Óculos Climáticos
Certo dia, Cláudio foi ao oftalmologista dar uma checada em como estavam seus olhos. Passara a pandemia inteira adiando e adiando, até que chegara ao insustentável e ele não conseguia sequer enxergar mais as placas da rua, o que fez com que batesse o carro duas vezes e fosse de encontro a uma daquelas lixeiras de concreto outras duas (enquanto andava a pé, diga-se de passagem, e um desses encontros resultou em uma fratura de duas costelas).
Após descobrir que estava mais cego que o Mr. Magooei¹, ele foi a uma óptica da “Chili con tacos”² mandar fazer os seus novos óculos que, como descobriu, sairiam o preço de um rim e um pulmão no mercado negro.
– Mas, temos uma promoção – disse o vendedor.
Cláudio não conseguia enxergá-lo claramente; sem óculos, tudo ficava muito embaçado, então ele não tinha certeza se ele tinha chifres, ou se era só o cabelo cacheado fazendo essa impressão, se tinha realmente bigode e uma língua bifurcada, ou se era só um piercing na língua (esses jovens de hoje em dia!), e, o pior de tudo, tinha certeza de que aquele lugar estava cheirando a enxofre, mas talvez tivesse pegado semvid e alterado o seu olfato.
– Levando estes dois óculos aqui, de grau e de sol, você ganha as lentes! Só precisa pagar a armação!
Ele não fazia ideia se eram bonitos ou feios, porque, realmente, estava muito difícil de enxergar, mas eles pareciam legais. E, o melhor de tudo, sairiam por um quarto do preço dos óculos normais!
– Tenho certeza de que o senhor vai gostar. Esses óculos escuros não vão mais deixar que o sol irrite sua vista, nunca mais. E os óculos de grau, você vai ver tudo claro como no dia mais limpo de verão!
Se tinha uma coisa de que ele precisava, bem, era disso.
– E ficam prontos amanhã!
Era tanta eficiência que parecia até magia! Cláudio aceitou na hora.
– É só assinar aqui.
Ele assinou com a caneta que o vendedor lhe emprestou e se sentiu meio tonto, mas pensou que talvez fosse a vista cansada.
– Um motoboy vai entregar na sua casa, logo pela manhã – o vendedor falou. Não dava para ser melhor do que isso!
Assim, ele voltou para casa de Unter³, e, uma vez lá, ficou a esperar, vendo, ou melhor, ouvindo, porque ele basicamente só via sombras, “Pernil Urgente”, um programa sensacionalista.
Logo pela manhã, o motoboy tocou a sua campainha, entregou-lhe os óculos e, felicíssimo, Cláudio foi provar. Estava um dia muito, muito claro, então ele resolveu testar primeiro os óculos de sol com grau, que eram maravilhosos! Ele conseguia enxergar como nunca antes, tinha a impressão de que podia até ver a formiga no topo de um poste de luz!
Aproveitando sua nova vida como uma pessoa que enxergava, ele decidiu ir à padaria. Voltou para casa, pegou a carteira e saiu a caminhar, ainda com a sacolinha dos óculos na mão, pois pretendia trocar pelos óculos de grau tão logo entrasse na padaria.
No caminho, teve a impressão de que o tempo estava fechando cada vez mais, mas ele não se importou; estava maravilhado com o fato de que, finalmente, conseguia enxergar com nitidez. A padaria ficava a cinco quarteirões de lá e, no quarto, o céu havia se fechado tanto, que parecia quase noite; não estava conseguindo enxergar mais nada com aqueles óculos escuros, e ele não teve outra escolha, se não pegar a caixinha dos óculos de grau e trocar. De repente, tudo ficou mais claro, e ele conseguiu chegar à padaria sem dificuldade, apenas sentindo o sol queimando-lhe a pele por baixo da camiseta.
Pães comprados, ele foi sair, mas o sol estava tão forte, mas tão forte, que ele teve de trocar de óculos novamente.
Claro como dois sóis, ele pensou. Bem que o vendedor falou! Não posso culpá-lo por propaganda enganosa!
Porém, chegando à sua casa, já estava ficando escuro novamente.
Tudo bem, em casa, vou trocar os óculos, cansei desse troca-troca.
E, uma vez dentro de casa, ele pôs os de grau novamente; o céu se abriu.
Assim ele passou a semana; achando que o aquecimento global estava deixando o tempo cada vez mais maluco, ele se conformou com usar correntes nos óculos, para poder trocá-los ao longo do dia, conforme andava, dirigia ou pegava o Unter.
Na sexta-feira, quando estava tomando café da manhã, ele viu no jornal a meteorologista comentando sobre o tempo.
– Pois é, tivemos uma semana maluca, com muitas oscilações de tempo! No mesmo dia, o tempo abriu e fechou quinze vezes! Mas, hoje, o dia promete: acordamos com muito sol e calor e, se continuar assim, as temperaturas devem chegar a 45 graus na capital!
– Caraca, 45 graus? – perguntou Cláudio, olhando pela janela. – Definitivamente, vou fazer minha caminhada com os óculos escuros.
E lá saiu ele, poucos minutos depois, com os óculos escuros.
O tempo fechou, fechou, e gotas começaram a cair.
– Mas que droga, bem no meio da minha caminhada! – ele exclamou, parando para trocar os óculos.
A chuva parou; poucos passos depois, o céu se abriu.
– Saco, toca colocar os óculos de sol de novo!
O tempo fechou e a chuva voltou.
Finalmente, Claudio se tocou. Parado em uma esquina, olhou para o céu, totalmente fechado e, com as gotas a molhar seus óculos de sol, ele trocou pelos óculos de grau. Não demorou mais que trinta segundos, o céu estava limpo e com o calor de dois sóis. De olhos fechados, pois não conseguia ficar encarando o céu por tanto tempo, ele trocou de óculos; o tempo fechou.
– Eu consigo controlar o tempo!
Ele voltou correndo para casa, pensando no que poderia fazer com aqueles poderes inacreditáveis. E, depois de um tempo, com alguns anúncios na internet, conseguiu sua primeira proposta como consultor do tempo, lá no Paralá⁴, um estado que estava sofrendo muito com a seca.
– Não chove aqui há 72 dias, já – disse o fazendeiro. – Veja este sol!
– Parecem dois sóis, não é?
– Exatamente!
– Muito bem – disse Cláudio, respirando fundo. – Deixe eu me concentrar.
Ele trocou de óculos, depois fechou os olhos e ergueu as mãos para os céus. Em trinta segundos, o céu se fechou e começou a trovejar.
– Acho melhor a gente entrar – ele disse.
Os dois foram para a caminhonete do fazendeiro e, em pouco tempo, estavam no meio de um pequeno dilúvio.
– Não acredito! Como que o senhor fez isso?
Cláudio deu de ombros.
– É para isso que serve a minha consultoria.
Ele logo virou um fenômeno do Youpipe⁵ e do Knock-Knock⁶, aparecendo em vídeos curtos trazendo chuva, para aqueles que sofriam com a seca, e sol, para aqueles que dependiam de energia solar ou precisavam secar suas roupas.
Mas, apesar de estar muito, muito rico, a fama e os óculos logo se tornaram uma tormenta para Cláudio, porque ele não conseguia, nunca, estar da forma adequada; ou chovia, e ficava difícil de enxergar com os óculos de sol, ou ficava claro demais para conseguir enxergar com os óculos de grau.
Foi aí que ele teve uma ideia: iria usar um em cima do outro! Por que não?
Assim, ainda que com dificuldade, colocou os dois óculos – mas, como ambos eram de grau, ficou péssimo de enxergar.
– Já sei! Vou trocar as lentes! Afinal de contas, se eu tiver uma de cada, com certeza vão se equilibrar!
Em casa, ele colocou a lente direita dos óculos escuros na armação de grau.
Porém… Algo totalmente inesperado aconteceu!
Do seu lado esquerdo, o sol mais forte que ele já vira em toda a sua vida; do lado direito, nuvens fechavam o tempo. E, conforme ele se virava, as nuvens o seguiam, até que, de repente, começou a chover, e apenas a metade direita do seu corpo se molhou. Irritado, ele se virou; as nuvens o seguiram, chovendo do outro lado.
Ele virou de volta, e as nuvens voltaram.
– Ah, é? – disse ele para os céus, erguendo o punho.
Começou a girar como um pião em torno de si mesmo; sol e nuvens, loucamente, giravam para lá e para cá, até que as nuvens se tornaram um verdadeiro redemoinho, que foi crescendo, crescendo, até…
– Um furacão! Um furacão no Pernil! Aqui, na cidade de Santa Paula! Pode isso, Agnaldo? – disse o repórter, enquanto filmava a fúria da natureza com Cláudio em seu centro.
– Eu não aguento mais isso! – ele gritou.
E, subitamente, um raio cortou os céus, atingindo-o diretamente na armação, que explodiu em migalhas.
Cláudio acordou dois dias depois, no hospital. Ele não conseguia enxergar mais praticamente nada, pois o raio lhe queimara os olhos como um ferro de solda, mas ouviu, pela televisão, que fazia um dia lindo de sol entre nuvens e temperatura agradável de uma manhã de verão.
Alguém bateu à sua porta.
– Quem é?
– Seu Cláudio, bom dia – disse uma voz que lhe parecia familiar. – Eu estou desenvolvendo um aparelho que vai permitir ao senhor enxergar mais claro do que cristal. Será que eu poderia testar?
– Aparelho?
– Sim, é de uma pesquisa da universidade – ele falou. – Estamos procurando pessoas com perda quase total de visão, seria muito importante que o senhor participasse.
O homem instalou o aparelho na cabeça de Cláudio, um trambolho muito parecido com aqueles óculos de realidade virtual.
Ele olhou para as próprias mãos; enxergava como nunca! Estava enxergando tão bem, que podia ver a minhoca no bico do pássaro no topo do edifício a quilômetros de lá. Levantou-se do quarto e saiu andando pelo hospital; estava tão bem, que estava pensando em ter alta, e a enfermeira prontamente o ajudou.
Ele se trocou, pegou um Unter e voltou para casa, onde finalmente pôde apreciar as características verdadeiras dela, todos os itens de decoração que nunca vira, todas as sujeiras que nunca conseguira limpar, e…
– Senhor Cláudio? – perguntou o pesquisador. – Gostou dos óculos?
Estava de volta ao hospital; tirou os óculos e encarou o homem, embora não conseguisse vê-lo.
– Se quiser, pode ficar. Só precisa assinar este papel aqui.
O homem lhe entregou uma caneta; era muito, muito semelhante à que ele tinha usado antes. Ele começou a assinar e se sentiu ficando tonto, como a última vez em que…
– Não! – gritou ele, arremessando os óculos contra o pesquisador. – Não vou cair nessa novamente! Nem vem! Enfermeira! Enfermeira! Tire esse homem daqui!
Dois auxiliares chegaram ao quarto.
– Que homem, seu Cláudio? Não tem ninguém aqui além do senhor.
– O homem com os óculos de realidade virtual! Aqui, ele queria que eu assinasse um contrato!
– Está tudo bem, seu Cláudio, fique calmo. Já vamos trazer seus remédios.
Os dois saíram do quarto, balançando a cabeça.
– Doidinho, doidinho – disse um, girando o indicador em torno do ouvido.
– Não sabia que ficava assim depois que caía um raio em você – comentou o outro.
– Pois é. Ele estava dizendo que conseguia controlar o tempo… Dá pra acreditar nisso? – Bom, pelo menos explicaria por que ele andou tão maluco nos últimos tempos! Só um maluco para fazer isso!
¹ É um comediante muito famoso, embora já antigo, que fazia pequenos quadros de cinco minutos de duração, sem falar absolutamente nada. A grande graça é que ele era mais cego que uma velhinha com catarata, e vivia ficando magoado com o fato de que as pessoas tiravam sarro dele por causa disso. Bem, talvez não fosse realmente engraçado, mas, não sei, o humor no Pernil é peculiar, eles gostam bastante de bullying.
² É uma franquia de ópticas muito famosa no Pernil, mas ninguém até hoje compreendeu por que eles têm este nome culinário, em vez de algo mais claro, como “Ópticas Farol” ou qualquer coisa do tipo.
³ É um serviço de metrô autônomo que funciona no Pernil. Pequenos carrinhos que andam nos trilhos de metrô, debaixo da terra. Pois é, eu também não entendo como funciona, mas, se tem algo pelo qual o Pernil prima, é por ideias furadas.
⁴ É um estado do sul do Pernil, conhecido por suas fazendas, plantações de soja e pela sua capital, Anuritiba, cuja população é conhecida por todo o Pernil por ser mal-educada. Na verdade, a grande questão é que eles são diretos, sem rodeios (sim, rodeios são proibidos, lá), e não fazem muita questão de cumprimentar desconhecidos (não é o que a mamãe sempre mandou? Não fale com desconhecidos? Então! Honre seu pai e sua mãe, já diria o mandamento!), e isso dá a impressão de serem mal educados.
⁵ Site muito famoso no planeta Areia onde as pessoas podem colocar seus vídeos com os mais diversos conteúdos, desde análise de fezes, até danças sensuais.
⁶ Aplicativo cujo símbolo é uma porta aberta (daí Knock-knock) em que a pessoa tem até um minuto para fazer um vídeo, geralmente com pegadinhas e idiotices. Muito famoso entre os jovens.
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais