O sequestro capilar
O Pernil estava em crise, o que não era lá nenhuma novidade, afinal, todo mundo sabia que se tinha uma coisa em que ele era bom, era viver em crise, mas, o fato é que, com a pandemia de Semvid que afetou todo o planeta Areia, Pernil ia de mal a pior. Sim, eles também foram afetados por aquele vírus que surgiu na Atchina, depois que um puxador de riquixá comeu sopa de mangusto com esquilo voador e uma pitadinha de ovo cru de ornitorrinco. Como um simples puxador de riquixá conseguiu uma iguaria dessas? Na verdade, o rico que estava no riquixá não gostou, apesar do valor exorbitante do prato, e deu para ele. E, bom, essa rica mistura de animais lhe deu uma bela de uma diarreia e, desta diarreia, um vírus mutante, meio humano, meio mangusto, meio ornitorrinco e meio esquilo voador (sim, ele tinha quatro metades, daí sua imponência) rapidamente pulou para todas as baratas da Atchina, e elas, em espirros microscópicos, foram contaminando todos os humanos.
Enfim, deixando essas teorias de lado (porque ninguém tem certeza se foi realmente isso, ou se foi apenas o governo Atchinês que criou um vírus e quis contaminar todo mundo para comprar, literalmente, o mundo com a baixa na bolsa de valores), o fato é que o Pernil ia de pior a maispior, que foi uma palavra que eles criaram exatamente para se descreverem. Pessoas perdiam seus empregos todo santo dia, e cada semana era como um paredão do PPP, Programa Pontaria Pernil, em que eles reuniam pessoas em uma casa e, a cada semana, três iam para o paredão, enquanto os outros tinham de arremessar dardos, e saía aquele que morresse primeiro, ou, como eles gostavam de dizer, um novo 7 a 1, que não era a diferença de placar de um jogo entre a Alebanha e o Pernil, mas, sim, a diferença de cotação entre as suas moedas, o que era deprimente, porque ninguém mais podia viajar para a Pseudoropa ou para os EUA¹.
Bem, estou me alongando. O fato é que Pernil estava na maispior das maispiores crises de sua história. Neste dia em específico, um salão de cabeleireiros fechou e todos os seus funcionários foram demitidos. E o pior: eles não podiam sequer aglomerar para chorar pela demissão. Assim, depois de um tempo em que o seguro-desemprego e o auxílio do governo os ajudaram, eles tiveram de definir o que fazer da vida. Dos dez funcionários, Clau, Dedé e Noção (porque ele era o mais sem noção do grupo) foram os únicos que restaram e, em uma reunião online, eles decidiram:
– Não temos escolha – disse Clau. – Temos de fazer isso.
– Pessoal, vocês realmente têm certeza? – perguntou Noção.
– Deixa disso – falou Dedé. – Ela é rica. Nem vai ligar. Os ricos têm mais é que se virar, mesmo!
– Mas, ela está isolada na sua casa!
– Uma hora ela vai sair para passear com o cachorro… E, então… – falou Clau, com um sorriso maligno.
Três dias depois, hora de pôr o plano em ação: Noção dirigia a tombi², Dedé estava no banco do passageiro e Clau estava atrás.
Eles viram a dona Sandra, passeando com o seu Lulu do Fliperama³, entretida em seu celular. Ela virou a esquina; eles aceleraram com tudo. As ruas estavam desertas, o que era perfeito para o seu plano.
Pararam ao lado de Sandra; Dedé pulou da carona, usando um gorro, óculos escuros e uma máscara, como era obrigatório pelo decreto do governador Cória⁴.
– Perdeu, perdeu! – ele falou, tentando imitar a voz fina do Batimão⁵.
Clau abriu a porta, Sandra foi arremessada para dentro, e o carro saiu voando pelas ruas, fazendo curvas perigosas em que quase rolou.
E o cachorro? Finalmente livre, correu para o próximo cassino clandestino⁶ que encontrou (afinal, ele era um cachorro consciente).
Sandra havia sido amordaçada por cima da máscara, o que era nojento, porque ela estava engolindo todos os demoravírus que porventura estivessem na sua máscara, e outro pano lhe cobrindo os olhos. Depois de meia hora, finalmente soltaram a sua mordaça e descobriram seus olhos; os três participantes do sequestro estavam lá, na parte de trás da tombi, estacionados em uma garagem, encarando-a. Apesar de serem todos funcionários do salão que frequentava, ela não reconheceu nenhum.
– Dona Sandra – disse Dedé, com a voz finíssima pelo gás hélio –, a senhora vai ligar agora para o seu marido e dizer que estamos exigindo 10.000 pseudos⁷ pelo seu resgate. Eu tenho tudo escrito aqui.
Tremendo, ela pegou o celular e discou para o marido, sob a tutela de Noção, para garantir que ela não ligaria para a polícia, nem nada do tipo.
Ela teve de ligar três vezes, para o marido atender.
– Querido, por que demorou tanto? – ela perguntou, com um tom irritado.
– Estava, ahm, estava em reunião – ele falou, evasivamente.
Noção e Clau se entreolharam. Sei. Reunião.
– Leia o texto! – disse Dedé, movendo os lábios, mas com a máscara ela logicamente não entendeu, então ele simplesmente apontou para o cartaz.
– “Eu fui sequestrada por… Comediantes?”
– Meliantes!
– Desculpe, essa letra é horrorosa. Meliantes. “O valor do resgate é 10.000 pseudos”. Pseudos é com S, não com Ç. “Vamos se encontrar”, ai, meu Deus do céu, é nos, não se, sério, vocês não foram para a escola, não?
Dedé rosnou com sua voz fina.
– Ok, ok, vou parar. “Vamos se encontrar no Back Gonald’s da praça Pane-emedicana, hoje, às 17:00, com o dinheiro, ou eu vou…”.
Ela engoliu em seco.
– Deixa eu falar com os sequestradores – ele disse.
Com as mãos tremendo, ela passou o celular.
– Alou? – disse Dedé, com a sua voz fina.
– O que vocês vão fazer se eu não pagar?
– Como assim, o que vamos fazer? – indagou ele. Lógico que eles não tinham pensando nisso, eles eram cidadãos do bem, tudo o que eles queriam era dinheiro fácil – e quem não queria? – Nós vamos acabar com a raça dela!
– Ótimo! Façam isso mesmo. Vamos fazer um acordo: vocês acabam com ela e deixam o corpo em algum lugar para a gente encontrar. Eu não vou avisar a polícia, vocês ficam livres, e eu posso pegar o seguro de vida, talquei? Vou ficar no aguardo. Passar bem!
Foi um anticlímax total. O que eles poderiam fazer?
– Você… e o seu marido não se dão bem?
– Não! – dona Sandra começou a se debulhar em lágrimas, falando que tudo havia piorado com a pandemia, que eles ficavam trancados em casa o tempo todo e não se suportavam mais, especialmente depois que os filhos saíram de casa…
Noção, que não aguentava mulheres choramingando, pegou o celular e ligou para o homem novamente.
– Olha, é o seguinte, a gente não vai matar ela coisa nenhuma, a gente vai deixar ela aí na sua casa, de novo, a não ser que você pague 10.000 pseudos para a gente!
Parece que talvez Noção fosse tão sem noção que fosse o com mais noção de todo aquele grupo!
– Noção? É você, não é?
Foi tanta, que o homem até reconheceu. Dedé bateu na testa; por que ele não fez a voz do Batimão? Que bando de incompetentes!
– Olha, agora que eu sei quem vocês são, é o seguinte… Se vocês me devolverem a minha mulher com vida, eu vou é ligar para a polícia e dizer que foram vocês que sequestraram ela! E aí, acabou!
E desligou.
É, talvez Noção fosse realmente o mais sem noção.
Eles se entreolharam, sem saber o que fazer, enquanto Sandra chorava. Clau deu de ombros.
– Bom, só tem uma coisa que eu sei fazer bem.
E começou a arrumar o cabelo dela, cortou, hidratou, fez luzes e tudo mais. Noção ajudou, enquanto Dedé fez as suas unhas das mãos e pés. Noção ainda fez uma massagem, enquanto Clau lhe servia um chazinho, antes de tirar buço e sobrancelha, e pronto! Em cinco horas, ela estava ótima de novo, totalmente renovada!
– Ai, gente, vocês são demais! Quanto foi tudo isso? – Sandra perguntou.
Ela tinha esquecido totalmente do sequestro? Esses ricos são todos esquisitos!
– Ahm…
– 2.500 falsos – disse Noção. – Teve o serviço de leva-e-traz, né?
Sandra fez um Tics⁸ para a conta de Dedé, e pronto. Noção dirigiu, eles deixaram a senhora em casa, e ela saiu felicíssima. De fato, seu marido ficou tão feliz com a nova esposa, que os dois basicamente reataram o casamento e ele até esqueceu da ameaça que havia feito.
O trio voltou para a garagem, pensando em como havia sido decepcionante a ideia do sequestro. Até que Noção se ergueu, subitamente, levantando o dedo para o teto da Tombi, em um claro sinal de sabedoria.
– Eu tive uma ideia!
Rapidamente, virou uma febre.
Uma gangue de sequestradores que pegava você na rua, dava um trato no seu cabelo e a deixava de volta em casa, totalmente renovada, por um preço tão bom? E o melhor, os maridos não podiam nem reclamar, porque, afinal de contas, você havia sido sequestrada, obrigada a passar o dia no salão de beleza móvel, não é? Não tinha como não dar certo.
Pelas ruas de Santa Paula, as mulheres faziam filas passeando com seus cachorros, ou simplesmente andando, torcendo para que, a qualquer momento, a Gangue do Cabelo (como ficou conhecida, e, aliás, eles até mandaram estilizar a Tombi, que podia ser vista à distância) as sequestrasse para tratar de sua beleza. Que sonho! Logo virou uma franquia de beauty-trucks, e os três estavam nadando em dinheiro.
E o Lulu do fliperama? Voltou para casa dois meses depois, forrado de dinheiro. Pois é, de vez em quando, você tem sorte de ter um lulu vencedor.
¹ EUA: Emirados Unidos da Arrogância, um país da Emédica do norte.
² Tombi: carro da Volkskraken, uma indústria alebã que curiosamente começou negociando com holandeses para derrubar os polvos gigantes do mar. É uma perua de vários lugares com absolutamente nenhum requisito de segurança e alto risco de tombar (daí seu nome), mas que era perfeita para se tirar os bancos e transformar em uma casa ou no que chamamos de “food trucks” (fudi trâqui), uma forma gourmetizada de “carrinho de comida”.
³ Uma raça de cachorro, também conhecida como Schnitzel Alebão, muito peludinha e fofinha, que curiosamente, recebeu este nome porque, se for solto na rua, ele vai encontrar um fliperama e se endividar jogando. Sim, ele tem um problema com vício em jogos de azar.
⁴ Este governador, E. S. Cória, também era muito conhecido por seu hábito de usar a sunga por cima da calça, ninguém sabe exatamente por quê.
⁵ Também conhecido como “O Homem-Suricato”, é um super-herói muito famoso que defende os javalis nas savanas da Afraca. Ele aterroriza seus inimigos ficando em pé e cantando desafinadamente com sua voz de quem aspirou gás hélio.
⁶ Os cassinos são liberados em Pernil, mas os cassinos clandestinos são os únicos em que os dados e as roletas não são enviesados e realmente há um funcionário lá para lhe dizer quando você passou do ponto e deveria sair antes de perder mais. Por isso que o tal Lulu era consciente. Ele sabia que tinha um problema e estava trabalhando com sua redução de danos.
⁷ Moeda da Desunião Pseudoropeia, vale algo em torno de 8 falsos na cotação atual.
⁸ Tics: sistema de transferência eletrônica de dinheiro no Pernil, na verdade foi criado pela receita federal para ficar de olho na transferência de dinheiro de todo mundo. A ideia principal, não somente para evitar que pessoas de bem parassem de sonegar impostos, foi desviar o olhar dos bancos para o dinheiro eletrônico e esquecer o dinheiro físico, de forma que os políticos do Pernil pudessem continuar com seus esquemas de corrupção em dinheiro vivo, sem ninguém dar atenção. Quem olharia para uma pessoa que sacou um milhão em dinheiro vivo, se tinha 500 Tics de 1,99 no mesmo dia? Ninguém! Era um plano perfeito.

O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais