Propaganda não enganosa
O Pernil sempre teve algo muito, muito marcante, quase como uma lei não escrita, porém uma das poucas, se não a única, seguida por todos ou praticamente todos: nada é o que parece.
Ou seja: se anunciaram para você que determinado sanduíche, por exemplo, é feito de carne de determinado animal, pode ter certeza: não é. Isso era um fato tão, mas tão estabelecido, que os pernileiros sequer se davam ao trabalho de checar. Sabiam que, neste sanduíche, haveria um monte de gororoba prensada, frita em litros de algum óleo de origem duvidosa (poderia ser até mesmo de um carro, vai saber), com um aromatizante artificial com o gosto idêntico ao do aromatizante artificial com gosto similar do produto mais próximo ao desejado.
Resumindo, isso queria dizer que um hamburguer de picanha da rede Back Gonald’s¹, uma das mais famosas de todo o planeta areia, era sabidamente feito de restos de carnes de outros animais (porcos, galinhas, bois, minhocas, por que não?) com um aromatizante idêntico ao do aromatizante semelhante a coxão duro.
E alguém se opunha a isso? É claro que não. Isso era uma certeza no Pernil, e essa, uma das poucas que eles tinham, era o suficiente para lhes trazer muita tranquilidade. Eles sempre poderiam contar com o fato de que teriam algo feito de alguma coisa que seria exatamente como a propaganda, só que não.
E isso não se aplicava somente a comida: carros que consumiam mais do que o apresentado, gasolina que era feita de etanol, etanol que era feito de água e cachaça, e cachaça que era feita de 49% arroz, 37% feijão e 23% batata. Mas, tudo bem: a tranquilidade permanecia. Não há maior prazer em saber que se está sendo enganado; o grande problema é ser enganado sem saber e, deste mal, os pernileiros não sofriam.
Certa feita, dois empresários visionários, porém míopes, tiveram uma ideia brilhante:
– E se nós vendermos exatamente o que anunciamos?
A ideia, como não poderia ser diferente, veio durante uma conversa de mesa de bar, quando haviam tomado talvez um pouco demais da cachaça de arroz, feijão e batata (sim, ela era praticamente um prato executivo).
– Você está querendo dizer…
– Sim! Nós anunciamos espetinhos de carne bovina… E eles serão realmente feitos de boi, não de gatos ou cachorros abandonados!
Ele teve a inspiração por causa do vendedor de espetinhos que estava na esquina, o qual passava seu dia abanando a fumaça em direção ao bar, para atiçar a fome dos clientes, e farejando uma oportunidade veio mancando trazendo dois espetinhos.
– Fresquinho! Foi abatido ontem! – disse ele, oferecendo dois espetinhos de procedência duvidosa.
Jeferson, o idealista, recusou.
– Eu vou querer um – disse Maicon. – É gato ou cachorro?
– Que nada, meu senhor, é carne de boi, mesmo – respondeu o vendedor.
Satisfeito por ser ludibriado, Maicon pagou o vendedor, mas jurou ouvir um “Miau” na hora em que mordeu o primeiro pedaço de carne.
– É disso que estou falando – concluiu Jeferson. – A pessoa precisa ter certeza de que está comprando aquilo que está comprando.
– Mas, Jef… Eu sei que eu estou comprando um espetinho.
– Eu digo, você precisa ter certeza de tudo. Do que ele é feito.
– Eu não me importo se é gato, cachorro ou pombo, o importante é que é bom!
– Não pode ser assim. Não está certo.
Houve algumas desavenças, mas, no final, Jeferson conseguiu convencer Maicon a iniciar uma hamburgueria artesanal cujos hamburgueres eram feitos realmente de carne. A surpresa foi tão grande, que mereceu até mesmo manchete no jornal. Logo, influenciadores vieram fazer suas avaliações, todos embasbacados com o fato de que a carne realmente tinha gosto de carne. Um deles comentou: “Então este é o gosto do hamburguer de picanha de verdade? Vocês sabem que, no Pernil, é difícil acreditar em tudo o que vemos por aí. Porém, no caso da Hamburgueria Real, se a carne não for realmente de picanha, ao menos, é o melhor aroma artificial que já comi até hoje!”.
Lógico, os pernileiros eram gatos escaldados, eles não cairiam tão fácil nessa história de que o hamburguer era realmente feito do que era dito que era feito. Vieram pessoas tirar dúvidas; invadiram a cozinha; checaram todos os ingredientes e só faltaram ir até à fazenda de abate do boi, o que, na realidade, fizeram em uma reportagem do “Impressionante”, programa dominical de sucesso da TV Cubo.
E era, realmente, impressionante! Jeferson e Maicon mostraram, em detalhes, toda a sua linha de produção, desde o abate dos animais até à confecção do hamburguer.
– Não temos nada a esconder – ele falou. – Mais do que hamburgueres, vendemos uma ideia: a ideia de que podemos, de fato, comprar o que realmente compramos e vender o que realmente vendemos!
Era uma ideia revolucionária! Coisas que eram, de fato, o que elas diziam ser?
Mas, Jeferson não parou por aí; vendo sua ideia ir de vento em popa, logo tornou-se um franqueador; depois, expandiu para outros produtos, como pizzas cujo catupiry realmente era catupiry e não uma gororoba vegetal hidrogenada, camisetas feitas de algodão de verdade, não de um produto sintético que se desfazia, e até mesmo cachaça que era feita 100% de cana!
Essa revolução só se sustentou por tanto tempo, porque o então presidente do país, Embolsonada², não assistia à TV Cubo. Quando começaram a aparecer reportagens em uma emissora controlada pela igreja, aí, sim, ele viu e ficou horrorizado.
– Não tem que manter isso aí, oquei? – ele disse para um de seus filhos, que logo se pôs a resolver o problema.
A forma mais simples era provar que o hamburguer de picanha, dentre outras carnes, como tudo no Pernil, não era feito do que dizia. Para isso, ele mandou a vigilância sanitária inspecionar cada uma das 300 franqueadas da empresa, o que deu um trabalho do cão. No entanto, da mesma forma que os areiaplanistas, cujos esforços sempre provavam que o planeta era redondo, Gorducho (apelido de um dos filhos do presidente, por razões óbvias), ele apenas conseguiu provar que, em todas as filiais, eles usavam os produtos exatamente como descritos: 100% carne bovina. Ele ainda investiu nas roupas, cachaça e tudo mais que pôde do Império Real (este era o nome da empresa, que estava virando um verdadeiro reino), mas tudo, realmente tudo, era conforme o previsto na propaganda.
Isso não era só deprimente; era assustador! Como poderia o Pernil seguir em frente, se a propaganda fosse compatível com o produto? Pernil era uma terra de enganadores, por definição!
Assim, Gorducho decidiu fazer o que sabia fazer de melhor: uma campanha de difamação. Ia se aproveitar daquela (enorme) parcela da população pernileira que crescera na incerteza da composição dos seus produtos e fazer com que todos odiassem aquilo.
– Povo do Pernil! – ele anunciou em suas redes sociais. – Estão acabando com a nossa liberdade de expressão, aqui! Imaginem! Vivemos nossa vida inteira com uma única certeza na vida: o que nos vendem não é o que compramos! Agora, vem essezinhos aí, querendo acabar com essa nossa única certeza? A comida que compramos realmente corresponde à que eles vendem? A cachaça realmente é de cana? A roupa realmente é de algodão? O hamburguer realmente é de carne? Ah, que saudade do hamburguer feito de uma mistura de rato, porco, frango e soja! Uma mistura saudável! Uma mistura que moldou caráter! Porque, meus senhores e minhas senhoras, parece que está apenas nisso… Mas, quando vocês perceberem, vão exigir que vocês, também, sejam exatamente o que fingem ser! Começa com um hamburguer que é feito realmente de picanha, e termina com o fim dos filtros nas redes sociais! O fim das cirurgias plásticas! O fim das mentirinhas sociais! Meu Deus! A necessidade de cumprir as 8 horas de expediente todo santo dia, sem poder vadear no celular periodicamente! Nada de escapadinhas! Nada de Jeitinho Pernileiro!
Se tinha uma coisa que Gorducho Embolsonada sabia fazer era pegar no ponto fraco das pessoas. Quando perceberam que toda a farsa que mantiveram a sua vida toda no Pernil poderia cair por terra, os pernileiros se revoltaram e destruíram cada uma das franquias do Império Real. Jeferson e Maicon, desesperados, trocaram tudo o que tinham em dinheiro (que era muito, note) por barras de ouro, transportaram tudo para a Omiça³ e para lá se mudaram.
Atualmente, o Pernil continua exatamente do jeitinho que sempre foi: comprando gato por lebre (que na verdade é um rato com orelhas falsas). O povo ficou muito mais feliz em continuar sem confiar em absolutamente nada; Maicon e Jeferson, por sua vez, encontraram uma nova vida na Omiça, onde tudo é realmente o que diz ser, até mesmo a hora do relógio.
Até que um dia, em um bar, dividindo uma fondue de queijo de verdade com vinho tinto de verdade, Maicon disse:
– E se a gente começasse a produzir um relógio que não marcasse a hora certa? Como no Pernil?
– Até que me parece uma boa ideia… Excelente desculpa para chegar atrasado no trabalho, nesse lugar certinho que dói!
E lá se foram eles se meter em confusão de novo.
¹ Back Gonald’s é uma famosa rede de fésti fúdi que tem no planeta Areia. Seu símbolo parece um M, mas, na realidade, é um camelo abaixado tomando água (que é a forma mais fácil de se abater um camelo, diga-se de passagem, pois ele está vulnerável). Ele se originou de um Áraque que veio, lógico, da Larápia Saudita, onde era costume se comer gônadas de camelos. Trouxe a receita para os EUA, onde começou a fazer o primeiro isméshi burguer de testículos de camelo, que fizeram, claro, muito sucesso (o truque era o molho, a carne em si era insossa). Com o tempo e o sucesso, esta iguaria foi logo trocada por algo mais barato (95% soja, 5% testículo de boi), mas ninguém nunca deu muita bola. Literalmente.
² Jadiz Embolsonada era o presidente do Pernil na época e um excelente exemplo da propaganda enganosa. Vindo de uma família que habitava a política desde os tempos do porto de Prantos (cidade do litoral de Santa Paula, um dos primeiros atracadouros de quando os Potrogueses colonizaram o Pernil), se tinha uma coisa que ele sabia fazer, era embolsar. Seu slogan era “Pernil abaixo de tudo, Eu acima de todos” e eu devo dizer que não sei como ele conseguiu ganhar as eleições. Acho que os pernileiros estavam tão, mas tão decepcionados com a política, que decidiram votar no pior candidato que encontraram, com a ideia de que “tá ruim, mas tá bom, se piorar, melhora”, ou algo do tipo.
Porém, apesar do nome enganoso, ele não mentiu: cumpriu exatamente o que propôs seu slogan ao longo de seu governo.
³ Omiça é um pequeno país da Pseudoropa famosa por ser, como diz seu nome, omissa. Neutra em absolutamente tudo, nunca se mete em confusão, escapou de todas as guerras, e é um lugar tão confiável, que é utilizada pelo mundo todo para depósito de dinheiro e bens, sem que ninguém saiba nem pergunte o que é (você pode até enfiar a sua sogra em um dos cofres da Omiça, ninguém vai perguntar nada. Eles serão, literalmente, omissos). Não daria para ser mais sem graça (cadê a emoção de viver, com tanta certeza, estabilidade e neutralidade?), não fossem aqueles chalezinhos de contos de fadas que eles têm por todo canto. Ah, que vontade de ir pra lá só para morar num desses!

O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais