Seleção
– Candidata 197 – ele chamou.
Era um homem bonito. De porte atlético, cabelos pretos e curtos, alguns grisalhos nas laterais, alguns pés de galinha que lhe davam um charme, olhos claros, covinhas no sorriso, queixo quadrado e mandíbulas másculas. Vestia-se com um terno preto de marca famosa, uma gravata de seda importada e sapatos de couro caríssimos. Nas mãos, uma prancheta com folhas e uma caneta de marca. Sentado em uma poltrona de couro escuro, tinha uma mesinha de mogno ao seu lado, na qual pusera uma xícara de café e um abajur, ao lado de algumas pastas de papel bege. À sua frente, uma mesa de centro com água ou vinho para os entrevistados se servirem e alguns docinhos. À sua frente, um sofá confortável.
– Diana, é isso? Por favor, entre e sente-se.
A moça, loira, de olhos claros, corpo voluptuoso, jeito de modelo e ar de inteligente, caminhou decididamente até o sofá, onde se sentou.
– Por favor, sirva-se do que quiser.
– Obrigada.
Ela se serviu de água, que veio em boa hora; estava esperando havia quase duas horas, e já estava exausta. Os saltos estavam acabando com ela.
– Muito bem, Diana… Devo dizer que muitas outras já foram recusadas neste exato ponto, por terem se servido do conteúdo errado. Agora, se me permite, vou checar seus dados. Vinte e sete anos, advogada, especialista em direito internacional… Mora com seus pais, é isso?
Ela assentiu.
– Você se importaria de me dizer por que uma moça bem sucedida ainda mora com os pais nesta idade? Você tem alguma dificuldade de sair pelo mundo, se virar sozinha?
Isto a incomodou um pouco, mas ela ignorou; aquela vaga era importante. O salário era excelente. Não sabia exatamente as especificações do serviço, mas, sem dúvida, valeria à pena.
– Não, eu não tenho dificuldades com isso – respondeu, polidamente. – Na realidade, eu estava para me mudar depois de casar, mas terminei o meu noivado. Desde então, estou com os meus pais.
– E terminou o noivado por quê? Dificuldades de se comprometer com relacionamentos sérios?
– Ele me traiu – ela respondeu, secamente.
– E você tem uma tendência a atrair homens que a traem ou não?
Ela ficou indignada, mas se conteve.
– Não, foi o primeiro homem que me traiu. E, sem dúvida, será o último.
– Muito bem, Diana, gostei de sua resposta. Mas vamos ver um pouco sobre sua família. Algum histórico de doenças?
– Bom… Meu pai teve um infarto.
Ele murmurou “uhm-hum” com um ar preocupado, movendo a ponta de trás da caneta em círculos contra seu próprio queixo.
– Com quantos anos?
– Sessenta e cinco.
– Menos mal. É contornável. Pressão alta? Diabetes?
– Ninguém, que eu me lembre.
– Câncer de algum tipo? Doença de Alzheimer ou qualquer outra doença neurológica ou psiquiátrica?
– Não que eu me lembre.
– Por favor, Diana, não minta. Será pior se eu descobrir depois.
– Bom, minha avó esquece onde põe as coisas, mas acho que é só isso. E meu avô tem artrose nos joelhos e hérnia lombar, mas ele era estivador no porto de Santos.
– Tudo bem, tudo bem. Até agora, estamos indo bem. Deixe-me ver, agora, seus testes psicológicos…
Ele tomou uma pasta que estava à sua esquerda e tirou alguns relatórios.
– Bom perfil profissional. Perfil de liderança. Tem boa autoconfiança… Parcialmente ansiosa. Não parece ter problemas psiquiátricos… E um bom QI. 145. Perfeito. Agora, outra coisa. Fale-me a respeito de você. Com o mínimo necessário de palavras, me diga: qual seu escritor favorito?
– Guimarães Rosa.
– Por quê?
– Dispensa explicações.
– Excelente! E o que acha de Paulo Coelho?
– Prefiro não comentar.
– Futebol?
– Não torço.
– Novelas?
– Praticamente não assisto.
– Muito bom. Músicas?
– Gosto de clássicas e jazz.
– Quando você ouve a música “Eu quero Tchu”, você faz o quê?
– Mudo de estação ou tampo os ouvidos.
– Ótimo! A favor ou contra o governo?
– Depende. O atual ou o passado?
– Os dois.
– Bom, sou contra o ruim e a favor do bom.
– E qual é qual?
– Preciso realmente dizer? – ela indagou, erguendo a sobrancelha e apoiando as mãos no joelho da perna que estava cruzada por cima.
Ele riu.
– Vamos ver, agora, as medidas…
Ele virou uma das folhas de sua prancheta, onde tinham os dados anotados por suas assistentes.
– Muito bem, noventa e dois de busto, noventa de quadril e sessenta e seis de cintura. Muito bom, mesmo. Bem proporcional… Diga-me uma coisa; sua mãe é gorda ou magra?
– Minha mãe? – ela repetiu, sem compreender. – Ela é um pouco gordinha, mas não muito. Está muito bem conservada.
– Excelente. Numa segunda fase, provavelmente precisarei conhecê-la. Tem irmãos?
– Tenho um irmão mais velho.
– Ele é casado?
– Sim.
– Trabalha?
– É vice-presidente de uma multinacional – ela respondeu, orgulhosa.
– Excelente! Na primeira avaliação, Diana, devo dizer que você foi muito bem. Temos ainda uma série de testes e fases para você fazer antes de ser aprovada definitivamente. Eu gostaria muito que você prosseguisse.
– Certo… – ela respondeu, incerta. Aquela bateria de questionamentos havia sido bastante estranha.
Ele a observou.
– Acredito que queira saber um pouco mais sobre as especificações do trabalho.
– Sim, por favor! – ela disse.
Ele respirou fundo.
– Minha querida Diana, eu publiquei esta oportunidade de emprego e com um salário tão alto, porque, como você deve saber… Eu sou rico. Muito rico. E, como você bem pode ver… – ele falou, apontando a si mesmo com as mãos, mostrando-se dos pés à cabeça. – Um indivíduo de alta qualidade genética. Devo dizer, quase única.
Aquilo estava ficando cada vez mais estranho.
– Estou à procura do par perfeito para mim, para criar uma prole perfeita. Meus perfeitos herdeiros. De qualidades genéticas excelentes. Belos, inteligentes, bem comportados, confiáveis. Estáveis psicologicamente. Enfim, um perfeito reflexo de seus pais. De minha parte, estou garantido. Agora, o que falta é de sua parte.
Ela parecia chocada.
– Logicamente, você não é obrigada necessariamente a cumprir todas as suas funções como esposa. Necessito unicamente do seu útero e dos seus óvulos. Claro, compactuar com tudo seria mais fácil.
– Eu não estou compreendendo muito bem… – ela disse, por fim.
– Diante de nossos filhos, seu dever será de ser uma mãe exemplar. Quando eles não estiverem lá, porém, você pode fazer o que bem entender. Se desejar, podemos ter quartos adjuntos, e cada um dormir no seu. Se eles precisarem de nós durante a noite, você passa de volta para o meu quarto. Quando os deixarmos na escola, estaremos juntos, como verdadeiros pais, pois eles precisam disso. Depois, se quiser, você pode fazer o que bem entender. Não farei imposição alguma além destas, e o seu salário lhe permitirá viver uma vida de rainha.
– Ou seja… – ela disse, levantando-se. – Você quer que eu sirva para gerar filhos para você?
– Exatamente. Para que nossos filhos sejam um exemplo de perfeição…
Ela jogou a água de seu cálice nele.
– E quem disse que eu quero ter seus filhos, seu nojento? E propagar toda a sua nojeira por aí?
Ela depositou o cálice de volta na mesa de centro, tomou sua bolsa e se virou para ir embora.
– Não, Diana, não vá! Você tinha começado tão bem! – ele disse. – Seríamos perfeitos, juntos! Eu dobro seu salário, o que acha?
Isto apenas a revoltou mais, e ela saiu batendo a porta.
Inabalado, ele tomou um lenço de seda importada de seu bolso interno, orgulhosamente secou seu rosto e sua barba, trocou as folhas de sua prancheta, tomou outras novas e chamou:
– Candidata 198!
Aquela não era a primeira, nem seria a última, que se mostrara um bom partido e recusara na última hora. Mas não havia problema. Ele iria encontrar o seu par.
– Bom dia, Michele. Por favor, sente-se e sirva-se. Nota do autor, setembro de 2021: a minha pergunta é: será que não tem gente fazendo isso por aí atualmente? E, se tiver, seja lá qual for a ordem (homem contratando mulher, mulher contratando homem), você aceitaria, só pelo dinheiro? E se estes atributos genéticos fossem um critério válido para a escolha de um(a) parceiro(a)?
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais