O Sistema de Troca de Filhos
Toda reunião de pais e mestres do Colégio Barão do Porto Singrável¹ era exatamente a mesma coisa: discutiam outro e um assunto, mas sempre terminavam descambando para reclamações gerais dos próprios filhos. No início da reunião, todos falavam só maravilhas dos pimpolhos, mas, conforme a avaliação do professor sobre determinadas coisas, logo surgia uma crítica, que era o estopim para uma série de reclamações:
– Meu filho não sai de casa, não larga o videogame! Nem vou te dizer há quanto tempo eu e o meu marido…
– E o meu, então, que não pára em casa? Tá sempre na casa de alguém, no shopping… Faz meses que não tenho uma noite tranquila de sono!
– E o meu, que eu peguei roubando dinheiro da minha carteira para comprar comida?
– Nossa, na minha casa, nunca que ia deixar isso acontecer! Especialmente porque não tenho dinheiro mesmo…
No final da reunião, Magda e Joelma tiveram uma ideia genial: por que não trocarem as duas de filho?
– É uma coisa bem simples: você quer que o seu filho não pare em casa, e eu quero que o meu saia de casa. Vamos resolver nossos problemas. E, se a gente ficar com saudade, é só trocar eles de volta no fim de semana. O que você acha?
– Sabe que me parece uma ótima ideia?
E assim fizeram, logicamente sem perguntar muito para os filhos se eles gostavam da proposta. Falaram que era uma espécie de projeto da escola, e, na segunda-feira, malas prontas, despacharam ambos para suas respectivas novas casas.
As crianças adoraram; poder sair sem nem ouvir um pio, na hora que quisesse? E pais que o queriam em casa o tempo todo, agradeciam aos céus todos os dias por ele estar lá e ainda o mimavam sempre que possível?
E o melhor; no fim de semana, quando voltavam para matar a saudade, os pais haviam sentido tanta falta (para não falar de remorso), que eles se sentiam nas nuvens. Faziam o que bem entendiam, eram mimados até não querer mais…
Na próxima reunião de pais e mestres, sucesso total: os filhos de Magda e Joelma estavam indo muito bem na escola, tudo estava certo, era uma maravilha. A professora ficou curiosíssima:
– O que aconteceu, para eles irem da água pro vinho assim, tão fácil?
– Ora… Nós trocamos eles de casa!
Foi o maior alvoroço, e elas tiveram de explicar, passo a passo, o que haviam feito. Logo, todos quiseram fazer o mesmo, e Magda e Joelma ficaram responsáveis por organizar um sistema para troca de filhos.
– O Joãozinho toca bateria, mas os pais não suportam… Que tal colocarmos com os Junqueira, que são surdos?
– Perfeito! E a Giovana, que quer ser bailarina, mas os pais não tem dinheiro para pagar o curso?
– Bom, os Almeida têm dois filhos, e um deles não aproveita nada dos trocentos cursos que eles pagam. Que tal mandar ela para lá?
– Ótima ideia!
A empreitada foi um sucesso; como um dominó, cada filho ia para uma casa, aos fins de semana retornavam, como um maquinário bem azeitado. A classe melhorou tanto seu desempenho, que os outros professores ficaram curiosos; em pouco tempo, Magda e Joelma receberam tantas requisições de trocas, que quase ficaram loucas!
“MaJô, Sistema de Troca de Filhos” foi como chamaram a rede social que tiveram de criar para poderem dar conta do recado. Era bastante simples: você entrava e criava o seu perfil. Depois, registrava os dados do filho que queria trocar, seus anseios, desejos, oportunidades que oferecia e tudo mais. O programa fazia tudo sozinho, cruzando os dados e selecionando o filho para você, a um custo irrisório de manutenção mensal. Você podia dar suas opiniões, aprovar ou não, recusar a recomendação e escolher outro manualmente dentro do catálogo, interagir com outras mães, enfim, tinha de tudo lá, até propaganda de remédio para menopausa e livros de conteúdo duvidoso para senhoras com fogachos (tinha até quite com os dois).
Tantas pessoas se inscreveram, que o programa por pouco não travou. Com um mês, receberam a primeira requisição de troca interestadual; com dois meses, as socialaites faziam trabalho de caridade trazendo caminhões (literalmente) de crianças desafortunadas da Amastônia². E, com três meses, tiveram a primeira troca internacional, depois de traduzirem o site para o inglês.
Em pouquíssimo tempo, Magda e Joelma estavam milionárias e tudo parecia correr na mais santa paz. Exceto, talvez, pelas crianças. Em um conchavo online (que poderia muito bem ser chamado de Conchat), elas reclamavam dos pais que haviam recebido.
– Quero trocar – uma disse.
– Voltar para os seus pais?
– Não, quero outros pais. Meu pai não joga bola, só fica jogado na frente da tv.
– E o meu, que fica me mandando pôr o lixo para fora?
– O meu reclama que eu não apago a luz dos quartos quando saio!
– Ora, e o meu que não apaga, e eu tenho de ficar atrás, apagando? Fora que não recicla o lixo. Haja falta de consciência social!
Foi quando Joãozinho (o baterista) e Marquinhos decidiram intervir: era a hora de criar o “JoMar, Sistema de Troca de Pais”.
– Tudo bem, querer, a gente até pode querer, mas como nós vamos fazer? Eles nunca vão nos deixar!
– Meu pai atual é advogado. Ele tem vários contatos. Vou roubar alguns da agenda dele e conversar; tenho certeza de que o que estão fazendo não é legal perante a lei – ofereceu o Dercival.
– Beleza! Enquanto isso, botamos o JoMar no ar, e ele vai prestar toda a assessoria jurídica necessária!
Foi um caos. Em poucos dias, a iniciativa do JoMar, que instituiu processos em massa contra a MaJô e os pais responsáveis pela troca, atingiu os maiores jornais do planeta Areia, como o Old Junk Times, o Le Figadô, o Der Spiga e muitos outros. O sistema judicial de todas as nações ficou sobrecarregado de tantos processos; no País Pernil, em que processos geralmente levavam mais do que 20 anos para serem resolvidos e sempre terminavam em pitsa, os juízes se reuniram em um conchavo (não online) para tentar agilizar, antes que o processo fosse passado dos atuais filhos para os seus próprios filhos.
– E aí, o que vamos fazer?
– Não sei, este mundo está louco! Tem gente aí que não quer nem o pai original, nem o postiço, e agora eles estão pleiteando o direito de escolher os pais!
– Outros estão processando os próprios pais por desprezo e negligência!
– E tem alguns pedindo emancipação, dizendo que não querem mais pais nenhum.
De fato, cada um destes grupos estava do lado de fora fórum, cada um carregando suas respectivas placas, bandeiras e camisetas estilizadas.
– Nós poderíamos simplesmente deixar o tal de JoMar funcionar e pronto…
– Mas deixar ele funcionar ia manter o caos! Já não deu certo!
– Não, não o MaJô, o JoMar. Você está confundindo os nomes!
– Ai, meu Deus, eu não sei mais nada. Cadê a minha mãe???
Depois de três dias de conchavo senclave (pois eles podiam sair livremente para fazer xixi e comer, mas não conseguiam sair dos limites do fórum, ou seriam assassinados nas escadarias pela horda furiosa), fumaça branca saiu da chaminé. Foi uma tentativa desesperada de, queimando suas roupas, fazer com que os bombeiros invadissem o prédio e os tirassem com segurança.
O que não impediu os repórteres de, mesmo com os juízes arfando sem ar, questionar o que fariam da vida.
– Vamos deixar… O JoMar… Funcionar… – disse o líder do conchavo, antes de desmaiar.
E assim fizeram; crianças foram trocadas de casas, elas ficaram satisfeitas, os pais, não, as notas de uns caíram, de outros subiram, tudo ficou mais ou menos no mesmo, mas aí foi a vez de os pais, utilizando o MaJô, entrarem com uma série de processos contra os próprios filhos, por abandono, desprezo, descaso, ingratidão, descumprimentos das expectativas e diversas outras coisas.
O conchavo senclave desta vez pirou na batatinha.
– Não quero saber! Não quero saber! Vai voltar tudo ao normal! Vamos indeferir todos os processos e mandar esses pirralhos e mimados se conformarem com as suas vidas!
– E a gente pode indeferir processos?
– Não sei, não quero saber e tenho raiva de quem sabe!
– E quem são os mimados, os pais ou os filhos?
– Os dois!
à fumaça branca saiu muito mais cedo desta vez, em questão de horas. Os bombeiros novamente os resgataram, com o peito chiando o representante disse sua decisão, e, não sem alvoroço, logo tudo voltou ao normal.
Ou melhor; aos padrões da natureza antes do Majô.
Há algum tempo, está tudo quieto. Mas eu ouvi dizer que, por baixo dos panos, estão criando uma versão MaJô 2.0, em que as crianças não ficam em definitivo, mas passam alguns dias com os pais postiços…
Nota do autor, setembro de 2021: quando minha esposa trabalhava no hospital das clínicas e eu em um posto na zona norte da cidade, eu a deixava no trabalho às 5:30 da manhã e tinha de ficar esperando dar o horário para trabalhar. Por um bom tempo, eu cochilei na casa da minha tia-avó, que era lá perto, mas, quando ela faleceu e a minha tia se mudou, eu passei a gastar meu tempo tomando um café em uma padaria no meio do caminho. Foi lá, pensando sobre como os tios parecem que “alugam” os sobrinhos e devolvem quando bem entendem, tendo um mínimo de responsabilidade, que tive a ideia para esta crônica. Devo dizer que, se tiver algum empreendedor me lendo agora, eu acho que faria sucesso essa ideia.
¹ Porto Singrável é uma cidade do Nordeste do Pernil, muito famosa na época da colonização por ser um porto de águas realmente singráveis, ao contrário de muitas daquela região, e atualmente destino turístico de adolescentes na formação do ensino médio para a realização de coisas não muito louváveis para a sociedade
² Estado no norte do país Pernil, famoso por sua floresta (a floresta Amastônica), seus recursos naturais e animais peculiares.
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais