socou, chutou, mas nada de o relógio mudar. Irritado, por fim, voltou para o seu quarto, para ver mais um episódio de Musculação, a novela da TV Cubo.
– Vamos chamar o Marquinhos! – exclamou seu Joselito, o pai da família.
O tio Marcos para os sobrinhos, o Marquinhos para os irmãos, o Marcão para os amigos, claro! Ele sabia de tudo! Era um cara viajado, já tinha ido pra todos os cantos deste mundo esférico (invejosos dirão que é circular), ele havia trazido o vídeo! Importado da Alebanha! Se havia alguém que poderia resolver este problema da existência humana, certamente era o Marquinhos.
Em pouco tempo o tio Marcos chegava em seu carrinho – um leve Uaudi – e entrava na casa, esbaforido.
– O que foi?
– O vídeo, Marcão, o vídeo!
– Não me diga que…
– Sim, o pior aconteceu.
– Não, não diga!
– Sim, Marcão, foi o…
– Não, não!
– O relógio… Perdeu a hora.
– Não!!!
– E ninguém sabe como arrumar.
– Malditos alebães!
– Então, dá para arrumar?
– Não sei, não sei, preciso de tempo. Saiam da sala, por favor. É uma operação delicada.
Todo mundo saiu no maior silêncio do cômodo, fechando a porta atrás de si, deixando o tio Marcos sozinho, só ele e o vídeo, o vídeo e ele. Ele tirou o casaco, arregaçou as mangas, aproximou-se do vídeo, olhou de um lado, do outro, por cima, por baixo, deu voltas e mais voltas, sacudiu, mexeu nos cabos, mas nada de o relógio mudar.
O pessoal do outro lado da porta se acotovelava para ver o que acontecia, mas ninguém sabia; vez por outra um grito cortava o silêncio, um grito de ira, um daqueles gritos de impotência que se solta quando o computador trava no meio do seu documento. E o tio Marcos olhava pra lá e pra cá, tentando achar algo como uma alavanca, onde estivesse escrito “ajustar relógio/desajustar relógio”. Mas nada desta alavanca. Os caras que criaram o vídeo eram maus, muito maus.
Por fim, tio Marcos saiu, suando bicas, todo mundo olhando para ele. Sua face, porém, não era nada encorajadora.
– Nós tentamos de tudo que era possível… Mas não conseguimos salvá-lo.
Dona Maria caiu no choro no ombro do seu Joselito, e os outros não conseguiam conter a dor. Finalmente, entretanto, seu João, o votriarca, saiu de seu quarto sacudindo um livro na mão.
– Gente, achei o Manuel!
– O quê? – indagaram todos.
– O manual! O tio dos burros!
O manual! Era a última chance deles! O tio dos burros foi cuidadosamente passado para o tio Marcos, o qual, segurando-o como se fosse o último exemplar da bíblia de Gluteomberg, abriu e olhou, cheio de esperança.
Os outros, apreensivos, prendiam a respiração.
– Está em alebão! – exclamou, simplesmente, caindo sentado no chão.
– Mas a Mônica sabe ler! – disse o irmãozinho, Eduardo.
Rapidamente foram chamar a Mônica, que aprendera alebão em um curso intensivo de cinco semanas, e lhe entregaram o famigerado portador de todas as respostas.
Ela se sentou na poltrona, o livrão aberto sobre o colo, tio Marcos e seu Joselito postados, um de cada lado do vídeo, prontos para fazer tudo que ela dissesse.
– Aperte o botão menu… – seu Joselito apertou. – Depois escolha ajuste do relógio. Isso. Agora, segure o botão de reproduzir e o de rebobinar ao mesmo tempo – tio Marcos apertou. – Depois, aperte o botão de pausa dez vezes, sem parar, repetidamente, e o segure por mais vinte segundos. Depois, solte todos os botões, aperte o ejetar três vezes, depois o acelerar e o rebobinar ao mesmo tempo, dê três giros em volta de si mesmo e…
No meio daquele jogo de Tuíste mal feito, todos pararam para olhar a garota, a qual parara, inconformada, de ler.
– Continua!
– E jogue o vídeo fora porque não há como ajustar o relógio! – leu ela.
– Malditos alebães! – gritou tio Marcos.
Estava tudo acabado. Eles haviam perdido. Nunca mais iam conseguir arrumar o relógio, iam ficar fadados a ver as horas erradas o tempo todo, todo dia, pelo resto da eternidade, sempre naquele amarelo piscante de farol.
– E se ligássemos o vídeo à meia-noite? – opinou Eduardo.
Sim, claro! O menino era um gênio! Ligar à meia-noite, como não haviam pensado nisso?
– Mas aí ele vai ficar piscando pra sempre. E, além disso, não vai ajustar o calendário nem nada – disse Mônica, a estraga-prazeres.
– Uhm… – pensou seu Joselito.
Quando a meia-noite finalmente chegou, eles conseguiram arrumar o vídeo; desligaram da tomada e o ligaram de novo, quando o relógio soíço do tio Marcos marcou meia-noite em ponto. A partir daí, tudo na família havia mudado; não estavam mais em 25 de fevereiro de 2005; era dia primeiro de janeiro de 1988.
E assim eles levaram a vida, como se a levava 17 anos atrás. O problema estava resolvido; haviam finalmente vencido o relógio do vídeo e seus maléficos criadores!
Acho que não preciso nem dizer o que aconteceu quanto faltou luz mais uma vez, certo?
¹Nota do autor, janeiro de 2021: É, pois é, leitor! Estamos falando do bom e (muito) velho vídeo cassete. Na época em que realmente usávamos isso, ele ficava na sala e servia como relógio e orientador temporal para toda a família. Atualmente, parece até esquisito, ainda mais com celulares à mão de todo mundo.

O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais