Ristorante
Enrico Bazar era mais um dos muitos que, no país Pernil, conseguira enriquecer sem muita dificuldade. Tá, tudo bem, foi difícil, mas comparado ao resto da população, ele enriquecera praticamente sem mexer um dedo, usando apenas um pouco de esperteza e muita – muita – sorte. Porque, como ele dizia, para se conseguir algo, era necessário 1% de inspiração, 9% de transpiração e 99% de sorte – como isso dava 109%, você podia tirar os 9% da transpiração.
Assim que chegara da Ipalha, um país na Pseudoropa, três anos atrás, Enrico resolvera, junto de um amigo – Corleo – montar um restaurante de comida Ipalhana. Mas, como eles tinham muito – mas muito – dinheiro, porque a Pseudoropa tinha um nível de vida extremamente alto para os níveis Pernileiros, de modo que um Elzo é o mesmo que uns 100 Falsos (o que me leva a perguntar por que diabos eles saíram de lá, mas tudo bem), resolveram montar um restaurante extremamente chique de comida Ipalhana. Mas tão chique, tão chique, que um Espaguete a Bolonhesa custava algo em torno de 350 falsos – o que seria o preço em Elzos lá na Pseuropa.
Obviamente, ninguém ia àquele restaurante.
Ao longo de um ano, o dinheiro de que os dois homens dispunham conseguiu dar conta dos gastos exorbitantes de manter o local. Entretanto, como nenhum cliente nunca aparecia por lá para comer e o cozinheiro usava as receitas da mãe de Enrico, ele chegou à conclusão de que ninguém gostava da comida dela, e por isso entrou em profunda depressão.
Isso nos primeiros quinze dias.
Para se livrar da depressão, ele se viciou em antidepressivos, tomando uma caixa por dia (ele tinha dinheiro, podia pagar). Mas, como consequência, os farmacêuticos pararam de lhe vender, e os médicos lhe vetaram a compra (apareceu até nos jornais de Pernil, uma notícia de pé de página cobrindo a parte do obituário que não fora ocupada porque as taxas de mortalidade haviam diminuído desde o fim do ataque do SCC, ficando abaixo do esperado: “Homem depressivo proibido de comprar medicamento”), sobrando para ele a única esperança – se meter no meio do tráfico.
Com isso, em questão de seis meses ele torrou todo o dinheiro de que dispunha e que não havia sido mudado para a conta do restaurante. Deste modo, nove meses depois de tê-lo aberto, ele estava falido, não tendo como pagar os chefões da máfia (sim, a máfia ipalhana – e a calombiana – controlavam o tráfico de drogas no país Pernil).
Era o terceiro dia desde o início de sua dívida, e três homens – bom, na verdade, um homem e dois orangotangos – bateram à sua porta, cobrando-lhe o dinheiro.
Sem ter como entregar nada além da vida, Enrico, que nunca fora estúpido (exceto pelo dia em que se envolveu com o tráfico), pensou rápido.
– Que tal discutir isso comendo um prato do verdadeiro espaguete ipalhano? Em homenagem à nossa nacionalidade!
O outro concordou; não havia muitas manobras que ele pudesse fazer, uma vez que o restaurante era no centro da cidade e a máfia a controlava de ponta a ponta.
Eles foram para Il Piccolo Ristorante Ipalhano, o qual os impressionou pelo porte paradoxal e a riqueza de sua decoração.
– Eu reservei ele especialmente para esta ocasião – comentou Enrico, sabendo que ninguém costumava aparecer àquela hora (em verdade, ninguém costumava aparecer nunca). – Assim, ninguém vai nos incomodar enquanto comemos. Agora, com licença, eu vou falar com o chefe, conhecido meu, e ele vai nos fazer um prato especial…
Ele então instruiu os garçons para que não o chamassem de chefe em hipótese alguma e que o tratassem com a maior polidez possível, como se fossem milionários.
Quando chegou o final do jantar, que incluiu cinco entradas, três pratos principais e um carrinho – literalmente – de sobremesa, tudo regado a Vinho do Porco (sem terem sequer mencionado a dívida), o mafioso já colocava a mão no bolso, quando Enrico, todo a sorrisos, impediu-o.
– Não, não, hoje é por minha conta.
E, sem mais, a dívida foi considerada paga.
A partir daí, o esperto dono do restaurante (cujas receitas, elefantas, haviam sido aprovadas) descobriu uma fonte interminável de dinheiro. Toda vez que devia para alguém por causa dos antidepressivos, simplesmente o levava para o restaurante e fingia lhe pagar uma refeição.
Ele teria apenas mais dois meses e meio de renda para pagar o ristorante, mas, do jeito que as coisas iam, ele não precisaria de mais do que dois para que tudo desse certo.
A sua maior descoberta foi, na verdade, no dia em que, por ter se tornado amigo de um dos cobradores, resolveu lhe oferecer um jantar sem motivo explícito. Com isso, pela honra ipalhana, o homem, imaginando que o jantar havia saído algo em torno de 10000 falsos, ficou lhe devendo um favor.
Com o passar do tempo, o dono do restaurante oferecia jantares para todos; deste modo, metade da cidade lhe devia favores. Logo, pessoas temiam serem convidadas, e aqueles que já haviam sido uma vez, rezavam para que não fossem de novo – afinal, se já estavam presos por um favor, quem diria dois?
Enrico enriqueceu brutalmente – em verdade, apenas materialmente, porque tudo que ele queria lhe era dado como presente, mas ninguém nunca lhe dera dinheiro –, tendo até os cobradores de contas do restaurante a lhe dever favores. Para vê-lo, havia uma sala em Il Piccolo Ristorante Ipalhano, na qual havia uma mesa de mogno, uma poltrona e um homem vestido de fraque com um gato branco em seu colo, fumando um charuto (ele e o gato).
Enrico Bazar se tornara o homem mais poderoso da cidade – ou quase; igualando-se em poder e favores, restava apenas Lucca, o mafioso que, até havia pouco, vendia-lhe drogas.
Em uma história normal, chegar-se-ia a um clímax neste momento, com direito a guerras de máfias cheias de efeitos cinematográficos. Isso, porém, é porque no nosso país, as máfias são más, mas, no país Pernil, elas são extremamente boazinhas – apesar de que deveriam ser extremamente mal vistas por ganharem a vida fazendo coisas ilícitas, os pernileiros simplesmente chegaram à conclusão de que isso não é nada pior do que política, sendo que eles escolhem uma vez a cada quatro anos alguém para receber todo o poder do país e fazer o que quiser com o dinheiro público, como por exemplo, coisas ilícitas, ou, pior ainda, comprar sorvetes para criancinhas diabéticas e dizer que elas não podem tomar. Justamente por este motivo – por as máfias serem boazinhas e bem vistas, esta história não tem um clímax sangrento.
Há simplesmente um encontro entre Enrico e Lucca, em Il Piccolo Ristorante, no qual ambos decidiram partilhar a cidade (50% para cada um a partir daquele momento, de modo que cada pessoa que nascesse seria entregue ora para um, pra para outro) em um almoço obelixano, com muito Vinho do Porco, e ainda resolveram investir no restaurante, partilhando-o entre três – Corleo e os dois mafiosos.
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais